O Estado de bem-estar social, desenvolvido na Europa após a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), pautou uma série de direitos universais que gradualmente foram desmontados com o avanço do neoliberalismo e com as reconfigurações do mundo do trabalho. Para a professora da Universidade de Hertfordshire (Inglaterra) e socióloga do trabalho Ursula Huws, a pandemia mostrou a necessidade de reinventar esse Estado de bem-estar social.
As tecnologias digitais, segundo a professora, ocasionaram uma padronização dos processos de trabalho e uma transnacionalização que atuaram de modo a promover o rompimento de solidariedades e de comunidades locais de trabalho. “A ruptura das solidariedades e a erosão do poder de barganha sindical que resultaram dessas mudanças foram reforçadas pelo projeto neoliberal de desregulamentação, privatização e abertura das fronteiras nacionais para viabilizar o livre comércio”, analisa.
Dessa forma, diz a socióloga, “as regulamentações que haviam sido estabelecidas para proteger os trabalhadores em um país tornaram-se vulneráveis devido às pressões competitivas”.
Diante da desregulamentação e das novas formas de trabalho, como a dos plataformizados, tornou-se necessária, segundo Huws, a construção de direitos que abarquem todos. “O que falta, a meu ver, é um novo estatuto de direitos básicos para todos os trabalhadores, independentemente de terem ou não carteira assinada. Isso inclui alguns direitos que tradicionalmente estão disponíveis apenas para aqueles que estão formalmente empregados.”
A entrada massiva das mulheres no mercado de trabalho, segundo a professora, também suscita o fortalecimento de direitos oferecidos pelo Estado com vistas à reprodução social. “Esses incluem cuidados infantis e assistência social para idosos, doentes e deficientes. Há também a necessidade de melhorar o acesso aos cuidados de saúde e à educação, inclusive para tornar os horários de funcionamento mais facilmente compatíveis com o horário de trabalho”, aponta Huws, cujo livro Reinventando o Estado de Bem-Estar: Plataformas Digitais e Políticas Públicas foi lançado recentemente pela Editora da Unicamp.
Nesta entrevista, a socióloga também analisa o que chama de ciclo vicioso do trabalho em plataformas digitais, fenômeno responsável por gerar “um aumento do emprego precário e um número maior de pessoas que precisam de renda extra”. Huws aponta ainda que o fato de a classe rentista ter abandonado as pautas de interesse nacional criou um “vácuo político” associado ao crescimento de partidos de extrema-direita e do racismo.
Quais são as principais características do trabalho no capitalismo contemporâneo e quais são as consequências da destruição do Estado de bem-estar social?
Ursula Huws – Durante a era neoliberal, a partir de cerca de 1990, tornaram-se evidentes várias tendências que atingiram massa crítica após a crise financeira global de 2007. Entre elas, o desenvolvimento de uma divisão global do trabalho, baseada em uma crescente padronização dos processos de trabalho, possibilitada pelas tecnologias digitais.
Trabalhadores em todo o mundo tornaram-se mais intercambiáveis uns com os outros (usando os mesmos processos de trabalho, muitas vezes trabalhando para as mesmas corporações transnacionais e cada vez mais obrigados a se comunicar por meio de um número limitado de idiomas globais). Isso teve o efeito de fraturar as comunidades de trabalho e romper as solidariedades tradicionais baseadas em parentesco, proximidade física ou tradições comuns.
Cada vez mais, a competição pelo trabalho vem de trabalhadores que não se conhecem. A substituição global do trabalho ocorreu de duas formas – offshoring (mudança dos empregos para um local diferente) ou migração (mudança dos trabalhadores para os empregos).
Nos países do Hemisfério Norte, onde fortes Estados de bem-estar social foram construídos em meados do século 20, essas tendências enfraqueceram o poder dos atores nacionais de regular o emprego dentro de um único país. As associações de empregadores não representavam mais todos os empregadores de um país, já que muitos deles passaram agora a integrar corporações multinacionais, enquanto os sindicatos nacionais geralmente não representavam os trabalhadores migrantes que agora constituíam uma porção crescente da força de trabalho. Além disso, as solidariedades entre o trabalho organizado e os desempregados, que cresceram durante o período do pós-Segunda Guerra, foram erodidas.
Em países de capitalismo periférico, como o Brasil, nunca tivemos um Estado de bem-estar social como na Europa, mas alguns dos direitos que tínhamos, principalmente dos trabalhadores, foram destruídos nos últimos anos, principalmente com uma reforma na legislação trabalhista em 2016. Quais são as características dessa desregulamentação em países dos Hemisférios Norte e Sul?
Ursula Huws – A ruptura das solidariedades e a erosão do poder de barganha sindical que resultaram dessas mudanças foram reforçadas pelo projeto neoliberal de desregulamentação, privatização e abertura das fronteiras nacionais para viabilizar o livre comércio. Isso se estendeu globalmente, afetando países do Hemisfério Sul, bem como do Hemisfério Norte, embora muitas vezes sob condições diferentes. As regulamentações que haviam sido estabelecidas para proteger os trabalhadores em um país tornaram-se vulneráveis devido às pressões competitivas.
