Considerado um dos intelectuais mais importantes da atualidade, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, 82 anos, tem se preocupado com o Brasil – país com o qual mantém relações fraternas desde a juventude. O seu primeiro trabalho de campo, por exemplo, foi realizado na favela do Jacarezinho, no Rio de Janeiro.
Professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Doutor em Direito pela Universidade de Yale, nos Estados Unidos, Boaventura vê sinais claros de ameaça à democracia no país, mesmo depois da realização das eleições presidenciais.
Observador atento da realidade brasileira, ele vê com preocupação os renitentes ataques à integridade das urnas eletrônicas, a persistência das concentrações de fanáticos diante dos quartéis pedindo intervenção militar ilegal, os bloqueios de perfil terrorista que ainda ocorrem nas rodovias e os discursos que pregam o rompimento da ordem democrática.
“Sabemos que os golpistas continuam ativos”, disse ele em entrevista ao Portal da Unicamp. “Sabemos que, neste momento, estão ainda a tramar pela impossibilidade da inauguração (posse) do presidente Lula”, acrescentou ele, que foi uma das figuras mais aguardadas do 4º Congresso de Extensão e Cultura realizado na Unicamp entre os dias 21 e 23 de novembro.
Autor premiado em diversas partes do mundo, Boaventura tem trabalhos nas áreas de sociologia do direito, sociologia política e estudos pós-coloniais. Faz trabalhos de campo reconhecidos em Portugal, Brasil, Colômbia, Moçambique, Angola, Cabo Verde, Bolívia e Equador.
Na entrevista, Boaventura considerou que Lula enfrentará enormes problemas nos primeiros meses de mandato – assim como ocorreu com governos de esquerda recentemente empossados no Chile e no Peru.
Ele também avaliou as razões do crescimento da extrema direita no mundo. “A extrema direita é uma estratégia do capital para impedir que as aspirações democráticas sejam enfrentadas democraticamente”, considera.
Leia os principais trechos da conversa:
Como o senhor vê a constante ameaça à democracia no Brasil, mesmo depois da realização das eleições?
A democracia brasileira está à beira do caos. Tivemos um período muito difícil. Eu tenho estado, como se sabe, muito envolvido nessa luta, pela minha solidariedade desde há muitos anos com o Brasil.
Houve um projeto autoritário que está vivo, obviamente, mas que foi derrotado nas eleições. Estamos num momento complicado, porque é um momento em que, por um lado, se pode respirar fundo. Talvez a frase que melhor caracteriza a mentalidade dos brasileiros e brasileiras neste momento é que podem respirar fundo. Agora, eu pergunto: por quanto tempo?
Sabemos que os golpistas continuam ativos. Sabemos, que neste momento, estão ainda a tramar pela impossibilidade da inauguração (posse) do presidente Lula, criando uma situação de agitação social a que, depois, se possa declarar o estado de sítio para impedir a inauguração. Portanto, os riscos são reais.
Acontece que a sociedade brasileira está a viver neste momento o sabor do que é voltar, efetivamente, à convivência democrática e lutar por uma sociedade mais justa e mais igualitária, através dessa figura extraordinária que é o presidente Lula da Silva, de quem eu tenho muito orgulho de ser amigo e que, depois de 580 dias de prisão, volta a ser o presidente deste país. E, nisso, há uma celebração em todo o mundo. A maneira como ele foi recebido recentemente no Egito (CPO 27 – Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas – realizada entre 7 e 18 de novembro) mostra isso.
Mostra que há uma celebração da democracia na pessoa dele e, portanto, o Brasil e os brasileiros têm uma grande responsabilidade agora, que é a de preservar essa oportunidade democrática que se criou com as eleições e não a perder. E ela pode se perder, porque os golpistas estão nas ruas e continuam a intimidar os democratas deste país.
É, portanto, um momento complicado, mas muito melhor, porque eu nem sequer estaria aqui se Bolsonaro tivesse ganhando as eleições. Eu tinha prometido a mim mesmo que não voltaria ao Brasil enquanto esse golpista fascista estivesse no poder.
O senhor vê alguma possibilidade de os EUA aceitarem algum tipo de golpe no Brasil?
Os EUA não têm nenhuma sensibilidade democrática, no meu entender, pela sua história no continente. O que eles têm é muito interesse em suas políticas internas. Por razões internas, neste momento, favorecer um golpe no Brasil é favorecer Trump (ex-presidente Donald Trump) nas próximas eleições. Porque Trump, provavelmente, será o candidato. E Biden (presidente Joe Biden), neste momento, não quer um golpe de maneira nenhuma, porque não quer valorizar seu potencial rival.
