Projeto faz da Unicamp referência em preservação da memória negra

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O Arquivo Edgar Leuenroth (AEL) da Unicamp deve se tornar o espaço com a maior documentação reunida sobre o protagonismo negro brasileiro. Com o compromisso de ser um arquivo antirracista, o AEL recebeu, nos últimos três anos, 13 acervos de organizações, intelectuais e ativistas do movimento negro. No mês dedicado à Consciência Negra, os diretores e funcionários do Arquivo fazem um balanço do projeto em torno da preservação da memória negra, denominado Afro Memória.

“A ideia inicialmente era cobrir o período dos últimos 50 anos de organizações, associações e de intelectuais negros e negras do Brasil, da geração dos anos 1970 para cá, mas o escopo foi se ampliando. Não há outro lugar que reúna um acervo tão vasto e desse porte. Com a chegada dos 13 acervos, a Unicamp se posiciona em um lugar de destaque na preservação da memória negra no Brasil”, observa o diretor adjunto do AEL, Mário Medeiros.

Os professores Aldair e Mario Medeiros :
Os professores Aldair Rodrigues e Mario Medeiros, diretor e diretor adjunto do AEL, respectivamente: compromisso de ser um arquivo antirracista

O trabalho de preservação, recuperação e disponibilização do material é fruto de parceria entre o AEL, o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Social do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e a linha de pesquisa Hip Hop em Trânsito do Centro de Estudo das Migrações do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (IFCH).

Os acervos recebidos pelo AEL são as documentações de: Reginaldo Bispo e Margarida Barbosa (Movimento Negro Unificado - SP), Milton Barbosa (Movimento Negro Unificado - SP), Geledés Instituto da Mulher Negra, Januário Garcia, Soweto Organização Negra, King Nino Brown, Alexandre de Maio, Chico Piauí e Jacira da Silva (Movimento Negro Unificado -DF), Estevão Maya-Maya, José Correia Leite, Quilombhoje, Azoilda Trindade, Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT).

Nos últimos três anos, AEL recebeu 13 acervos de organizações, intelectuais e ativistas do movimento negro
Nos últimos três anos, AEL recebeu 13 acervos de organizações, intelectuais e ativistas do movimento negro

Documentação ilustra pluralidade de atuação

Medeiros conta que, ao mergulhar no acervo, tem-se um panorama da atuação do movimento negro das décadas de 1920 e 1930, por meio dos jornais da imprensa negra, por exemplo, até os dias atuais. “Em primeiro lugar, chegou o material do Milton Barbosa e do Reginaldo Bispo, relativos ao Movimento Negro Unificado, que mostram um momento na história de organizações negras no contexto da geração de 1978, de uma luta mais intensa contra a violência policial e contra o racismo. Dos anos 1980, chegou o material de Geledés, da luta das mulheres negras, do feminismo negro, com uma atuação inclusive internacional”, conta.

Com o acervo do Soweto, prossegue o professor, é possível perceber uma nova agenda de lutas das décadas de 1980 e 1990 e a articulação em marchas, como a Marcha Zumbi dos Palmares. Já a documentação de Nino Brown e de Estevão Maya-Maya possibilitam um mergulho na história da música protagonizada por negros e na conexão internacional por meio da expressão cultural. Dessa forma, cada coleção oferece um leque de possibilidades de análise sobre o protagonismo afro-brasileiro.

“Quando esses materiais estão difundidos, ganham uma proporção de conhecimento público realmente impressionante. Então, é muito importante o papel da universidade ao salvaguardar e permitir o acesso a esse conjunto de diferentes redes do movimento negro”, avalia Medeiros.

O diretor do AEL, Aldair Rodrigues, também destaca que, reunida, a documentação facilita ao pesquisador perceber as conexões entre as vertentes do movimento. “É possível acessar a multiplicidade de perspectivas, porque a experiência negra não é monolítica. É possível observar conflitos, articulações e diferentes visões sobre o mesmo processo político e rastreá-los. Reunir toda essa documentação traz uma vantagem muito grande.”

Para ele, a Unicamp cumpre um papel político fundamental ao constituir o acervo. “O Estado não tem uma política de memória que inclua a população negra. Aliás, tem a política do esquecimento, que este projeto tenta reverter.”

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O primeiro material a chegar no AEL foi documentos relativos ao Movimento Negro Unificado, que mostram um momento na história de organizações negras no contexto da geração de 1978

Projeto está alinhado às ações afirmativas

Rodrigues ainda evidencia o alinhamento do projeto às políticas de ações afirmativas, que ampliaram a presença de estudantes negros na Unicamp. “É um esforço coletivo de reposicionar o arquivo, pensando que a documentação possibilita a produção de conhecimento centrada no protagonismo negro. E, mais do que isso, tem um papel de contribuir para que os alunos negros que estão ingressando na universidade se reconheçam”, indica.

Para o professor, com o Afro Memória, a Unicamp reafirma a experiência da população negra como fundamental para compreender a história do país, contribuindo para repensar a forma como se dá a construção do conhecimento na universidade.

“Esses acervos e as pesquisas que podem ser feitas a partir deles podem nos ajudar a mudar os currículos e as ementas das disciplinas, a produzir referências centradas no protagonismo negro. É uma tentativa de contribuir para a implementação da dimensão epistemológica das ações afirmativas, porque não basta só colocar os alunos negros dentro da universidade, é preciso provocar uma transformação das práticas ligadas à produção de conhecimento.”

Além disso, tanto as ações afirmativas como a documentação produzida por pessoas negras convergem “na possibilidade de reescrever a história do Brasil a partir da população negra em primeira pessoa”.