“Não há alternativa” ao mercado: como essa ideologia, construída pelo governo Margareth Thatcher (primeira-ministra do Reino Unido de 1979 a 1990), ecoa nos partidos políticos e o que a pandemia mostrou sobre o papel do Estado?
Ursula Huws – A ideia de que não há alternativa ao mercado era um tema comum no discurso neoliberal. Ganhou aceitação considerável entre a população em geral, bem como entre partidos políticos de centro-esquerda e de direita durante a década de 1990. Uma prática que reforçou essa visão foi o desmantelamento deliberado das empresas estatais e dos serviços públicos, antes da privatização ou terceirização, privando-os de fundos e introduzindo sistemas altamente burocráticos da “nova gestão pública” baseados em indicadores de desempenho que tiveram o efeito de torná-los muito ineficientes e pouco atraentes aos usuários. Assim, a opinião pública se mobilizou em favor da ideia de que o Estado não poderia administrar os serviços com eficiência e que era melhor colocá-los nas mãos de empresas capitalistas.
Durante a pandemia, ficou claro que algumas necessidades da população que exigiam planejamento central e tomada rápida de decisão não podiam ser atendidas de forma eficaz por meio de contratos com empresas privadas que demoravam a negociar. Por exemplo, havia a necessidade de gerenciar o fechamento de locais de trabalho públicos, de realocar o trabalho para casa, de distribuir suprimentos essenciais, de vacinar o público em geral, de fornecer uma renda básica para trabalhadores demitidos e assim por diante. Isso parece estar mudando a percepção pública sobre o papel do Estado.
Mais de 60% da força de trabalho é informal no mundo e há uma combinação de trabalho regulamentado e desregulamentado. Segundo a senhora defende, seria necessário um programa comum de proteção social para todos os tipos de trabalhadores. Como seria esse programa?
Ursula Huws – O que falta, a meu ver, é um novo estatuto de direitos básicos para todos os trabalhadores, independentemente de terem ou não carteira assinada. Isso inclui alguns direitos que tradicionalmente estão disponíveis apenas para aqueles que estão formalmente empregados (por exemplo, o direito a salário-mínimo, férias pagas, auxílio-doença, pensões e o direito de se organizar e ser representado por um sindicato).
Incluiria também alguns novos direitos relacionados à gestão digital. Por exemplo, o direito de se comunicar diretamente com um gestor que não seja por meio de um aplicativo, o direito de contestar uma decisão injusta com base na tecnologia (por exemplo, a utilização de software de reconhecimento facial, dados de GPS, avaliações de clientes etc.) e o direito de ver quaisquer dados coletados durante o trabalho e controlar como eles são usados após o término do trabalho.
Como a senhora disse na palestra no evento Unicamp, o crescimento da participação das mulheres na força de trabalho não foi acompanhado pelo crescimento dos serviços de apoio à reprodução social. Que políticas poderiam ser pensadas para esse apoio?
Ursula Huws – Em uma situação em que se espera que todos os adultos aptos sejam economicamente ativos, há necessidade de uma oferta pública muito maior de serviços para apoiar a reprodução social. Esses incluem cuidados infantis e assistência social para idosos, doentes e deficientes.
Há também a necessidade de melhorar o acesso aos cuidados de saúde e à educação, inclusive para tornar os horários de funcionamento mais facilmente compatíveis com o horário de trabalho. Mais amplamente, há espaço para introduzir mecanismos geridos de forma mais local e democraticamente responsável com vistas à prestação de outros serviços, como a distribuição de alimentos e outros bens (incluindo serviços postais), serviços de transporte local e serviços de cuidados pessoais.
A senhora cunhou a expressão ciclo vicioso do trabalho de plataforma. Poderia explicar como funciona esse ciclo?
Ursula Huws – Esse é um termo que usei para descrever o padrão segundo o qual as pessoas que precisam de renda extra assumem um trabalho adicional, geralmente trabalhando para uma plataforma online, além do trabalho já existente. Isso as deixa com menos tempo disponível para o trabalho reprodutivo social (limpeza da casa, cozinhar, cuidar de crianças, lavanderia etc.). E, desesperadas, recorrem ao mercado para adquirir esses serviços que não têm tempo de prestar a si próprias (muitas vezes recorrem a plataformas online, que podem ser a forma mais barata de obter comida pronta, serviços de babá, de lavanderia, de limpeza, entre outros).
Como resultado, as plataformas crescem rapidamente, criando mais tipos precários de trabalho mal remunerado (em competição com empregadores locais que podem oferecer empregos mais estáveis e mais bem remunerados). Isso leva a um crescimento do emprego precário e a um número maior de pessoas que precisam de renda extra. E assim o ciclo se repete.
Segundo sua avaliação, a classe rentista não tem mais interesse em modelos de desenvolvimento nacional e isso gera uma perda de senso nacional que cria um vácuo político. Quais são as características desse vácuo?
Ursula Huws – O risco é que esse vácuo político pode levar a uma perda de confiança pública nos partidos social-democratas e a um crescimento de partidos autoritários de direita, acompanhados por um aumento do racismo e da demonização dos migrantes.
Serviço:
Reinventando o Estado de bem-estar
Plataformas digitais e políticas públicas
Autora: Ursula Huws
Tradução: Cynthia Costa
Ficha técnica: 1 a edição, 2022; 184 páginas
Preço: R$ 90,00