No fim de janeiro, um estudo coordenado pelo pesquisador David Lapola, do Cepagri/Cocen (Centro de Pesquisas Meteorológicas e Climáticas Aplicadas à Agricultura/Coordenadoria de Centros e Núcleos Interdisciplinares de Pesquisa), foi capa da prestigiada revista Science. Com o título de "Amazon Lost", a publicação destacou a preocupante conclusão da pesquisa: cerca de 38% do que resta da floresta amazônica está degradada. O problema é causado sobretudo por quatro tipos de perturbações: fogo, secas extremas, efeitos de borda e extração seletiva de madeira.
Degradação e desmatamento são fenômenos que têm relação e que compartilham causas e efeitos, mas são fenômenos distintos, que precisam ser combatidos com estratégias diferentes. Florestas degradadas continuam a ser florestas – mas de pouquíssima qualidade. Ao contrário do desmatamento, que já vem sendo estudado há décadas, a degradação ainda recebe pouca atenção, tanto da mídia quanto da ciência, dos agentes econômicos e do poder público, o que torna ainda mais urgente formular iniciativas de resposta ao problema e compreendê-lo melhor, segundo explica o pesquisador.
"Atualmente, avançar no combate ao desmatamento é mais uma questão política, porque a parte científica já está bem avançada. Já, quanto à degradação, a gente começou a entender isso agora. Estamos engatinhando em termos de mapear as cadeias de financiamento e os impactos [do fenômeno]", diz Lapola.
Intitulado The drivers and impacts of Amazon forest degradation, o artigo é assinado por 35 autores de instituições nacionais e internacionais. As conclusões são resultado de uma revisão analítica de dados científicos baseados em imagens de satélite e outras informações já publicadas anteriormente sobre mudanças na região amazônica entre 2001 e 2018. Como os dados disponíveis não contabilizam os anos do governo Jair Bolsonaro, os pesquisadores supõem que os números de degradação sejam ainda maiores. "Mas, independente disso, a mensagem é a mesma: já é preocupante, mesmo não incluindo esse período mais recente."
Após o amplo destaque que o artigo recebeu na mídia nos dias seguintes à publicação, em entrevista ao Portal da Unicamp, David Lapola espera que o impacto do estudo perdure. "Fico muito feliz que [o artigo] tenha gerado um tsunami de cobertura da imprensa. E espero que agora uma segunda onda de impacto decorrente do artigo ocorra no âmbito dos tomadores de decisão. É urgente começar a pensar em soluções. E que uma terceira onda, essa mais lenta, referente a outros estudos, ocorra de modo a complementar ou até mesmo a contestar o nosso [estudo], mas de modo a fazer avançar esse campo do entendimento sobre a degradação."
Portal da Unicamp - As questões socioambientais relacionadas ao desmatamento estão bastante presentes no debate público. No entanto, fala-se pouco sobre degradação especificamente. Isso acontece porque o tema não é tão estudado no âmbito científico?
David Lapola - É isso mesmo. Esse conceito não entrou de maneira significativa na esfera pública porque na própria ciência ele é pouco estudado. Nos anos 1990, houve um boom de estudos sobre desmatamento. Já conhecemos muito bem o processo, as cadeias de financiamento, os principais agentes envolvidos, desenvolvemos sistemas de monitoramento e compreendemos os impactos na biodiversidade, qualidade do solo e assim por diante. Atualmente, avançar no combate ao desmatamento é mais uma questão política, porque a parte científica já está bem avançada. Já, quanto à degradação, a gente começou a entender isso agora. Estamos engatinhando em termos de mapear as cadeias de financiamento e os impactos. Até mesmo em relação às projeções futuras, nosso artigo representa uma primeira tentativa nesse sentido. No estudo, a gente estabeleceu um arcabouço bem claro sobre como identificar as áreas que estão sob degradação, sobretudo em relação às quatro principais causas: fogo, efeitos de borda, corte seletivo de madeira e secas extremas. A ideia é que o estudo estimule outros cientistas e agentes públicos a pensarem em ações para atacar esse problema.
PU - Atualmente não existem iniciativas significativas especificamente voltadas para o combate à degradação?
David Lapola - Praticamente nenhuma. Não existem programas governamentais nem privados para coibir a degradação. A única iniciativa internacional que existe é o mecanismo REDD+: que significa Redução de Emissões Provenientes de Desmatamento e Degradação Florestal [na sigla em inglês]. Então, o segundo “D” da sigla se refere à degradação. É um mecanismo oficial da Convenção do Clima, que o Brasil assinou. Mas a quase totalidade dos projetos do REDD+ é focada em desmatamento, não em degradação. É basicamente o seguinte: você tem uma terra na Amazônia onde há uma floresta que armazena certo estoque de carbono, principalmente nos troncos das árvores. Então, por exemplo, um parceiro internacional, por meio do mecanismo REDD+, paga para você manter aquela floresta em pé e não gerar mais desmatamento. Os projetos são quase todos focados nisso.
PU - Entre os quatro principais fatores de degradação estudados, algum predomina no contexto da Amazônia?
David Lapola: Há diferentes pontos de destaque para cada um deles. Os quatro são focos de atenção muito importantes. O fogo, quando comparado com a seca, tem uma dimensão espacial muito mais restrita, mas é muito intenso onde ocorre, com forte impacto. Já a seca é o contrário: se você analisar uma área específica, o impacto é leve. Você tem uma perda de carbono de 2% ou 3% após uma seca severa, mas a dimensão espacial é muito grande. A seca ocorre em áreas gigantescas. Quando você contabiliza 2% ou 3% em todas essas áreas, dá bastante, no fim das contas.
