‘Não podemos deixar de aperfeiçoar nossa competência lógica’

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Quando Newton da Costa, professor emérito da Unicamp, desenvolveu a teoria da lógica paraconsistente, suas ideias passaram a rodar o mundo, influenciando lógicos, filósofos e matemáticos de diferentes origens. No entanto, nem sempre suas ideias foram compreendidas da forma como ele as elaborou. "Eu visitei países como a Rússia e a Polônia, por volta dos anos 1960 e 1970, e falava sobre a paraconsistência. Eles adoravam, parecia que aquilo seria a nova verdade absoluta. Mas eu não defendia essa ideia. Alguns deles a compreenderam diferente de mim", lembra Newton, que defende a paraconsistência não como verdade universal, mas como uma maneira de reconhecer a existência de contradições e trabalhar com elas em bases racionais. 

A experiência é um exemplo claro do quanto a ciência é construída a partir de conceitos elaborados por atores sociais, inseridos em um contexto histórico bem definido. No caso, a contradição apontada por ele soou como música aos ouvidos de teóricos entusiastas da lógica dialética compatível com o marxismo. “Esse entendimento da contradição torna a teoria trivial, capaz de explicar qualquer coisa e, portanto, capaz de explicar nada”, pondera Elena Dragalina-Chernaya, professora da Escola Superior de Economia – HSE University, em Moscou, e uma das convidadas da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC.

Na entrevista concedida ao Jornal da Unicamp, Elena explica como a lógica se consolidou enquanto campo de estudos na Rússia e quais as contribuições que o setor recebeu da escola brasileira de lógica. Ela também comenta a importância da lógica e do pensamento crítico para a realidade informacional contemporânea. A entrevista contou com a colaboração de Walter Carnielli, professor da Unicamp e presidente do comitê consultivo da SP LogIC.

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A professora Elena Dragalina-Chernaya, da Escola Superior de Economia (HSE University), em Moscou, aborda a importância da lógica e do pensamento crítico para a realidade informacional contemporânea (Foto: Antonio Scarpinetti)  

Jornal da Unicamp: Em sua aula magna na SP LogIC, você aborda a teoria do hilomorfismo. Pelo que pude pesquisar, ela remonta às ideias de Aristóteles e parece ter um sentido metafísico, segundo o qual todo corpo consiste em dois princípios intrínsecos, matéria primária e forma substancial. Você poderia explicar essa ideia e como ela se relaciona com a lógica?

Elena Dragalina-Chernaya - Em minha aula magna, eu abordo mais a lógica do que o hilomorfismo metafísico. Tradicionalmente, o hilomorfismo lógico se relaciona à forma lógica, não à matéria lógica. No entanto, a distinção entre forma e matéria não é estabelecida facilmente. Inclusive, a forma lógica não é um conceito próprio da lógica. Por uma perspectiva histórica, é surpreendente que Aristóteles, o fundador da lógica e do hilomorfismo metafísico, não tenha sido o fundador do hilomorfismo lógico. Aristóteles não aplica o formalismo como um critério para a lógica. Sua distinção "forma versus matéria" não está presente no Organon, a coleção de obras de Aristóteles. Em minha aula, eu traço um esboço da história do nascimento do hilomorfismo lógico enraizado em comentários antigos de Aristóteles e em disputas e consequências medievais dessa ideia.

JU - Como isso chega aos dias de hoje? Há uma conexão entre o hilomorfismo e as lógicas contemporâneas? Inclusive, alguns de seus trabalhos fazem referência ao hilomorfismo lógico de Kant. Pode explicar isso?

