Quando a paraconsistência surgiu como novo paradigma lógico, a resistência manifestada por muitos da comunidade científica residia na dificuldade em admitir a existência de contradições e ir contra um dos princípios básicos da lógica aristotélica, o princípio da não-contradição. Ou seja, uma coisa não pode ser e não ser algo ao mesmo tempo sob um mesmo aspecto. O problema se intensifica porque, de acordo com o cânone da chamada lógica clássica, tudo poderia derivar de uma contradição e, como consequência, qualquer raciocínio se tornaria válido.
Entretanto, o interesse de lógicos paraconsistentes, como Newton da Costa, nunca residiu no mérito dessas contradições. A inovação consiste em reconhecer sua existência e pensar formas de trabalhar com elas em bases racionais. Mas uma corrente de pensamento vai além e diz que sim, algumas contradições são verdadeiras. É o dialeteísmo, perspectiva que resolveria certos paradoxos e dialoga com algumas das mais antigas tradições filosóficas orientais, como alguns princípios do budismo.
As possibilidades de aplicação do dialeteísmo nos sistemas lógicos contemporâneos, as discussões a respeito de sua validade e resistências por parte de matemáticos e filósofos são temas da entrevista com Graham Priest, professor de filosofia da Universidade da Cidade de Nova York (CUNY) e convidado da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC.
Nesta conversa com o Jornal da Unicamp e com Walter Carnielli, professor da Unicamp e presidente do comitê consultivo da SP LogIC, Priest explica como seu interesse por paradoxos o levou ao estudo da lógica e do dialeteísmo. Ele adverte que, apesar de lançarem luz sobre contradições, nenhuma das correntes lógicas discorda da importância de se estabelecer bases racionais de reflexão e de não se validar qualquer argumento irracional.
Jornal da Unicamp – Um dos principais conceitos com os quais você trabalha é o dialeteísmo. Pelo que pude entender, ele admite que algumas contradições são verdadeiras, diferentemente de outras lógicas contemporâneas que as identificam e buscam uma forma de trabalhar com elas, sem se preocupar se são ou não verdadeiras. Essa diferença afeta a difusão do dialeteísmo? Há alguma resistência por parte dos lógicos?
Graham Priest – Você está certo, o dialeteísmo é a visão de que algumas contradições são verdadeiras. Como comentei, sempre me interessei por essa visão, foi o que me levou à paraconsistência. No entanto, a paraconsistência teve uma má reputação em seus anos iniciais. Os lógicos clássicos não gostavam da ideia de trabalhar com contradições. Com o dialeteísmo, a questão é pior, porque ele vai contra um princípio muito importante para a filosofia ocidental, que é o princípio da não-contradição. Um dialeteísta precisa da lógica paraconsistente, mas o contrário não ocorre. Você não precisa ser dialeteísta para ser paraconsistente, mas se você é adepto dele, o argumento paraconsistente faz muito sentido.
A maior parte dos lógicos paraconsistentes brasileiros, por exemplo, não é adepta do dialeteísmo. E é verdade: você pode usar a lógica paraconsistente por diversas razões, mas ela não é comprometida com o dialeteísmo. Até entre lógicos paraconsistentes o dialeteísmo é visto como uma visão minoritária. Claro que existem debates entre lógicos sobre o dialeteísmo, assim como entre outros filósofos.
JU – Em sua aula magna na SP LogIC, você aborda a história da paraconsistência, de seu início até chegarmos ao presente. Qual o lugar da paraconsistência no campo da lógica atual? Ela continua a ser um novo paradigma? Existem novos desafios e perspectivas?
Graham Priest – Antes de pensar nisso, vamos voltar um pouco no tempo: no início do século XX, houve uma revolução na lógica quando as técnicas da matemática foram associadas a ela pela primeira vez. A consequência disso é que um tipo de teoria da lógica se tornou padrão e ortodoxa, ganhando o nome de lógica clássica. Esse é um nome que pode induzir ao erro, porque ela não tem nada a ver com as grandes civilizações clássicas, como os antigos Egito, Roma, Grécia, Índia e China. Essa foi uma invenção do fim do século XIX. O que ocorreu ao longo do século XX foi o desenvolvimento de uma série de lógicas formais utilizando as mesmas técnicas matemáticas. Por razões óbvias, elas ganharam o nome de lógicas não-clássicas. Existem diversas delas e a lógica paraconsistente é uma delas.
