A lógica fornece as bases para todas as ciências. Por isso, os filósofos da ciência devem empreender esforços em estabelecer pontes entre os diferentes campos científicos, encontrando espaços de mediação entre as áreas. Este é um dos caminhos escolhidos por Fernando Zalamea em sua trajetória intelectual. Professor da Universidade Nacional da Colômbia, ele é um dos convidados para a Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC, evento em que ministrará o curso “Uma breve introdução às perspectivas principais e alternativas sobre Filosofia da Matemática".
Filho de um jornalista e de uma crítica de arte, desde cedo, Zalamea teve contato com diferentes maneiras de pensar o mundo e suas contradições. Sua relação estreita com as lógicas contemporâneas teve início em seu mestrado, orientado por Xavier Caicedo, um dos maiores nomes da lógica na América Latina, período em que também conheceu as ideias de Newton da Costa.
Nesta entrevista, que contou com a colaboração de Walter Carnielli, professor da Unicamp e presidente do comitê consultivo da SP LogIC, Zalamea defende que a paraconsistência é um instrumento importante para que se possa trabalhar com as contradições em bases racionais, sem que isso signifique abrir as portas a qualquer tipo de falácia. Ele também explica como diferentes conhecimentos podem contribuir para a filosofia da matemática e como a paraconsistência pode estar presente em diferentes âmbitos da vida. “O amor, por exemplo, é eternamente paraconsistente”, exemplifica.
Jornal da Unicamp – Em seus estudos, o senhor trabalha com a filosofia da matemática e se dedica especialmente ao conceito de metafísica. Como essas ideias se relacionam em seu curso ministrado na SP LogIC?
Fernando Zalamea – Meu curso aborda diversas correntes da filosofia e da lógica, começando pelas correntes anglo-saxônicas mais tradicionais da filosofia analítica, passando pelas correntes francesas da filosofia sintética da matemática, chegando a correntes alternativas, como a paraconsistência de Newton da Costa, e finalmente a algumas perspectivas mais pessoais dos últimos anos sobre a filosofia e a lógica. É aí que a metafísica aparece, um termo que os lógicos têm odiado ao longo do século XX, mas uma ideia muito influenciada pela corrente anglo-saxônica. Apesar de ser criticada, ela é bastante importante. Graças a ela, é possível recuperar linhas teóricas interessantes, particularmente a Teoria dos Topos de Grothendieck, uma teoria ampla, que recupera as ideias de universalidade e arquétipos próprios da metafísica, as quais se conectam fortemente com a lógica em diversos aspectos.
Assim, a Teoria dos Topos pode cobrir uma imensa variedade de lógicas, como a intuicionista e a paraconsistente, passando pela lógica clássica. No curso, tento enfatizar a riqueza e a variedade de perspectivas e a luta contra qualquer tipo de reducionismo. Não estou de acordo, por exemplo, com a filosofia analítica reducionista anglo-saxônica, nem com outros tipos de reduções, e prefiro a variedade, o que tem sido sempre uma das grandes forças do pensamento de Newton da Costa.
JU – Pelo que compreendo, o senhor tem como grande objetivo pensar e evidenciar aspectos que entrelaçam os campos da matemática e das ciências. Isso tem relação com a ideia de metafísica da matemática?
Fernando Zalamea – Sim, há uma conexão muito forte entre essas ideias. A ideia fundamental é que a matemática é rica tanto por sua diversidade, quanto por sua capacidade de unidade. Os diversos campos da matemática, como as regiões topológicas, algébricas, combinatórias, diferenciais, lógicas, geométricas, toda essa imensa variedade de matemáticas é o início de algo superior que as engloba, como uma visão universal. Essa visão universal, por um lado, combina-se muito bem com teorias de categorias e, por outro, com as variedades lógicas.
Quando conectamos essas diversas aproximações, vemos detalhadas as diferentes regiões da matemática, como arquétipos superiores que permitem unir e projetar tudo isso a conceitos mais amplos e universais. Aí aparece o que poderíamos chamar de metafísica, o que está mais além. Muitos dos grandes matemáticos, dentre os quais Newton da Costa, sempre quiseram ir além das aparências, que são apenas fragmentos de nossa visão. Isso é o "meta" de metafísica, ir às profundezas.
JU – Pelo fato de a lógica estar na base das ciências, essa busca por mediações entre áreas também põe em contato campos diferentes do conhecimento, como as ciências humanas? Há espaço hoje para essa busca de relações entre os campos científicos? E como a lógica pode contribuir para isso?
Fernando Zalamea – Sim, a busca por conexões sempre foi fundamental. Desde os gregos, os grandes pensadores de diferentes âmbitos científicos ao menos tentaram ser universalistas, não ficaram restritos a seus pequenos fragmentos de disciplinas e buscaram essas conexões. As lógicas auxiliam muito, elas são um grande instrumental e outorgam luzes para construir essas conexões.
