O conhecimento científico é imutável? Quais são as condições para que novas ideias questionem o que está estabelecido e, assim, surjam novos conhecimentos? São questões como essas que motivam o pensamento de Diderik Batens, convidado da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC. Responsável por um curso sobre lógica adaptativa e raciocínio revogável, Batens aborda como essas perspectivas contribuem para o avanço das ciências por meio da formulação de hipóteses que expliquem a realidade.
Nascido em 1944, em Berlim, mas de nacionalidade belga, Batens é professor emérito da Universidade de Ghent, na Bélgica, e membro do Centro de Lógica e Filosofia da Ciência da instituição. Na entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, ele aborda temas como as diferenças de formação entre lógicos oriundos da filosofia e da matemática e as contribuições do raciocínio revogável para o avanço científico. A entrevista teve a colaboração de Walter Carnielli, professor da Unicamp e presidente do comitê consultivo da SP LogIC, e de Eduardo Quirino, pós-graduando em filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina (USFC) e aluno da SP LogIC.
Jornal da Unicamp – O senhor tem uma trajetória interessante, porque, além de estruturar sua formação em filosofia, também passou pelo direito. Como esses estudos influenciaram sua escolha pela lógica?
Diderik Batens – Bem, na época em que estudei direito, tive um grande embasamento na filosofia. Era um tempo em que, para dizer aos pais que você estudaria filosofia, você precisava convencê-los de que não passaria o resto da vida em outras ocupações (risos). Então acabei encontrando uma desculpa, dizendo que ia estudar direito, ao mesmo tempo em que estudava filosofia. Lembro de ter prestado os exames para o curso de direito em junho e, em setembro, os exames para filosofia, isso em meados de 1963 ou 1964. Comecei os dois cursos e, como na Bélgica o curso de direito leva cinco anos, em certo ponto estava trabalhando já em minha tese de filosofia. Na verdade, estudei filosofia porque meu pai era uma pessoa muito especial, que gostava de discutir ideias o tempo todo. Ele conhecia uma pessoa e, logo, já estava discutindo algum tema com ela. Eu estava intrigado com alguns tipos de questões epistemológicas, como se há um jeito correto de decidir sobre as coisas, se existe um ponto de vista correto ou diversos pontos de vista. Foi isso que me levou à filosofia e, por sorte, segui na epistemologia.
JU – Então o senhor chegou à lógica por meio da filosofia?
Diderik Batens – Sim, mas também pelo estudo da epistemologia e da razão. Eu refletia: “existem bons argumentos e existem argumentos convincentes, mas o que isso significa?”, então, por sorte, pude continuar nesse caminho. Na área de epistemologia, cheguei a ministrar um curso em psicologia. Era um curso muito bom, havia alunos de várias áreas da psicologia. Mas, infelizmente, me tornei bastante popular (risos), os alunos manifestaram à direção da faculdade que o curso era tão interessante que todos os estudantes de psicologia deveriam passar por ele. Então transferiram as aulas para o segundo ano da faculdade. Antes, era algo muito organizado, havia discussões com pequenos grupos a cada duas semanas, eles conseguiam fazer as leituras prévias. Com a mudança, passei a reproduzir a aula para cerca de 600 alunos.
JU – Sua formação é ligada à filosofia, em comparação a outros especialistas da área, mesmo outros professores convidados da SP LogIC, que vêm da matemática e da física. Existem diferenças entre esses tipos de formação no campo da lógica? Como elas se conectam ou contrastam?
Diderik Batens – Geralmente, os matemáticos são os primeiros a se interessarem pela lógica, porque ela é necessária para o estudo de matemática teórica. Pela minha experiência, filósofos têm a tendência de pensarem mais na razão dos seres humanos, sejam eles cientistas ou não. Por exemplo, eu trabalho com o conceito de raciocínio revogável, uma forma de raciocínio que ocorre frequentemente no cotidiano. Por exemplo, se você conseguir ter um olhar distanciado deste ambiente, pode ver claramente que choveu, porque a rua está molhada. Claro, existe a possibilidade de um caminhão de bombeiros ter passado e molhado tudo, mas isso é muito improvável, você conclui que choveu. A menos que apresentem uma explicação muito específica de por que não teria chovido, do contrário, não mudamos nosso pensamento. Essa é uma situação muito frequente. Há hoje um grupo considerável de lógicos, mas que não estão muito interessados em raciocínio revogável, há um interesse maior em lógica dedutiva.
JU – Ao longo de sua carreira, houve alguma resistência por parte de outros lógicos pelo senhor não ter vindo da matemática?
