A conivência do Estado brasileiro com grupos da direita extremista desencadeou um dos episódios mais graves da história política do país. No dia 8 de janeiro, milhares de radicais, que não aceitam a derrota eleitoral do ex-presidente Jair Bolsonaro, dirigiram-se ao Congresso Nacional, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Palácio do Planalto, invadindo os prédios e praticando atos terroristas. Se o Brasil ainda vislumbra salvar sua democracia, segundo pesquisadores da Unicamp, é preciso investigar a penetração dos radicais no Estado e punir os crimes em todas as esferas.
Os crimes cometidos no último domingo, segundo o advogado e professor da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA) da Unicamp Luís Renato Vedovato, demonstram que há um grupo da população que, “por menor que seja, vive num cenário de pós-direito, em que as normas jurídicas não são respeitadas”.
Para frear a ameaça contra a democracia, indica, os responsáveis deverão ser responsabilizados em todas as esferas jurídicas: “Na esfera criminal, ou seja, pessoas poderão ser punidas criminalmente, eventualmente resultando em prisões; na esfera administrativa: pessoas que exercem cargos públicos poderão perdê-los; e na esfera civil, para o ressarcimento dos danos causados aos bens públicos. Essas três responsabilidades precisam ser investigadas e averiguadas”.
O direito de manifestação, lembra o professor, é assegurado pela Constituição Federal, desde que seja em locais abertos ao público e sem armas. No entanto, os atos criminosos que culminaram na tentativa de invasão à sede da Polícia Federal em dezembro, na data da diplomação do presidente Lula, já indicavam o extremismo do grupo, que não aceita as normas democráticas do país. Para Vedovato, faltou planejamento das Forças Armadas e da Polícia Militar (PM) do Distrito Federal (DF), que até ontem estavam sob o comando de Anderson Torres, ex-ministro de Bolsonaro.
“O vandalismo que aconteceu ontem deveria ter sido antecipado para preservar as estruturas [das instituições]. Não seria possível impedir a manifestação nem a chegada de ônibus, mas as autoridades deveriam estar preparadas para o momento em que as manifestações deixassem de ser pacíficas e passassem a ser de vândalos e terroristas. Por isso, a responsabilidade, tanto do governo do DF quanto das Forças Armadas, especificamente do Exército, precisam ser averiguadas.”
Segundo o advogado, a intervenção federal decretada pela Presidência da República e o afastamento do governador do DF, decretado pelo STF, são decisões acertadas, assim como a investigação de todos os agentes envolvidos, incluindo o efetivo do Batalhão da Guarda Presidencial. “A força do Exército que faz a guarda do Planalto é o Batalhão da Guarda Presidencial. São mais de mil homens que deveriam estar protegendo o Palácio do Planalto e não estavam. Isso também deve ser investigado.”
Penetração da extrema direita no Estado deve ser combatida
O cientista político e professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp André Kaysel avalia o quadro de forma semelhante, criticando a atuação da PM do Distrito Federal e do Exército. “É óbvio como a PM do Distrito Federal não apenas permitiu [os atos], mas colaborou com os invasores, e isso não foi feito sem a conivência do secretário de Segurança e do próprio governador do DF.”
É preocupante, segundo Kaysel, a penetração da extrema direita no Estado e no aparelho repressivo do Estado, problema que deve ser enfrentado. “Não se trata apenas de grupos minoritários. São grupos minoritários organizados, financiados e com penetração no aparelho do Estado do Distrito Federal e do país. Isso faz com que tenhamos que levar muito a sério a desbolsonarização dos aparelhos policiais e das Forças Armadas, o que não será fácil. O governo federal, se quiser sobreviver, claramente terá que enfrentar essas tarefas.”
“Há gente disposta a isso, como aparentemente o Ministro da Justiça, Flávio Dino, mas há gente que contemporiza, como o Ministro da Defesa, que foi colocado lá pelo Lula para justamente tentar uma conciliação com a alta cúpula das Forças Armadas, o que permitiu que durante o mês de novembro e de dezembro os acampamentos continuassem lá”, analisa.