O caso da lógica paraconsistente é um dos mais interessantes, é um princípio que se constrói a partir de um ponto de vista puramente lógico para permitir a existência de contradições locais sem que todo o sistema se rompa. A princípio, parece ser uma construção puramente teórica de um jovem brasileiro dos anos 1960, mas, pouco a pouco, nos damos conta de que ela tem consequências gigantescas para o mundo. Isto, porque o mundo usual tem contradições e não se rompe, estamos permanentemente vivendo entre contradições, desde nossa pequena psicologia pessoal, até o mundo em geral, em que teorias como a relatividade geral e a mecânica quântica são contraditórias. No entanto, é fundamental que ambas funcionem.
Uma lógica geral que permita a existência dessas contradições é bem importante, e essa é uma das aplicações interessantes da paraconsistência. Percebemos que as aplicações surgem, pouco a pouco, conforme passa o tempo. Isso é típico na matemática, que vai criando mundos ideais que, em algum momento, encarnam a realidade.
JU – Em seu livro “Filosofia Sintética das Matemáticas Contemporâneas” (Synthetic Philosophy of Contemporary Mathematics, MIT Press, 2012), são mencionados filósofos como Charles Sanders Peirce, Albert Lautman, Merleau-Ponty e Gilles Deleuze, que teriam trazido importantes contribuições para a filosofia da matemática. No entanto, são pensadores que não demonstraram teoremas. Como explicar, então, sua contribuição para a matemática?
Fernando Zalamea – Essa é uma pergunta interessante, há nela uma grande riqueza de pensamento. Há um exemplo simples que nos ajuda a pensar por essa linha. Vejamos o caso da literatura e da crítica literária. Os romances, poemas e contos são criados por escritores, mas como se analisam essas obras? Não são os escritores que as analisam, mas sim os críticos literários, que utilizam uma rede de conhecimentos que dão conta da emergência de criatividade destas obras. É exatamente o que ocorre com a matemática, ainda que isso não tenha sido ainda estudado o suficiente.
Na matemática, temos um âmbito criativo, dos matemáticos criadores, que produzem seus exemplos, conceitos, ideias e teoremas, o que gera uma reflexão sobre tudo isso. O matemático não é, necessariamente, o melhor a refletir sobre sua própria obra, assim como o escritor pode não ser o melhor a pensar sobre suas obras. Assim como um crítico que não escreveu um romance, mas sabe explicá-lo muito melhor do que o escritor, o mesmo ocorre com um filósofo que nunca demonstrou um teorema.
Como venho tratando já há algum tempo, são os que compõem uma "crítica matemática". O pensamento crítico da matemática teria que vir de fora, de outros pensadores que não são matemáticos unicamente. Claro, se uma pessoa é matemática, pode ser mais fácil ser um pensador da matemática, mas não há a necessidade de demonstrar teoremas para refletir sobre ela. Isso é o que fizeram grandes pensadores. [Albert] Lautman, para mim, é um dos principais pensadores da matemática do século XX, muito pouco conhecido. [Charles Sanders] Peirce sim, foi um matemático, mas também um grande pensador da matemática. Há muitos pensadores que não foram matemáticos, mas que dizem coisas sobre a disciplina melhores do que diriam os matemáticos que a criaram.
JU – A respeito das ideias de Peirce, o senhor faz referência ao raciocínio abdutivo, que parece sair um pouco do dualismo entre o verdadeiro e falso da lógica clássica. É possível explicar um pouco essa ideia? Há uma relação entre a abdução e a paraconsistência?
Fernando Zalamea – Essa conexão entre a abdução e a paraconsistência não foi ainda proposta, é algo em estudo. A ideia fundamental da abdução é o inverso da dedução. Nesta, a linha teórica é demonstrar coisas a partir de premissas. Na abdução, há um estado de informações no mundo e se quer encontrar hipóteses que expliquem este estado de coisas. É dar um passo para trás, como pensava Peirce, para encontrar hipóteses que sirvam para explicar as coisas. Para encontrá-las, há muitas técnicas, como a coerência, a sensibilidade, todas para identificar hipóteses que melhor se adequem a um estado de informação.
Mas é certo que, dentro dessas hipóteses, não há uma lógica estrita governando essa busca, é um processo imaginativo. Eu diria que a abdução está ligada à imaginação, é uma espécie de lógica vaga fundamental. A criatividade requer uma certa imprecisão, ligada à imaginação e à plasticidade, não pode ser uma camisa de força. Em contrapartida, a dedução é rígida, tem regras e cânones. São processos distintos, e a abdução envolve maior liberdade. Aliás, seria muito interessante conectá-la à lógica paraconsistente. Que eu saiba, isso ainda não foi feito¹.