Diderik Batens – Muito pouco, isso depende da pessoa. Alguns têm uma ideia muito grande de si mesmos e subjugam os demais, então depende do caso. Mas você entrevistou Newton da Costa, sabe que a paraconsistência foi um grande acontecimento e que houve uma grande resistência contra ela. Lembro-me de uma vez, estava em Pittsburgh, em 1982, e encontrei um outro lógico famoso, que tinha conhecido nos anos 1970. Ele me perguntou com o que estava trabalhando, e disse que estava estudando paraconsistência. Ele simplesmente me respondeu: “você pode trabalhar com o que quiser, só não amole os outros”. Várias outras situações semelhantes ocorreram.
JU – O senhor mencionou que trabalha com o conceito de raciocínio revogável. Poderia explicar em que ele consiste e como se conecta com outras lógicas não-clássicas?
Diderik Batens – O raciocínio revogável é um tipo de raciocínio no qual há uma dedução e, em certo ponto, você percebe que pode tirar uma conclusão, mas também é possível dar continuidade a esse raciocínio se você modificar a conclusão. Basicamente, é um raciocínio do qual se extraem mais insights que premissas ao longo do processo. Vou dar um exemplo simples: se você vê apenas corvos pretos, pode generalizar que todos eles são pretos. Tem origem aí uma boa hipótese, de que todos os corvos são pretos. Mas aí você conhece, pela primeira vez, um corvo branco, ou verde. Neste caso, toda a generalização construída é jogada fora, porque se sabe que ela está errada. Este é um exemplo muito simples do processo de raciocínio revogável, aceitar que novas informações podem vir depois das premissas originais. Esse é um tipo de pensamento bem diferente da lógica dedutiva, tem propriedades diferentes. Quando desenvolvemos teorias matemáticas, precisamos criar também maneiras de comprovar novas coisas, mas nem todas elas funcionam com a lógica adaptativa. Por isso, é necessário criar novas ferramentas.
JU – É uma ideia semelhante à teoria da quase-verdade de Newton da Costa. Existe uma relação entre elas?
Diderik Batens – Sim e não. Intrinsecamente, não há relação, porque é possível desenvolver o pensamento de Newton da Costa sem envolver o aspecto revogável. Mas há autores que defendem que você pode aperfeiçoar essa teoria tornando-a adaptativa, assim seria possível obter mais resultados interessantes.
JU – Pelo que entendo, sua perspectiva pode ser explicada pela preocupação de estarmos abertos a novos conhecimentos e ideias que possam explicar as coisas. Em seu curso na SP LogIC, o senhor mencionou que todo conhecimento é revisável. Isso significa que não existem conhecimentos absolutos na ciência?
Diderik Batens – Eu acredito que todo conhecimento vem do raciocínio revogável. O componente revogável, ou derrotável, pode confrontar as ideias. Por exemplo, suponha que alguém me diga que é uma verdade simples, sem margem para confronto, que Bruxelas é a capital da Bélgica. A partir disso, podemos questionar o que significa ser capital de um país, quais as implicações legais disso. Nos Países Baixos, você pode crer que a capital é Haia, mas não é isso o que a lei diz. Lá estão apenas a sede do parlamento e onde vive e trabalha o rei. Ou seja, essa é uma ideia vaga por lá. Os conceitos podem mudar, você pode definir o que é uma capital de formas diferentes, e há outros conceitos científicos que mudam ao longo do tempo. A ideia de temperatura, por exemplo. Muitas pessoas acham que é algo convencional usar um termômetro de mercúrio para definir a temperatura. Mas se recorrermos à origem do termômetro, podemos ver que a análise de instrumentos que medem temperaturas perdurou por cerca de 250 anos antes de se decidir pelo termômetro de mercúrio. Isso quer dizer que, até aquele momento, a noção de temperatura variava. Até hoje os físicos têm formas diferentes de definir temperaturas. Isso ocorre com vários conceitos. Pense no que geralmente as pessoas chamam de peixe, em neerlandês, vis. Em neerlandês, chamamos baleia de walvis, o que seria algo como “peixe do cais”. Por quê? Simplesmente porque ela vive no mar.
JU – O senhor acredita que o mundo contemporâneo precisa de mais pensamentos como esse, buscarmos novos conhecimentos para explicarmos a realidade? Precisamos de mais raciocínio revogável?
Diderik Batens – Não tenho certeza. O raciocínio revogável sempre foi essencial, mas quando você olha a partir de pontos de vista como a paraconsistência e outras dinâmicas de provar a verdade, pelo fato de haver outras lógicas, você pode desenvolver novas teorias mais complexas que as originais. Então, o panorama das ciências pode mudar, e acho isso muito bom, pois nos abre para novas perspectivas.