Controle civil e punição dos envolvidos nos crimes contra o Estado imediatamente, além da desmilitarização das polícias, em longo prazo, são caminhos apontados pelo professor. “[Seria preciso] mudar a formação e a instrução das escolas militares e mudar os critérios de promoção, de modo a pluralizar o perfil ideológico das Forças Armadas para que seja mais próximo do perfil da sociedade civil. Isso suscitará muitas resistências, mas, se quisermos sobreviver enquanto democracia, é isso que temos que fazer.”
Atentado à democracia exige respostas
Também professor do Departamento de Ciência Política da Unicamp, Wagner Romão indica a gravidade dos ataques ocorridos neste domingo. “É gravíssimo o que aconteceu ontem. Não há palavras para descrever. Foi algo absolutamente inédito na história da República brasileira. A selvageria, o modo como o patrimônio público foi depredado. Atingiram o coração dos poderes do Brasil. É de uma gravidade extrema.”
Para o cientista político, disputas ideológicas contaminaram as instituições brasileiras.
Ele lembra as posições do governador do DF, Ibaneis Rocha – afastado do cargo por 90 dias pelo STF por conivência com as manifestações antidemocráticas –, e a do secretário de Segurança Pública do DF, Anderson Torres, que chegou a ter a prisão pedida pela Advocacia Geral da União (AGU).
O professor chama a atenção também para a posição de governadores e prefeitos, que toleraram por várias semanas acampamentos que pediam a ruptura institucional – um deles, instalado havia quase dois meses em frente à Escola de Cadetes do Exército em Campinas.
“Há, sem dúvida, uma disputa intensa entre aqueles que têm atuado como agentes públicos de maneira absolutamente ideológica e comprometida com uma visão política autoritária, anticonstitucional e antidemocracia”, diz Romão.
“Não é possível mais que as autoridades deem sustentação a esses movimentos. Não se trata da defesa da livre manifestação. Quando se pede intervenção militar, se pede ‘SOS Forças Armadas’, é golpe. Trata-se de atentado contra a democracia e contra a Constituição. E deve ser investigado, julgado e punido como tal”, afirma.
Atos em defesa da democracia
Diante das ameaças ocorridas, diversas manifestações em defesa da democracia foram convocadas no país para esta segunda-feira. Na Unicamp, a Associação de Docentes da Unicamp (Adunicamp) organizou uma caravana para o ato, marcado para as 17h desta segunda-feira no Largo do Rosário, no centro de Campinas. Dois ônibus deverão partir da sede da entidade para a manifestação.
Nesta manhã, a entidade divulgou uma nota oficial sobre a depredação dos prédios dos três poderes em Brasília, considerando “deploráveis” os atos de vandalismo e chamando os responsáveis pela invasão de “terroristas”.
“A Adunicamp condena veementemente os deploráveis atos golpistas que ocorreram em Brasília”, diz a nota. “Os terroristas atentaram violentamente contra o Estado democrático de direito, depredando os mais simbólicos espaços duramente conquistados por séculos de luta democrática: o palácio presidencial, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal”, avalia. “Torna-se urgente que medidas de responsabilização civil e judicial sejam efetivadas para todos os financiadores, organizadores e participantes desses atos”, conclui o documento.
Também por meio de nota, o Sindicato dos Trabalhadores da Unicamp (STU) disse “repudiar energicamente” os atos que classificou como “terroristas golpistas”. “É inaceitável que um governo eleito democraticamente pela maioria da população seja alvo de atos terroristas, como parte de de um projeto ditatorial por meio do uso da força e da intimidação", continua a nota do STU.
Ainda no domingo, a Unicamp já havia divulgado nota oficial de repúdio aos atos de depredação ocorridos contra os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Leia a íntegra da nota da Unicamp.
Assista ao vídeo feito na manhã do dia 9 de janeiro em frente à Escola de Cadetes.