Elena Dragalina-Chernaya - Kant [Immanuel Kant] ocupa um espaço de destaque na história do hilomorfismo lógico. É com ele que tem início o uso da expressão "lógica formal". Kant mesmo começou a aplicar o critério do formalismo para demarcar as fronteiras entre a disciplina lógica e as da lógica geral. Para esclarecer esse tipo de hilomorfismo lógico de Kant e determinar o significado do conceito para a lógica moderna, eu proponho uma distinção entre dois tipos de hilomorfismo lógico: o substancial e o dinâmico. O hilomorfismo substancial considera a lógica como uma teoria de objetos formais, de ordem superior, que torna suas propriedades estruturais em leis formais de raciocínio. Isso pressupõe uma interpretação sobre o formal e a forma de modo que eles não possam ser afetados pela variabilidade da matéria. Em modelos teóricos semânticos modernos, o hilomorfismo substancial é especificado em termos de ser invariável às transformações não estruturais dos modelos. A variedade dos critérios de invariância para a logicidade abre as portas para diversos sistemas lógicos. No hilomorfismo dinâmico, a ideia de "qual tipo de formalismo?" dá lugar a um "como se aplica o formalismo?". Por um ponto de vista dinâmico, a lógica é o domínio da atividade de propor inferências a partir de regras e com objetivos. O formalismo dinâmico caracteriza uma forma especial de seguir essas regras, onde a antítese não é o material, mas o informal, no sentido em que falamos de comportamento informal. Para Kant, a lógica é um corpo de regras e o formalismo da lógica pura surge do fato de ela investigar as regras absolutamente necessárias do pensamento.

Claro, em nossa era de pluralismo lógico, isso soa antiquado. No entanto, o hilomorfismo dinâmico moderno não tem a obrigação de seguir Kant no reconhecimento do "vazio" ou na ideia de "pureza" das formas lógicas. A partir do momento em que uma atividade estratégica, com objetivos direcionados, pode ser conceituada como um jogo, o hilomorfismo dinâmico pode ser pensado nos termos da teoria dos jogos, por exemplo. Por essa perspectiva, estruturas lógicas aparecem como estruturas de ações performadas por agentes racionais, que lidam com verdades e consequências. Vários tipos de invariâncias, dependências de informações e independências surgem nos jogos, de forma que os agentes podem ser modelados não apenas pelos sistemas de lógica clássica, mas também pela lógica não clássica, como é o caso da lógica dinâmica epistêmica, por exemplo.

Aristoteles, Kant e Hegel:
Aristóteles, Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel: contradições em evidência (Fotos: Divulgação) 

JU - Tivemos a oportunidade de entrevistar o professor Newton da Costa e ele contou sobre sua experiência de levar a lógica paraconsistente aos países da Europa Oriental e à Rússia nos anos 1960 e 1970. Segundo ele, os lógicos desses países ficaram encantados com suas ideias porque elas colocavam as contradições em evidência, mas, por outro lado, ele se decepcionou porque percebia que eles assumiam as ideias como uma nova verdade absoluta…

Elena Dragalina-Chernaya - A lógica dialética de Hegel [Georg Wilhelm Friedrich Hegel], em oposição ao formalismo lógico de Kant, teve apoio ideológico na filosofia oficial soviética. Nos anos 1960 e 1970, o desenvolvimento da lógica dialética tomou uma dimensão especial. Alguns de seus apoiadores mais reticentes consideravam-na uma teoria marxista do conhecimento, sendo uma base metodológica e ideológica da lógica formal. Mas também havia entusiastas que a viam como uma lógica genuína, suplantando de forma legítima a versão antiga durante o movimento histórico em direção ao comunismo. Newton da Costa parece estar se referindo a esses entusiastas. Em minha visão, seu desacordo com eles pode ser explicado pelo fato de a contradição lógica ser considerada não como um problema, mas como uma solução universal de todos os problemas filosóficos pelos lógicos dialéticos. Em outras palavras, a visão de que seria uma nova verdade absoluta, que tornaria o marxismo em uma única e irrefutável teoria. De fato, esse entendimento da contradição torna a teoria trivial, capaz de explicar qualquer coisa e, portanto, capaz de explicar nada. Essa suposta trivialização é a principal crítica feita à lógica paraconsistente. Assim, acredito que a principal oposição à lógica paraconsistente não é a lógica dialética formal, mas uma forma vulgarizada dessa lógica.

JU - A partir disso, como você analisa o desenvolvimento da lógica e da filosofia em seu país? As heranças história e política têm efeitos nisso?

