Em 1975, o projeto da ditadura militar RadamBrasil identificou a possibilidade de exploração de minérios no território Yanomami. Na época, o Coronel Fernando Ramos Pereira, do Território de Roraima, afirmou que a presença de indígenas atrapalhava o desenvolvimento da região. O atual governador do estado, Antonio Denarium, fez um pronunciamento similar em recente entrevista. O missionário Corrado Dalmonego atua junto aos Yanomami há 15 anos e analisa um período dessa história de violação aos direitos dos povos originários.
Dalmonego integra o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), entidade que apoia os indígenas e vem denunciando sistematicamente as violações aos seus direitos. Ele trabalhou na Missão Catrimani por 14 anos. Desde a década de 1960, integrantes da missão, localizada no centro do território Yanomami, atuam junto aos indígenas em questões de saúde, educação, defesa do território e da cultura.
Há um ano, o padre trabalha em colaboração com a Hutukara Associação Yanomami (HAY), produzindo estudos sobre os impactos do garimpo na Terra Indígena (TI). Os materiais mapeiam a situação no território e embasam denúncias. Segundo Dalmonego, “a situação que vemos agora se arrasta há alguns anos e foi denunciada em todas as instâncias possíveis, com documentos e ofícios encaminhados.”
Para o missionário, o governo anterior de Jair Bolsonaro não foi somente omisso, já que foi amplamente notificado da situação. O descaso pode ser entendido como uma “ação intencional e dolosa”. No dia 11 de abril de 2022, representações indígenas entregaram o relatório Yanomami sob ataque aos Três Poderes. “Depois, [o documento] chegou a instâncias internacionais de direitos humanos, além do Ministério Público Federal e da Sexta Câmara da Procuradoria Geral, que solicitaram respostas do governo federal.”
Mesmo com relatos gravíssimos de violência e de desassistência documentados, as respostas insignificantes ou inexistentes. Dalmonego lembra que o MPF classificou as ações da gestão anterior do governo federal como limitadas. “São necessárias mais que ações pontuais, e sim uma atuação contínua por parte das BAPE, as Bases de Proteção Etnoambiental da Frente de Proteção Etnoambiental da Funai”, frisa.
Histórico de violação
Os primeiros garimpeiros chegaram ao território Yanomami poucos meses depois da identificação dos minerais no território na década de 1970, segundo apuração do jornalista Rubens Valente, registrada no livro Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura.
Na época, os indígenas já enfrentavam crises sanitárias devido ao contato com os não indígenas. A Perimetral Norte, obra do período da ditadura militar, que atravessaria a região (e seria posteriormente abandonada, sem conclusão), foi responsável por uma aproximação desastrosa com os povos originários. Eram recorrentes os surtos de sarampo, gripe, tuberculose e malária e as mortes em virtude das enfermidades.
Em 1973, por exemplo, o indigenista Porfírio Carvalho encontrou cerca de 30 indígenas mortos por sarampo em uma aldeia, conforme relata Valente. “Ao lado do cadáver de uma índia já em decomposição, Carvalho encontrou uma criança de cerca de quatro anos que ainda tentava mamar nos seios da mãe morta”, escreve o jornalista. Ele também descreve ter sido nesse mesmo ano encontrado um sobrevivente de uma epidemia: Davi Kopenawa, que se tornou a principal liderança Yanomami anos depois.
A situação piorou com a entrada massiva de garimpeiros no território. Na década de 1980, cerca de 20% da população Yanomami morreu em decorrência de doenças e da violência. Mesmo diante de uma situação grave, aqueles que prestavam assistência e davam apoio aos indígenas na defesa do território, incluindo missionários do CIMI, foram expulsos da área pelo então presidente da Fundação dos Povos Indígenas (Funai), Romero Jucá, no governo de José Sarney.
“Em 1987, quando Romero Jucá impulsionou a expulsão de antropólogos, de equipes de saúde e de missionários da missão Catrimani, em que eu trabalhei nos últimos 14 anos, ficamos com um vazio de informações sobre o que ocorria no território”, diz Dalmonego.