JU – Hoje, vivemos em um tempo em que as pessoas estão mais vulneráveis a sistemas que propagam desinformação. Acredita que a difusão da lógica e da racionalidade pode contribuir para irmos contra essa tendência?
Fernando Zalamea – Essa é uma das grandes tendências perigosas de nossa época, os efeitos da desinformação, e vocês, no Brasil, sabem disso mais do que ninguém, viveram um desses efeitos recentemente. Na Colômbia, isso ainda não ocorreu dessa forma, nossa sociedade é mais fechada, há algumas diferenças sociais nesse sentido. Para além da lógica, qualquer pensamento sensato, que busque sentidos comuns, nos auxilia a lutar contra as barbaridades que circulam pelas redes. E, além da formação em lógica, algo que me parece importante também é o distanciamento do olhar.
Estamos tão acumulados de informação que não conseguimos tomar distância suficiente para calibrar nosso pensamento racional. Estamos soterrados de informações, então, se nos afastamos, um pouco que seja, já conseguimos ter mais pensamento crítico. Como surge o pensamento crítico? Em primeiro lugar, do sentido comum, não se pode crer em qualquer coisa, depois de uma certa formação intelectual, e aí da capacidade de conectar-se com o mundo, de não estar encerrado em sua própria loucura. No entanto, não sei se conseguiremos, porque o domínio das redes é aterrador. Não sei se bons estudos de lógica nos ajudariam a lutar contra [Donald] Trump, é um monstro que escapa de nossas capacidades.
JU – Paul Cohen, grande lógico e ganhador da Medalha Fields em 1966, disse uma vez que “em algum momento no futuro, os matemáticos serão substituídos por computadores”. Qual sua perspectiva em relação às tecnologias de inteligência artificial mais recentes?
Fernando Zalamea – A lógica auxilia muito por ter uma grande capacidade dinâmica, sobretudo as que não são clássicas, como as intuicionistas, as alternativas, muito ligadas à computabilidade, auxiliam no desenvolvimento de máquinas. Evidentemente, os avanços da inteligência artificial serão absolutamente impressionantes, incluindo híbridos entre humanos e máquinas. Esta é uma realidade, isso vai acontecer. E me agrada a ideia de que não verei isso ocorrer (risos), sou um romântico que vive no século XIX, e o que mais me interessa são os românticos alemães e o idealismo. Não me interessa muito o que ocorrerá no futuro, mas que ocorrerá, ocorrerá. Vai acontecer com você, sem dúvidas, e pode ser apaixonante aos jovens.
JU – A paraconsistência tem como base admitir a existência de contradições e desenvolver mecanismos para trabalhar com elas de forma racional. Como fazer isso sem que ela seja utilizada para justificar decisões deliberadamente erradas, injustiças, preconceitos?
Fernando Zalamea – Você propõe um problema delicado. Provavelmente, um dos caminhos é definirmos bem o que é local e o global. A paraconsistência permite pequenas contradições locais sem que o sistema exploda. Isso acontece na vida cotidiana de forma permanente, temos contradições locais, hoje pensamos algo, e amanhã, outra coisa. O amor, por exemplo, é eternamente paraconsistente. No entanto, isso não significa que qualquer coisa valha. Não é a partir de contradições locais que devemos aceitar que qualquer coisa seja válida, isso garante que, globalmente, o sistema se mantenha estável. Não se pode inferir que, a partir de certas vulnerabilidades, tudo seja equivalente e possa ser expresso.
Há uma certa coerência dentro do sistema geral, ainda que no local existam pequenas contradições. Isso é importante, porque pode ocorrer tanto na vida cotidiana, quanto nos sistemas científicos, como demonstra a escola brasileira de lógica. Há que se desconectar as ideias de paraconsistência do pós-modernismo, são duas coisas completamente distintas. A paraconsistência é uma construção moderna, elaborada por Newton da Costa, e segue sendo moderna no sentido pleno da palavra, por envolver a possibilidade de haver uma visão universal das coisas. Tudo isso em contraposição às linhas mais radicais do pós-modernismo, nas quais qualquer coisa é equivalente, não há crenças, não há valores universais. Nesse sentido, o pós-modernismo é que vai pela linha mais preocupante que você aponta, enquanto a paraconsistência é uma abordagem bastante útil e consistente.
Notas:
1. Walter Carnielli é autor de trabalhos envolvendo paraconsistência e abdução:
Surviving Abduction.
Walter Carnielli
Logic Journal of the IGPL, Volume 14, Issue 2, March 2006, Pages 237–256.
Formal (In)consistency, Abduction and Modalities.
Juliana Bueno-Soler, Walter Carnielli, Marcelo E. Coniglio, Abilio Rodrigues Filho
In: Springer Handbook of Model-Based Science
Olhares Lógicos Textos: Felipe Mateus |