Elena Dragalina-Chernaya - Há uma frase de um famoso filósofo russo do início do século XIX, Peter Chaadayev, que disse uma vez com pesar: "O silogismo do Ocidente é desconhecido para nós". Claro que é um exagero retórico. Não há dúvidas que a filosofia russa sempre foi influenciada pela grande literatura russa, com seus problemas existenciais e religiosos. No entanto, a filosofia racionalista também foi muito importante para a cultura russa. Não é coincidência que, no século XX, filósofos russos participaram da origem de várias lógicas não clássicas. A lógica imaginária, não aristotélica, de Nikolai Vasiliev, teve grande influência no desenvolvimento da lógica paraconsistente. A primeira axiomatização lógica relevante foi proposta por Ivan Orlov. Também vale mencionar os resultados pioneiros de matemáticos russos no desenvolvimento da lógica probabilística. Para mim, a fonte de sucesso da lógica filosófica na Rússia é a cooperação entre filósofos e matemáticos, assim como entre psicólogos, linguistas e outros cientistas. As atuais estratégias bem-sucedidas de desenvolvimento dos programas acadêmicos em filosofia pressupõem sua interação com outras disciplinas afins. Estender seus métodos ao campo dos problemas da filosofia clássica é a essência da filosofia formal, que desenvolve modelos verificáveis para serem avaliados por métodos científicos gerais. A filosofia formal parece ser a área mais importante em desenvolvimento tanto na Rússia quanto no resto do mundo. É impossível limitar a filosofia dentro de fronteiras disciplinares ou geográficas no mundo atual, com suas modernas tecnologias de informação.

JU - Há influências da escola brasileira de lógica na Rússia?

Elena Dragalina-Chernaya - Minhas primeiras impressões do Brasil foram a diversidade e a tolerância. Para mim, parece que essas são as características principais da lógica brasileira. É difícil descrever uma forma específica segundo a qual a lógica brasileira influenciou a Rússia. Porém, podemos dizer que ela tem um papel especial no desenvolvimento de várias lógicas não clássicas. Inicialmente, as conquistas da escola brasileira de lógica paraconsistente. Aqui faz sentido falarmos de uma influência mútua, porque o filósofo russo Nikolai Vasiliev foi um de seus fundadores, fundador dessa teoria cuja descoberta para a ciência mundial é creditada a Vladimir Smirnov. Não é coincidência que um dos resultados da pesquisa conjunta entre lógicos brasileiros e russos no campo da paraconsistência foi o texto "O legado lógico de Nikolai Vasiliev e a lógica moderna" (The logical legacy of Nikolai Vasiliev and modern logic, Vladimir Markin, Dmitry Zaitsev, Synthese Library, 2017), que inclui artigos de Jean-Yves Beziau, Otávio Bueno, Ítala D'Ottaviano e Evandro Luís Gomes, Juliana Bueno-Soler e Walter Carnielli e José Veríssimo Teixeira da Mata. Baseados nas ideias de Vasilyev e usando o formalismo dos clássicos brasileiros Newton da Costa e Ayda Ignez Arruda, os lógicos russos Vladimir Vasyukov, Vladimir Popov e Vasily Shangin construíram sistemas combinados originais de lógica paraconsistente.

A influência da escola brasileira na lógica russa não está limitada à reconstrução das ideias de Vasiliev. Baseado na abordagem de Newton da Costa e de Walter Carnielli, Vladimir Vasyukov, por exemplo, desenvolveu várias versões de categorias semânticas para a lógica paraconsistente. Assim como no resto do mundo, na Rússia há uma atenção especial às pesquisas de lógicos brasileiros que dedicaram seus esforços em traduzir e combinar lógica, pluralismo lógico e lógica universal, como Ítala D'Ottaviano, Jean-Yves Beziau, Walter Carnielli, Marcelo Coniglio, João Marcos, Decio Krause e Otávio Bueno, entre outros.

