Um ano após a calamidade de Petrópolis (RJ), em que mais de 200 pessoas morreram, o país vive mais uma tragédia relacionada a grandes volumes de chuva registrados em um intervalo curto de tempo. O alto índice pluviométrico que castigou o litoral norte de São Paulo no último dia 18 de fevereiro, associado a uma topografia íngreme sujeita a movimentação de massa e à ocupação de áreas de risco sem planejamento urbano, levou à morte mais de 60 pessoas atingidas por deslizamentos de terra e enxurradas. O Portal da Unicamp conversou com especialistas em Geologia e Geografia que fizeram considerações sobre a repetição de um evento relacionando homem e natureza.
A área do município de São Sebastião, a mais afetada pelas fortes chuvas, estende-se entre dois domínios geológico-geomorfológicos importantes: a Planície Costeira (na sua maioria com casas de uso ocasional e equipamentos urbanos de serviços, principalmente voltados ao turismo) e a Serra do Mar (conjunto de encostas onde mora, predominantemente, a população de baixa renda, que presta serviços nas áreas urbanas da planície). Esta, por sua história de evolução no tempo geológico, está condicionada a ações de eventos gravitacionais como os movimentos de massa ou deslizamentos de terra característicos da evolução natural desse complexo sistema. Com altas declividades do terreno, as águas da chuva que se deslocam para as zonas de planície ganham velocidade e formam enxurradas. Em São Sebastião, as pequenas planícies são separadas por trechos da Serra do Mar com despenhadeiros verticais voltados para o mar.
Assim, ao longo do tempo, outros episódios semelhantes já foram registrados na região, como a “hecatombe de Caraguá”, em 1967, que vitimou mais de 400 pessoas. “Isso a que assistimos em 2023 foi um episódio com concentração de índices pluviométricos excepcionais que conduziram à deflagração do processo, tomando maior magnitude e severidade quando associado à relação de uso e ocupação das terras”, explica Regina Célia de Oliveira, docente do Departamento de Geografia (DGEO) do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp, que coordena o Núcleo de Estudos Ambientais e Litorâneo. O Núcleo desenvolve pesquisas voltadas à dinâmica de uso das terras e limites de fragilidade em zonas costeiras. “Temos realizado estudos diagnósticos que revelam o aumento progressivo dos níveis de criticidade desses espaços, sejam relacionados a severos impactos nos sistemas naturais potencializando os níveis de fragilidade, sejam ao aumento exponencial da vulnerabilidade socioambiental, vivenciada por parte expressiva das populações residentes nesses espaços”, explica a docente. “Observa-se ainda, a fragilidade das políticas públicas em ações que possam antever situações de crise e mesmo criar ações que inibam ou atenuem as relações conflitantes de usos e ocupações das terras em limites territoriais que representam espaços de risco”, disse.
Já para a docente do Departamento de Geologia e Recursos Naturais (DGRN) do IG Ana Elisa Silva de Abreu, quando a ocupação avança em direção à montanha com topografia mais íngreme há mais habitantes nas zonas de risco dos movimentos de massa. “A ausência de planejamento urbano que saia do papel é parte do problema de gestão de riscos geológicos no Brasil. A elevada precipitação é a gota d´água de um processo que se desenrola ao longo do tempo geológico e que pode (ou não) ser acelerado pela ação antrópica. Se não houvesse a topografia íngreme no local, o solo com resistência finita à ruptura, chuvas antecedentes e outros fatores, não haveria a ruptura. Por exemplo, pode chover 600 mm em um dia em uma região com topografia mais plana e não haver preocupação com deslizamentos de encostas”, aponta a docente. Raul Reis Amorim, docente do DGEO, concorda. Ele explica que em 2022 ocorreram precipitações de igual volume em Paraty (RJ) responsáveis por causar os mesmos processos de movimentos de massa e inundações. “A diferença foi que essa chuva atingiu uma área ocupada e modificada pelo homem. Para construir, é necessário alterar o corte nas encostas, o que aumenta ainda mais a declividade [inclinação do terreno]. A construção nas planícies impermeabiliza a área, aumentando o escoamento de água para os rios. Por isso, as inundações têm ocorrido de maneira tão intensa e de forma cada vez mais frequentes”, disse Amorim.
Planejamento ocupacional e gerenciamento de risco
Um dos grandes problemas do Brasil é a ocupação irregular de áreas de risco, problema esse que obriga à análise de diferentes fatores, entre os quais a vulnerabilidade de diferentes tipos associada às populações que ocupam esses espaços.
