Em uma carta publicada na revista Science, um grupo de pesquisadores brasileiros, que atua no Brasil e em outros países, chama a atenção para a necessidade de desenvolver programas capazes de atrair e reter os cientistas formados na última década.
Ainda que o país tenha mais do que dobrado o número de doutores formados nos últimos 20 anos e subido dez posições no ranking de publicação de artigos entre 2007 e 2011, os repetidos cortes orçamentários desde 2015 prejudicaram imensamente o sistema de ciência e tecnologia do país, argumentam os autores (Leia mais).
Como resultado, eles destacam, muitos dos cerca de 100 mil cientistas em início de carreira estão desempregados ou em trabalhos que não demandam a formação acadêmica de cientista. É uma mão de obra altamente qualificada, formada com investimento público, inclusive por meio do programa Ciência sem Fronteiras.
“Em 2019, a taxa de desemprego nesse grupo era 12 vezes mais alta do que a média global”, escrevem os pesquisadores, que atuam na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), universidades federais de Goiás (UFG) e da Bahia (UFBA), além de instituições da Suécia, Estados Unidos e Reino Unido.
“Fala-se muito de fuga de cérebros, mas uma grande parte fica aqui mesmo, em trabalhos que não exigem o longo preparo e investimento de uma carreira científica. Claro que toda profissão é digna, a questão é que o país optou num momento em investir em formar pesquisadores e agora não busca recuperar esse investimento. É como construir uma mansão e abandoná-la”, compara Thaís Guedes, atualmente pesquisadora no Instituto de Biologia (IB) da Unicamp e primeira autora da carta.
Guedes é apoiada pela Fapesp na modalidade Jovem Pesquisador, que busca estimular a criação de oportunidade de trabalho para pesquisadores com experiência internacional demonstrada em pesquisa após a conclusão do doutorado.
Para pesquisadores que ainda não conseguiram uma posição permanente numa instituição de pesquisa, a Fapesp também oferece Auxílios à Pesquisa como, por exemplo, o Projeto Geração.
Na avaliação do presidente da Fapesp, Marco Antonio Zago, os sucessivos cortes de orçamento certamente foram bastante prejudiciais ao sistema de ciência e tecnologia brasileiro e, juntamente com a falta de reajuste do valor das bolsas do sistema federal, dificultaram a retenção e atração de jovens pesquisadores.
“No entanto, isso não é tudo”, diz Zago. Por exemplo, os valores das bolsas da FAPESP correspondem a cerca do dobro das bolsas do sistema federal. Apesar disso, a demanda de bolsas de doutorado na Fundação caiu cerca de 30% no período de 2020 a 2022 (a entrevista foi concedida antes do reajuste anunciado ontem, 16/02, pelo governo federal).
Ele pondera, além disso, que há alguns anos existe uma crise global de formação de recursos humanos qualificados na ciência, agravada pela pandemia, em parte pelo desinteresse dos jovens pela carreira científica. Para Zago, esse fator não só deve ser levado em conta, como precisa inspirar a criação de políticas e programas para atrair os melhores cérebros para o Brasil.
Mesmo com a recuperação após o pico da pandemia, a queda persistiu. Alguns indicadores demonstram queda de aproximadamente 30% nos pedidos de auxílio e bolsas para a FAPESP, por exemplo. A diminuição foi acompanhada pela diminuição na procura por cursos de pós-graduação e de mais de 40% nos cursos de graduação em engenharia na rede privada, entre 2014 e 2020 (Leia mais).
“Nos Estados Unidos, busca-se sanar esse problema atraindo jovens pesquisadores altamente qualificados de diversas partes do mundo, como China, Índia e Brasil. Precisamos competir pelos cérebros que irão gerar as inovações do futuro, ou estaremos fadados a importar tecnologias desenvolvidas em outros países”, afirma o presidente da Fundação.
Recentemente, a Fapesp e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) lançaram um edital para a fixação de jovens pesquisadores em projetos de pesquisa tanto em universidades e institutos de pesquisa quanto em empresas (Leia mais).