O trabalho com a paraconsitência começou na metade do século XX, entre os anos 1950 e 1960. A ideia de trabalhar com contradições era horrível para grande parte dos filósofos ocidentais. Isso mudou quando a Sociedade Matemática Americana (American Mathematical Society) acrescentou, em 1991, a paraconsistência como uma das categorias de classificação de seus artigos. Depois disso, você não poderia mais argumentar que se tratava de uma disciplina ilegítima.
Com os filósofos é diferente. Isso ainda é algo controverso, mas na matemática já não existe essa disputa. Por isso, trabalhar com a lógica paraconsistente tem sido uma grande coisa nos últimos 70 anos. Hoje é uma área muito bem estabelecida, há muitos lógicos que se dedicam a ela e nós os conhecemos, sabemos de seu trabalho. Há hoje muitas formas de se explorar a lógica e estamos descobrindo novas maneiras, então novas formas de lógica paraconsistente serão ainda desenvolvidas. Isso na matemática. Ainda há questões sobre como trabalhar com tudo isso filosoficamente.
Há ainda discussões entre lógicos clássicos e paraconsistentes, entre diferentes linhas de paraconsistência. São debates que vão fundo na natureza da filosofia, porque a visão de que não é possível tolerar contradições é tão arraigada na filosofia ocidental que qualquer coisa que desafie essa ideia deve ter implicações filosóficas muito significativas e acredito que ainda não começamos a explorá-las. Espero que esse debate continue por um bom tempo.
JU – Pelo que entendo, a paraconsistência tem maior aceitação na matemática que na filosofia. Diante disso, é possível identificar as implicações dela também em outras áreas, como nas ciências humanas?
Graham Priest – A lógica, em si, tem implicações para além da matemática e da filosofia. Dois exemplos são a tecnologia da informação e a linguística. Hoje em dia, quando lidamos com dados, na maior parte das vezes são dados inconsistentes, que requerem uma lógica paraconsistente. Na linguística, alguns lógicos paraconsistentes encontram aplicação para seus saberes. Às vezes vemos aplicações também na psicologia. A questão sobre como as pessoas pensam não é exatamente uma questão de lógica, mas de psicologia. Os lógicos estudam como as pessoas organizam o raciocínio, não como o praticam. Isso é parte da psicologia, ainda que sejam questões conectadas. Também há conexões com a inteligência artificial, em que sistemas precisam raciocinar de determinada forma.
JU – O senhor também já teve a experiência de trabalhar com filosofias asiáticas. Poderia falar um pouco sobre as tradições filosóficas com as quais teve contato e se há nelas uma abertura maior a ideias como a paraconsistência?
Graham Priest – Primeiro é preciso deixar claro que não existe uma filosofia asiática. Há muitas tradições filosóficas na Ásia: indianas, chinesas, japonesas. Dentro de um mesmo país, há várias tradições. Na Índia há o hinduísmo, o budismo. Na China há o confucionismo. Algumas dessas tradições aceitam o princípio da não-contradição, enquanto outras não o aceitam. Há muitos debates entre as tradições asiáticas acerca do princípio da não-contradição. Mas é possível dizer que, na filosofia ocidental, ou melhor, entre as filosofias ocidentais, porque também há várias tradições no Ocidente, a aceitação do princípio da não-contradição é uma postura ortodoxa. Uma das tradições orientais com as quais trabalho é o budismo encontrado no Japão, Índia, China, Coreia e em outros locais.
Há debates entre os filósofos budistas a respeito do princípio da não-contradição, mas alguns deles são, claramente, dialeteístas. Se recorrermos aos sutras, fica claro que muitos filósofos indianos, entre os séculos 5 a.C. e 4 a.C., aceitavam um princípio chamado Catuṣkoṭi, de nome sânscrito, que se estrutura em quatro pontos: dada uma sentença, há quatro possibilidades – ela pode ser verdadeira, pode ser falsa, pode ser verdadeira e falsa ao mesmo tempo ou pode não ser nem verdadeira nem falsa. Se uma pessoa compreende o terceiro ponto, segundo o qual uma sentença pode ser verdadeira ou falsa, claramente compreende a ideia do dialeteísmo.