A ocupação dessas áreas e o próprio estado de precariedade a elas associado sublinham a ausência do poder público no momento “em que as populações que se apresentam em situação de maior vulnerabilidade também estão ocupando áreas que progressivamente se revelam zonas sujeitas ao risco de ocorrência de processos extremos, comprometendo de forma permanente seu potencial de resiliência e consequentemente, alterando negativamente sua permanência no estado crítico de vulnerabilidade”, aponta Regina Célia.
De acordo com Maria Tereza Duarte Paes, docente do DGEO, o deslocamento da população das planícies para as áreas de encosta da Serra do Mar está ligado à história da BR-101. “No litoral sul de São Sebastião, essa expulsão começa no final dos anos 80, quando a rodovia foi pavimentada e foram criadas infraestruturas que ampliaram o acesso ao turismo de segunda residência. A população local foi morar nessas áreas que eles chamam de sertão, próximas às encostas da Serra do Mar. Depois, com a necessidade de mão de obra para a construção civil e de prestação de serviços, essa população que migrou [de outras regiões do país] para trabalhar tampouco encontrou lugar para morar nas planícies, áreas muito valorizadas pelos condomínios fechados horizontais, e foi morar nessas áreas de risco”, disse. Para Regina Célia, “ações do poder público como gerenciador do bem-estar social passam a responder, dentre outros aspectos, pela responsabilidade de garantir uma maior e melhor adequação da ocupação dentro de limites que possam garantir a segurança do cidadão”.
Mas é possível garantir com maior eficiência que episódios como os de São Sebastião ou de Petrópolis não se repitam? De acordo com Regina Célia, um planejamento que considere as áreas de risco prioritárias e a implantação de políticas que definam critérios de preservação de tal forma a inibir a ocupação desses espaços podem contribuir para isso sim. “Existem estudos criteriosos sobre o tema da ocupação em áreas de risco. Não estamos falando sobre um assunto novo ou sobre uma área cujas condições físico-naturais indicassem uma estabilidade tal de modo a descartar qualquer risco. Estamos nos referindo a uma área que, da mesma forma que outras áreas existentes ao longo do litoral, apresenta-se como de risco”, disse a docente.
Tanto Raul Amorim quanto Ana Elisa Abreu concordam que é necessário haver ações de gerenciamento de risco capazes de interconectar diferentes áreas da política pública para evitar novas tragédias. “Certamente é preciso direcionar mais verbas para a prevenção de riscos, desenvolvimento e fortalecimento de sistemas de alerta antecipado (incluindo a comunicação de risco) e planejamento urbano e habitacional, para que as pessoas que residem em áreas de risco possam efetivamente ser realocadas”, disse Ana Elisa. Segundo Raul Amorim, “nessa área, por exemplo, havia estudos para a remoção da comunidade e reassentamento em casas populares de outra área. Para evitar tragédias, não é necessário apenas a implantação de medidas estruturais como dragagem de canais e construção de contenção de encostas. Em muitos casos, as medidas não estruturais são mais eficientes, como sistemas de alerta, compostos por sirenes e outros mecanismos de alerta como os celulares, bem como ações de educação para o risco, orientando as comunidades sob risco a respeito de rotas de fuga, abrigos seguros etc. Acredito que é fundamental haver essa relação da Defesa Civil com as comunidades de modo a informá-las sobre esses riscos”, disse.
Comunidade indígena Rio Silveira foi afetada
Núcleos de habitações em áreas mais baixas da terra indígena Rio Silveira, localizada entre os municípios de Bertioga, São Sebastião e Salesópolis, foram afetadas pelas chuvas do dia 18 de fevereiro. A comunidade é atendida por um projeto de extensão do IG que tem como objetivo elaborar material de apoio didático para as escolas indígenas de ensino fundamental que leve em consideração uma leitura geográfica, histórica e linguística dos territórios Guarani no Brasil. O projeto é coordenado pelo docente do IG Vicente Eudes Lemos Alves.
O professor explica que, no dia 18, “houve um aumento considerável e em pouco tempo do volume d’água despejado pelos rios e cachoeiras que estão dentro ou no entorno da aldeia”. As famílias afetadas foram acolhidas pelos parentes que habitam as partes mais elevadas da aldeia. Voluntários e a Prefeitura de Bertioga promoveram ações para garantir o abastecimento de água e de alimentos para as famílias afetadas. “De acordo com os relatos da população indígena da aldeia Rio Silveira, a inundação está muito associada à ocupação urbana de áreas no seu entorno. Houve nos últimos anos uma expansão da urbanização próxima às margens dos principais rios. Além disso, não houve construção de infraestrutura para melhorar o escoamento da água da chuva e dos esgotos. Diante do elevado volume de água verificado no dia 18, inédito para a região, houve transbordamento dos cursos d’água que estão dentro ou no entorno da aldeia”, disse.