Oportunidades
Outro coautor da carta publicada na Science, o paulista Alexandre Antonelli, diretor científico dos Jardins Botânicos Reais Kew, ou Kew Gardens, na Inglaterra, e professor da Universidade de Gotemburgo, na Suécia, afirma que o programa Ciência sem Fronteiras, que concedeu quase 104 mil bolsas no exterior e custou R$ 13 bilhões, foi algo grandioso mesmo para os padrões internacionais. Porém, o Brasil não apenas encerrou o programa, em 2017, como reduziu os investimentos em ciência drasticamente desde então.
“Foi maravilhoso ver o grande número de estudantes formados pelo programa. Eu nunca tinha visto algo assim em outro país. Para um novo programa do tipo, porém, seria importante uma seleção mais criteriosa e com investimentos mais estáveis e em longo prazo, de forma a usar os recursos de forma mais efetiva e contemplar aqueles que pudessem realmente fazer o Brasil se destacar no cenário científico internacional”, acredita o pesquisador.
Além disso, Antonelli ressalta a importância de garantir novas oportunidades e dar condições de trabalho atrativas para os melhores pesquisadores brasileiros, inclusive os que estão atualmente fora do país.
“Na China, houve incentivos para o retorno de pesquisadores que estavam fora, principalmente nos Estados Unidos, com salários atrativos, verba para montagem de laboratórios e flexibilidade para os pesquisadores criarem seus programas de pesquisa. Algo assim no Brasil poderia atrair pessoas que estão na indústria ou fora do país, além de recuperar o que se investiu na formação desses cientistas e mandar um sinal importante para a população, incluindo futuros estudantes, de que há interesse em investir em ciência e tecnologia”, afirma Antonelli.
Para Márcio de Castro Silva Filho, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP) e pró-reitor de Pós-Graduação da universidade, um passo fundamental na atração de jovens pesquisadores é uma mudança substancial na pós-graduação brasileira.
Silva Filho lidera uma proposta de reformulação dos cursos de mestrado e doutorado no Brasil, visando diminuir o tempo de formação de pesquisadores e dar maior autonomia para as universidades gerirem seus programas de pós-graduação.
“Nosso modelo de pós-graduação é de 1965 e pouco mudou desde então. Hoje, um doutor demora em média nove anos para se formar, chegando ao mercado com quase 40 anos. Na Europa e Estados Unidos, esse tempo é de cinco anos, com a pessoa conseguindo o título de doutor com cerca de 30 anos de idade”, exemplifica.
A proposta foi apresentada ao Conselho Nacional de Educação (CNE) do Ministério da Educação e também será comunicada à comissão que prepara o Plano Nacional de Pós-Graduação (PNPG) 2021-2030. Dentro de uma proposta mais abrangente, um aspecto a ser considerado é que o mestrado seria uma preparação para o doutorado, com cerca de um ano de duração. Ou seja, o tempo de titulação do mestrado e doutorado seria de cinco anos, diferentemente dos cerca de nove anos atuais. Entretanto, para os programas que optarem por permanecer no sistema atual, não haverá problemas.
Além disso, a proposta propõe uma maior autonomia das universidades na pós-graduação. Hoje as instituições dependem de aprovação da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para mudanças como fusão de programas, alteração no nome e áreas de concentração ou realocação de bolsas dentro da universidade.
Silva Filho acredita ainda que a pós-graduação deva prover novas habilidades que possam ser aplicadas também fora da carreira acadêmica, como a atuação em empresas, entidades governamentais e do terceiro setor.
“Em outros países, a absorção de doutores já ocorre em grande parte fora da academia. Na USP, por exemplo, estamos implantando uma série de ações na pós-graduação para dar aos alunos habilidades que possam ser usadas além da pesquisa, preparando-os melhor para um mundo em rápida transformação”, conclui.
Os autores da carta ressaltam que a atração de jovens pesquisadores para o Brasil é essencial para cumprir compromissos que já foram firmados, como as metas do acordo climático de Paris, o Quadro Global de Biodiversidade Kunming-Montreal e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU).
A carta Invest in early-career researchers in Brazil foi assinada por Thaís B. Guedes, José Alexandre F. Diniz-Filho, Luisa Maria Diele-Viegas, João Filipe R. Tonini e Alexandre Antonelli.