O levantamento Visível e Invisível: A Vitimização de Mulheres no Brasil, do Fórum de Segurança Pública do Brasil, indica que há uma epidemia de violência contra as mulheres no país. Segundo a pesquisa, em 2022 houve aumento de todos os tipos de violência e mais de um terço das mulheres do país sofreram agressões físicas e/ou sexuais. A recomposição de políticas públicas, esvaziadas nos últimos anos, bem como o combate ao pânico moral que coíbe as discussões sobre gênero, segundo a pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero (Pagu) da Unicamp Regina Facchini, são medidas necessárias para reverter os retrocessos.
Do mesmo modo que o relatório da pesquisa, Facchini, que é professora dos Programas de Pós-Graduação em Antropologia e em Ciências Sociais da Unicamp, vê como um dos motivos do aumento da violência a ascensão de grupos ultraconservadores na política e na sociedade brasileira. Projetos como o Escola Sem Partido e o combate às discussões sobre gênero contribuíram para o agravamento do cenário, bem como para intensificar o ataque aos movimentos feministas.
Ultraconservadores mobilizaram pânicos morais
“A ‘ideologia de gênero’ serviu para mobilizar pânicos morais em torno dessa questão. E o modo como se passou a abordar a questão dos direitos, focando em noções abstratas de mulher, família e criança, acabou prejudicando a produção de políticas públicas protetivas”, analisa, referindo-se ao termo criado por neoconservadores para se referirem de forma pejorativa aos estudos e movimentos sociais relacionados a gênero e sexualidade.
Ela também lembra que os grupos ultraconservadores, ao desqualificarem os espaços escolares, minimizam o papel da escola na identificação das agressões contra crianças e adolescentes. “A escola é um elemento estratégico e fundamental na identificação, na denúncia e na prevenção. Todo o debate sobre ‘ideologia de gênero’ enfraqueceu muito esse papel.”
O discurso da família como local de proteção também contrasta com os dados sobre o ambiente em que geralmente ocorrem os atos de violência. Em relação ao estupro de vulnerável (crianças de 0 a 13 anos), a pesquisa do Fórum referente a 2021 constata que 76,5% dos casos ocorrem em casa. O criminoso é homem em 95,4% dos casos e em 82,5% dos estupros, um homem conhecido, sendo que em 40,8% desses casos o ato é cometido pelo próprio pai ou padrasto da vítima.
A pesquisa do Fórum de Segurança Pública também revela a casa como um local de violência. Mais da metade das mulheres (53,8%) que sofreram violência apontaram que justamente no ambiente domiciliar ocorreram os episódios mais graves.
Em relação aos feminicídios, houve também recorde em 2022, com uma mulher morta a cada seis horas, segundo o Monitor da Violência do Fórum. Por outro lado, os homicídios não relacionados a gênero tiveram o menor índice da série histórica, indicando que o Brasil ficou menos perigoso para a população em geral, mas mais perigoso para as mulheres.
O receio da revitimização
Apesar do alto número de mulheres que sofrem violência, um total de 45% delas respondeu que não fez nada após a agressão. Somente cerca de 30% delas acionaram algum tipo de mecanismo policial. Segundo Facchini, é provável que esse dado reflita o medo de retaliação por parte do autor, a vergonha frente à violência e o receio de uma revitimização no processo de denúncia – quando há uma série de constrangimentos às vítimas.
“Temos a necessidade de melhorar o acolhimento a esses casos porque há subnotificação e parte desse fenômeno tem relação com o receio de revitimização na denúncia. Há uma tendência de culpabilizar a vítima. Isso é algo que precisa avançar nas políticas de segurança, com uma melhor capacitação dos operadores do direito e a adesão da sociedade”, avalia.
É preciso, ainda, maior preparo para lidar com outras formas de violência que não a física, analisa. Na pesquisa, 33,4% das mulheres relataram ter sofrido violência física e/ou sexual, ao passo que 32,8% relataram terem sido vítima de violência psicológica ou verbal. Segundo Facchini, esse dado pode ser reflexo da maneira como a sociedade e os agentes do direito percebem a violência.
“Ainda há um maior reconhecimento da violência física, mesmo que a violência psicológica possa gerar danos imensos na vida de quem a sofre. A medida protetiva por violência física tende a ter um sucesso muito mais rápido do que em casos de violência psicológica, e a chance de ter o ato de violência reconhecido pelos operadores do direito, seja pela polícia ou por um juiz, vai influenciar muito na possibilidade de haver ou não uma denúncia.”
Ativismo judicial e do Executivo impediu concretização de direitos
Um dos impeditivos para a concretização dos direitos de meninas e mulheres, conforme o relatório, foi o ativismo do Judiciário e do Executivo. A professora cita casos de inobservância do direito ao aborto em caso de estupro e os relaciona com os posicionamentos conservadores que ganharam espaço na política nos últimos anos.
“Quando você diz para uma sociedade que a misoginia, a LGBTfobia e o racismo são toleráveis, há repercussões no Judiciário e o descumprimento da lei que permite o aborto em caso de estupro". Ainda, prossegue, há desdobramentos também na formação e potencialização de grupos neonazistas ou misóginos, que precisam ser combatidos.
Perspectivas para frear a epidemia de violência
Para o dia 8 de março, o atual governo federal prepara anúncios de políticas públicas voltadas às mulheres, o que é visto como uma sinalização positiva pela professora. Legislação para equiparação salarial, recriação do Programa Mulher Viver sem Violência e aumento das patrulhas Maria da Penha estão entre as medidas. Foi anunciada também a criação do dia 14 de março como Dia Nacional Marielle Franco, uma data para celebrar o combate à violência política e de gênero.
“Todo anúncio de política pública que valorize as mulheres na sua diversidade é bem-vindo neste momento e terá impacto. É preciso retomar a ideia de que, sim, é importante conceder direitos às pessoas que estão mais precarizadas e vulnerabilizadas socialmente e a ideia de que a equidade é importante.”
Outros horizontes apontados por Facchini incluem ainda alterar processos que levam à subnotificação de casos envolvendo pessoas negras e os dados que tratam de racismo e LGBTfobia, englobando mulheres lésbicas, bissexuais e trans, bem como o controle da posse de armas de fogo, que facilita os feminicídios.
A professora destaca que na Unicamp, mesmo com todas as contradições que perpassam a sociedade brasileira, tem avançado em políticas de promoção da equidade e de enfrentamento à violência contra mulheres, nas mais diversas modalidades. “Temos o Núcleo Pagu e outros importantes grupos e núcleos de pesquisa atuando no tema e também os acervos do jornal Mulherio, Patrícia Galvão (a Pagu), de Verena Stolcke, do Moleca [Movimento Lésbico de Campinas], do Galf [Grupo de Ação Lésbica Feminista], do Coletivo Feminista de Campinas, de Cacilda Lanuza, do Geledés Instituto da Mulher Negra, entre outros acervos que estão no AEL [Arquivo Edgard Leuenroth].”
Assista ao Repórter Unicamp "Casos de violência doméstica motivam ações de Hospital da Mulher"