Participantes da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC realizada em fevereiro de 2023
Participantes da Escola São Paulo de Ciência Avançada em Lógica Contemporânea, Racionalidade e Informação – SP LogIC realizada em fevereiro de 2023

JU - Quais, você acredita, são os principais desafios e questões colocados diante da lógica atualmente? Há aspectos do mundo contemporâneo nos quais a lógica pode auxiliar?

Elena Dragalina-Chernaya - Penso que a revolução que transformou a lógica tradicional em lógica matemática e, eventualmente, evoluiu para uma revolução informacional mudou o mundo e não está concluída. A lógica moderna está em um processo de atualização cognitiva. Como uma teoria que envolve múltiplos agentes e uma atividade cognitiva de recursos limitados, a lógica enfrenta não apenas a tarefa tradicional de catalogar inferências corretas, mas também otimizar as tarefas de racionalizar uma variedade de interações racionais. A importância disso no mundo atual não pode ser ultrapassada quando lida, por exemplo, como interações entre desenvolvedores de inteligência artificial ou entre os sistemas de IA [Inteligência Artificial] e seus usuários. Não menos interessantes para a lógica moderna são as interações entre os agentes "ideais" da lógica clássica e também aquelas entre agentes racionais ilimitados, cujas técnicas cognitivas eram frequentemente avaliadas pela lógica clássica como meras distorções cognitivas e que, agora, são modelos bem-sucedidos de lógicas não monotônicas, paraconsistentes, dinâmico-epistêmicas e outras lógicas não clássicas.

Podemos dizer que a lógica moderna desceu dos céus das abstrações matemáticas à Terra da razão humana, que fora criada na Antiguidade. Sua interação aparece, no entanto, em um ambiente informacional radicalmente modificado, que inclui novas maneiras de receber e usar informações, o que envolve, inclusive, agentes cognitivos não humanos. Os conflitos inevitáveis entre habilidades cognitivas confiáveis e a nova realidade informacional podem nos levar a desastres tecnológicos e explosões sociais, o que a lógica moderna, com sua pluralidade de sistemas lógicos, pode prevenir ou, pelo menos, mitigar. 

JU - Vários países, incluindo o Brasil, os Estados Unidos e mesmo a Rússia, sofrem hoje da desinformação digital. Há grupos que instrumentalizam o ódio, a desconfiança e as divisões políticas e criam novas formas de irracionalidade que afetam a democracia. Você acredita que a lógica e a racionalidade podem ser uma defesa contra isso?

Elena Dragalina-Chernaya - A lógica, assim como a filosofia, vê o mundo como um universo policêntrico de pessoas igualmente pensantes. Essas guerras híbridas unem as pessoas em comunidades irracionais baseadas na imitação de argumentos racionais. Compreender a natureza lógica da argumentação, a habilidade de identificar contradições e os recursos de manipulação retórica é o que ajuda a lógica a se desenvolver. Charles Sanders Peirce, um dos fundadores da lógica moderna, previu que, conforme a lógica e a ética se desenvolvem, surge uma grande afinidade entre elas. Acredito que os grandes desafios tecnológicos e sociais do mundo moderno são evidências de que esse tempo chegou.

JU - Você acha que precisamos de mais lógica em nossas vidas?

Elena Dragalina-Chernaya - Sim, acredito que a vida humana moderna se tornou tão orientada pela informação que não podemos deixar de aperfeiçoar nossa competência lógica. A pessoa média lê as notícias pelo computador, paga suas contas virtualmente, joga videogames, se envolve em discussões com estranhos nas mídias sociais e nem sempre está ciente de que as coisas não são como parecem. Entender, por um lado, a natureza dos processos algorítmicos e das comunicações virtuais e, por outro, desenvolver o pensamento crítico, são coisas vitais para qualquer pessoa moderna. É exatamente isso que a lógica pode nos trazer.

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A filósofa explica como a lógica se consolidou enquanto campo de estudos na Rússia e quais as contribuições que o setor recebeu da escola brasileira (Foto: Antonio Scarpinetti)

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Escritor e articulista, o sociólogo foi presidente da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais no biênio 2003-2004