Antropólogos e equipes de saúde também tiveram que sair do território por determinação do então presidente da Funai. As poucas informações que recebiam eram de indígenas que iam para a cidade. O garimpo avançou, e Jucá, um grande incentivador da atividade, chegou a sugerir a redução de 75% da TI Yanomami, que ainda não era demarcada.
Davi Kopenawa liderou uma campanha internacional, que resultou em uma pressão para a demarcação da TI, em 1992, e para o início das operações de combate ao garimpo, já sob o governo Collor. Houve retaliações, como o massacre de 1993. Naquele ano, garimpeiros assassinaram membros do grupo de Haximu e mataram 12 pessoas em um ataque que se seguiu a outros assassinatos, dentre eles o de um bebê. Os assassinos foram condenados por genocídio, o mesmo crime pelo qual está sendo investigado o governo Bolsonaro.
Agravamento recente
Além da responsabilidade do governo federal, que, sob Bolsonaro, retraiu as políticas indigenistas e ambientais, o padre assinala que há uma cadeia internacional ligada aos crimes na TI, já que os produtos da mineração são exportados. Com a crise de 2008, houve ainda a elevação do preço do ouro e uma intensificação da cobiça pelas terras indígenas.
“Se lermos o contexto global, o que se reverte sobre o território Yanomami são também questões globais e internacionais, pensando no preço do ouro e na falta de transparência na cadeia de comercialização. Depois de 2008, com a crise financeira e econômica, houve um incentivo grande à exploração mineral na Amazônia e na terra Yanomami, bem como na terra munduruku e em outras terras indígenas”, analisa.
Ironicamente, lembra ele, no ano de 2019, Roraima declarou o ouro como o segundo principal produto de exportação, mesmo sem haver uma lavra legal no estado. Nos anos seguintes, misteriosamente, o comércio do ouro sumiu dos registros da Receita Federal, voltando ao seu status real: a clandestinidade.
Para o missionário, isso mostra que “há uma falta de transparência sobre o ouro, que necessitaria de uma regulamentação, inexistente no Brasil.”À expansão do garimpo, somou-se a desestruturação do sistema de saúde e dos órgãos de proteção e fiscalização ambiental. “Houve um incremento forte [da crise humanitária e do colapso sanitário] nos últimos quatro anos no governo passado, por um incentivo criminoso e pelo desmonte das instituições incumbidas pela proteção da população no território Yanomami, como Funai, ICMBio e Ibama, além do desmonte das atividades de saúde que, embora ainda com recursos, e recursos aumentados para ações, não foram aplicadas de modo a melhorar as condições de saúde da população.”
Próximos passos
Corrado Dalmonego conta que, junto aos indígenas, o CIMI e diversas outras entidades ambientalistas e indigenistas cobraram incessantemente uma resposta à situação dos Yanomami. “Não se sabia mais a quem fazer apelo. Chegamos às mais altas instâncias que integraram o governo federal, mas as respostas foram: ‘está tudo bem aí’. Ainda hoje, há pessoas que negam a realidade que está sendo vivenciada. Isso precisa ser desmascarado pela mídia, porque ainda há quem diga que é invenção.”
A declaração de emergência na TI Yanomami pelo atual governo federal, para ele, é acertada, mas são necessárias políticas de longo prazo. “Esperamos uma reestruturação depois do sucateamento da política indigenista, da política ambiental e das políticas públicas voltadas aos territórios e povos indígenas”.
Conter o genocídio passa por retirar os garimpeiros, que também impedem a logística do atendimento em saúde, indica Dalmonego. Além disso, diz, é preciso impedir o etnocídio, que é a destruição cultural de um povo. “[Necessitamos de] políticas públicas voltadas à saúde, soberania alimentar, mas também a valorização cultural aos conhecimentos, valorização da língua… uma série de políticas que, nos últimos anos, foram desmanteladas, ignoradas ou hostilizadas.”
Nesta terça-feira (31), o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assinou um decreto que permite o controle aéreo da TI Yanomami pela Aeronáutica. O objetivo é interromper o fluxo de aviões ligados ao garimpo. Um grupo de trabalho para propor medidas de combate às atividades criminosas em terras indígenas também foi criado pelo governo na segunda-feira (30).
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