Já disse – isso está publicado – que as eleições no Brasil foram as primárias das eleições dos Estados Unidos em 2024. Portanto, os EUA, neste momento, estão a favor de uma regularidade e de uma pacificação democrática. Depois da inauguração (posse), farão suas pressões para, obviamente, colocar o país na ordem internacional eurocêntrica e americana, o que significa dizer que deve distanciar-se da China, como estão a fazer conosco na Europa. Mas isso é noutro momento. Por hora, a minha ideia é que eles não estão a favor de algum golpe aqui no Brasil porque isso joga contra eles.
Governos de esquerda que assumiram na América Latina – os casos de Gabriel Boric, no Chile, e Pedro Castillo, no Peru – sofreram desgastes muito rapidamente, assim que assumiram seus postos. Enfrentaram instabilidades institucionais e turbulentos protestos de rua, com pouquíssimo tempo de trabalho. O senhor vê possibilidade de Lula enfrentar situações semelhantes nos primeiros meses de mandato?
Sem dúvida, irá enfrentar. Nós tínhamos a ideia de que há 100 dias de graça, em que os governos são muito aceitos. E já vemos que isso não ocorre. Não ocorreu, por exemplo, no Chile, onde Gabriel Boric perdeu grande parte do apoio que tinha em dois ou três meses.
Isso acontece porque os governos de esquerda que chegam ao poder não têm o controle da imprensa; não têm o controle do poder econômico e social que domina a imprensa e os grandes meios de comunicação, e eles, como sabemos, foram a favor de golpes no passado.
E, neste momento, a sua posição é basicamente esta: é mostrar que a situação do Brasil é tão má do ponto de vista financeiro e econômico que o presidente Lula não pode fazer nada. Ou pode fazer muito pouco. Isso é para desestimular qualquer hipótese de que o presidente Lula possa corresponder às expectativas da população.
A situação é realmente difícil do ponto de vista econômico, mas há muito espaço para uma política progressista, de integração, que é necessária e urgente. Quando ele saiu da presidência, quase ninguém passava fome no Brasil, e ele regressa agora, quando mais de 30 milhões de brasileiros passam fome. Portanto, essa política tem de ter lugar e custa dinheiro.
Como o senhor vê o crescimento da extrema direita na América Latina e na Europa?
Temos vários governos de extrema direita na Europa, como na Itália, na Polônia, na Hungria e na própria Suécia. Trata-se de um movimento global, que corresponde a um ciclo conservador do neoliberalismo, do capitalismo mais selvagem que, depois de ter atacado as políticas sociais, quer atacar a própria democracia no seu núcleo mais duro que são os direitos cívicos e políticos.
Fundamentalmente, por que o fazem? É porque temos um período de grande concentração de riqueza, num contexto em que o avanço da China e a melhoria nos preços das commodities não podem permitir que os ricos fiquem mais ricos e, ao mesmo tempo, os pobres fiquem um pouquinho menos pobres, como na primeira onda progressista, que foi no primeiro governo do presidente Lula.
Agora, para que os pobres tenham um pouquinho mais de bem-estar, é preciso tributar; é preciso sacrificar os ricos, e isso eles não querem. E, como tal, são golpistas e voltam-se contra a democracia. A extrema direita é uma estratégia do capital para impedir que as aspirações democráticas sejam enfrentadas democraticamente.
O senhor é amigo do presidente Lula. Voltará ao Brasil para a posse em janeiro?
Isso eu não sei, mas eu fui um dos poucos intelectuais estrangeiros a visitar o Lula durante sua prisão em Curitiba, e tive muito orgulho de fazer isso. Muitas vezes fui crítico de algumas políticas que ele adotou, como na demarcação das terras indígenas, em que, acho, poderíamos ter ido mais longe, mas é evidente que sou amigo, solidário.
Acho que ele é um homem notável, uma liderança sem comparação, neste momento, no mundo. Portanto, continuo a apoiá-lo, mas não sei se venho à inauguração (posse), pois são situações muito formais.
De todo modo, estarei com ele e com sua equipe. Estou todos os dias a trabalhar nas equipes de transição, fazendo aquilo que faço melhor, que é trazer reivindicações dos movimentos sociais à atenção das equipes de transição que estão neste momento a construir a política no Brasil.