Claro que esses filósofos não dispunham de técnicas matemáticas. Elas só se tornaram disponíveis nos últimos cem anos. Mas há uma questão sobre como podemos usar técnicas modernas da lógica para compreender tradições filosóficas antigas, algo que os lógicos fazem o tempo todo na filosofia, não apenas com as tradições indianas. Fazemos isso para analisar Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino, [Georg Wilhelm Friedrich] Hegel, da mesma forma que isso é feito com filosofias asiáticas antigas.
JU – Hoje vivemos em um mundo em que as contradições se tornam evidentes. O senhor acredita que precisamos de mais paraconsistência para sabermos lidar com elas?
Graham Priest – Bem, acredito que minha resposta pode desapontá-lo. Contradição pode significar muitas coisas e, frequentemente, o que as pessoas dizem quando se referem à contradição não é o mesmo a que os lógicos se referem. Um exemplo disso é o caso de [Karl] Marx. Ele fala de contradições o tempo todo, às vezes da forma como os lógicos se referem a ela. Mas, geralmente, ele e [Friedrich] Engels a utilizam de maneira diferente. Ele diz que o sistema capitalista é contraditório porque os meios de produção estão sob propriedade privada, enquanto os meios de trabalho são públicos. Isso não é uma contradição no sentido lógico. Dentro da lógica, uma contradição seria dizer que está e não está chovendo, por exemplo, ou dizer que os meios de produção estão e não estão sob propriedade privada.
Acredito que, se olharmos para a forma como as pessoas falam de contradições, percebemos que não é no sentido lógico. As implicações da lógica na forma como as pessoas falam de contradições seriam irrelevantes. Há espaços no mundo contemporâneo em que a contradição, no sentido lógico, é importante, como o caso da tecnologia da informação. Há enormes bases de dados hoje que mineram informações que, certamente, são inconsistentes. Nesses casos, é necessária lógica paraconsistente. Não é o tipo de aplicação mais empolgante, mas é importante.
Agora, uma coisa que é importante dizer é que, hoje em dia, alguns políticos se contradizem. Isso não é novidade. O que vemos mais intensamente nos últimos cinco anos é o que temos chamado de fatos alternativos. Nós nos tornamos mestres nisso aqui nos Estados Unidos e vocês, recentemente, tiveram uma amostra disso no Brasil. Alguns desses fatos alternativos trazem consigo contradições com as quais os políticos se mostram comprometidos. [Donald] Trump é um exemplo disso, [Jair] Bolsonaro é outro. E um pensamento que pode surgir é o de que, se você tolera contradições, tudo pode ser tolerado, e não pode!
A paraconsistência não é comprometida com nenhum tipo de relativismo, nenhum tipo de fato alternativo ou de realidade paralela. Isso é besteira! E o fato de admitir algumas contradições não significa que elas sejam verdadeiras. Porque há uma diferença entre a lógica e a racionalidade. A lógica nos diz que, em certo sentido, podemos aceitar contradições, mas isso não significa que as pessoas devam acreditar em contradições irracionais. Se as pessoas seguirem esse pensamento, a paraconsistência legitimaria todas as besteiras que saem da boca de alguns políticos, por exemplo.
JU – Fico feliz com o fato de o senhor levantar essa questão. Minha próxima pergunta seria justamente esta: como utilizar a paraconsistência sem que ela seja usada para justificar erros e injustiças? Pelo que entendo, a questão é estabelecer nossas bases racionais.
Graham Priest – Sim, lógicos paraconsistentes discordam uns dos outros em vários aspectos. Mas não conheço nenhum lógico que usaria a paraconsistência para endossar esse tipo de pós-modernismo. Claro que pensar se certas contradições são verdadeiras ou não levanta a questão: como saber isso? Essa é uma questão filosófica muito significativa e não tenho uma resposta clara.
JU – Ao invés de pensarmos, então, em como utilizar a paraconsistência nas contradições de nossas vidas, seria mais produtivo reforçarmos nossas bases racionais?
Graham Priest – A natureza e o funcionamento da racionalidade são as bases de qualquer corrente filosófica e isso afeta muitas coisas. Por isso, entender a racionalidade é importante e o raciocínio é uma parte dela. A forma como você raciocina que envolve a paraconsistência e sua legitimidade. Em resumo, estudar a racionalidade é absolutamente central. As discussões sobre a paraconsistência são uma pequena parte disso.