“Normalmente, o que temos nas universidades são pessoas brancas falando sobre a população negra. Essa documentação traz as vozes negras em primeira pessoa, o que oferece uma mudança importante na forma de compreender a história do Brasil e de entender a história da democracia, o que não é possível sem ver as lutas dos movimentos negros por direitos”, conclui.

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O acervo mostra um panorama da atuação do movimento negro das décadas de 1920 e 1930, por meio dos jornais da imprensa negra, por exemplo, até os dias atuais

Acervos contribuem para a formação de estudantes

Toda documentação que chega ao AEL precisa passar por um processo de higienização, restauração, catalogação, avaliação e digitalização. É um trabalho minucioso e que conta com a dedicação tanto dos servidores como dos estudantes bolsistas. Matheus dos Santos é um deles. Estudante de História, ele vem trabalhando no acervo do Soweto e avalia que as atividades contribuem para a sua formação.

“Nesse trabalho, aprendemos como tratar os documentos sob a perspectiva de quem está arquivando. As atividades com o acervo possibilitam um olhar profissional do historiador sobre como tratar as fontes”, afirma.

Ao lidar cotidianamente com os documentos e pelo fato de estar começando a estudar um tema relacionado à memória negra – a capoeira no século XIX –, Santos indica a importância do acervo e os rumos que sua pesquisa poderia tomar com a análise da documentação.

“Aqui, percebemos que o movimento negro, de que falamos no singular, é na verdade plural, e por ser plural percebemos várias divergências também. Com o acervo, conseguimos complexificar a história do movimento negro. A documentação nos ajuda a entender o fortalecimento do movimento negro nacional e internacionalmente. Dá para analisar a capoeira nos eventos organizados pelos movimentos, porque a maioria começava com eventos culturais. Uma possibilidade seria mapear a presença da cultura nessas atividades políticas.”

Força-tarefa para tornar o acervo público

Todos os acervos recebidos já estão disponíveis para consulta. O trabalho para tornar a documentação acessível, inclusive online, começa com a restauração, quando necessária. Esta etapa é feita por uma equipe técnica e especializada.

“Com esse trabalho, recuperamos os documentos com danos de degradação, possibilitando a pesquisa. Todo o tratamento é realizado com materiais especiais, próprios para restauração e acondicionados em invólucros confeccionados com materiais neutros – pastas suspensas, pastas poliondas, jaquetas em poliéster e caixas de papel confeccionadas especialmente para o documento. Após a restauração, os documentos são guardados na área de acervo com controle e parâmetros de temperatura e unidade”, explica a responsável pela seção de Preservação e Difusão do Arquivo, Castorina de Camargo.

Depois disso, a documentação segue para uma análise técnica, momento em que são estudados os itens. No acervo do Soweto, a responsável por essa análise é Isabela Salgado. “Fazemos um quadro de arranjo, que já foi apresentado para a organização aprovar. Esse quadro vira um inventário. Quando o pesquisador vir aqui, ele terá acesso ao que o acervo tem e quais são as fontes de pesquisa”, elucida.

Por fim, os materiais do acervo são digitalizados. No caso de livros, são catalogados e disponibilizados no Sistema de Bibliotecas da Unicamp. Maria Segnorelli é responsável por este processo. Ela destaca as contribuições de um dos acervos que terminou de catalogar recentemente: o de Nino Brown, que contempla cerca de 350 títulos de livros, em boa parte sobre hip hop e outros estilos musicais protagonizados por negros. “Estimo que pelo menos 80% dos títulos são inéditos, então o acervo agregou muito à nossa base, demonstrando o gap que havia dentro dos acervos nessa temática.”

Segnorelli destaca que o acervo de Brown trouxe à Unicamp um descritor até então inexistente na base: “afrofuturismo”, conceito que remete a um futuro em que negros e negras sejam protagonistas de áreas de poder.

As funcionárias Castorina de Camargo (alto à esquerda) e Maria Dutra (abaixo à esquerda) e os professores Mário Medeiros (alto à direita) e Aldair Rodrigues (abaixo à direita)
As funcionárias Maria Helena Segnorelli (alto à esquerda) e Maria Dutra (abaixo à esquerda) e os professores Mário Medeiros (alto à direita) e Aldair Rodrigues (abaixo à direita): todos os acervos recebidos estão disponíveis para consulta 

É um dos exemplos das contribuições do projeto Afro Memória para a difusão de conhecimento sobre a população negra e que eleva o AEL a um novo patamar. “Há uma virada no AEL, posicionando-o como uma referência na questão negra. Sempre nos apresentamos como uma referência na história do trabalho, da esquerda, das mulheres, dos movimentos sociais no Brasil. Mas havia um silêncio em relação à população negra. Esse projeto entra para a história do Arquivo”, sintetiza Maria Dutra, funcionária do AEL há 24 anos.

O projeto Afro Memória já publicou um caderno, dedicado ao Acervo documental de Milton Barbosa – histórico militante Movimento Negro Unificado (MNU). Acesse aqui.

O acervo também já é uma das bases para exposições, como a Memórias do Futuro, no Memorial da Resistência, em São Paulo (SP), com curadoria do professor Mario Medeiros. O catálogo online pode ser acessado aqui.

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Audiodescrição. Foto antiga em tom sépia, da primeira metade do século 20, de 5 homens e uma criança em uma sala, sendo, a partir da esquerda, homem sentado em cadeira que usa máquina de datilografia apoiada em uma mesa; outro sentado e que segura folha de papel e caneta; outro sentado em cadeira com caneta na mão; um homem em pé; uma criança em pé, e o último homem em pé, que segura uma caixa com as mãos. Ao fundo, parede com quadros e capas de jornal. Os homens usam camisa social e gravata. Imagem 1 de 1

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004