O efeito de borda é uma consequência do desmatamento. É assim: quando parte de uma floresta é cortada e vira pasto, a borda onde há o contato entre a floresta remanescente e a pastagem, em seus primeiros 100 ou 200 metros, começa a se degradar devido à entrada de mais luz, mais vento. A umidade fica mais baixa… Enfim, há uma mudança no microclima daquela área. Espécies de plantas que não são acostumadas a esse ambiente vão morrendo, animais começam a se deslocar e vão chegando outras espécies mais adaptadas a esse ambiente um pouco mais seco. E você pode estar pensando: mas são somente 100 ou 200 metros. A questão é que, se você pegar todos os polígonos onde ocorre desmatamento e somar esses 100 ou 200 metros de efeitos de borda, isso resulta em uma área enorme na Amazônia.
E, por fim, a questão da extração seletiva de madeira, que é ilegal na maior parte [dos casos], ocorre quando a pessoa entra na mata e corta somente a madeira nobre. Por exemplo, o mogno. No processo de derrubar essa árvore, caem outras duas ou três que estão em volta, retira-se somente a madeira nobre e o resto fica lá. Essas madeiras nobres são geralmente as que mais armazenam carbono. Esse processo não está diretamente ligado ao desmatamento e a gente tem extrema dificuldade para mapear sua extensão. Para o artigo, a gente só tinha uma fonte de dados disponível, com base em censos do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], que deve reportar basicamente só as atividades legalizadas. Então, em termos de extração seletiva de madeira, isso pode ter ocorrido no mínimo em uma quantidade duas vezes maior do que a gente apontou.
PU - Quando se diz que, na degradação, as florestas não deixam de ser florestas, para leigos pode parecer que não se trata de um processo tão agressivo. De que maneira a degradação afeta as florestas?
David Lapola: Uma coisa é a classificação da cobertura do solo, se é floresta ou não. Outra questão é a qualidade da floresta. Houve uma discussão muito ferrenha durante o governo Bolsonaro, inclusive envolvendo altos comissariados da Embrapa [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária], sobre 60% ou 65% do território brasileiro ser ainda de florestas supostamente preservadas. O número em si já é discutível, mas a questão é a qualidade dessas florestas. O problema da degradação é até muito comum para a gente aqui. A maioria das florestas que a gente tem em volta dos rios aqui em São Paulo, no Sudeste, que são Áreas de Proteção Permanente (APP), são florestas degradadas. Na classificação nua e crua, são florestas. Mas são florestas muito pobres. Para quem já esteve em ambientes florestais bem preservados, como eu, dá pena de ver.
PU - Qual a relação entre a degradação florestal e a alteração climática global?
David Lapola: A relação é total. Por exemplo, as secas que a gente estuda no artigo tiveram sua frequência aumentada devido às mudanças climáticas antropogênicas. Aí já temos uma relação direta de causa: a mudança climática causada pelo homem levando à degradação da floresta. E você não precisa ter uma pessoa in loco. Alguém na China pode emitir gases de efeito estufa e isso pode causar mudanças atmosféricas que levam a secas mais periódicas, degradando florestas no oeste da Amazônia. Eu dei o exemplo de uma pessoa na China, mas é um problema difuso, no mundo todo. E isso é uma novidade para questões envolvendo a Amazônia, porque insere uma responsabilidade em âmbito internacional para solucionar esse problema. Claro que outras questões, como o efeito de borda e o corte ilegal de madeira seletiva, a gente precisa resolver aqui. O Brasil e outros países amazônicos devem aumentar a fiscalização. Agora, secas mais frequentes causadas por mudanças climáticas globais, isso não tem como a gente resolver por conta própria. Ou o mundo para de emitir gases do efeito estufa ou a Amazônia vai ser mais degradada por esse fator. Há ainda a retroalimentação. Secas mais frequentes tornam a floresta mais inflamável, aumentando a probabilidade de fogo, que é outro fator de degradação. As emissões de gases causadas pela degradação são, no mínimo, equivalentes às de desmatamento no período analisado, ou talvez até maiores, de modo que colaboram também para o efeito estufa antropogênico, que por sua vez causa as mudanças climáticas, que causam mais secas e assim por diante.
PU - Por que os dados analisados só vão até 2018? Vocês estimam que os números de degradação sejam muito maiores, considerando os últimos quatro anos?
David Lapola: Essa não foi uma questão política. Tem a ver com a disponibilidade de dados mesmo. Uma fonte de dados muito importante para nosso estudo foi o Mapbiomas, um projeto de longo prazo que mapeia vegetação e mudanças do solo no Brasil. A gente usou esses dados, que iam somente até 2018. É um projeto independente, não tem relação com o governo. Todos esses dados sobre fogo, seca, nenhum era dado governamental. Agora, dito isso, se a gente considerar que a degradação, pelo menos em parte, acompanha o desmatamento – e a gente sabe que houve piora nos índices de desmatamento nos últimos quatro anos –, é bem provável que tenha havido piora quanto à degradação também. Então, os números a que chegamos, de que 38% das florestas remanescentes estariam degradadas, esse possivelmente é um retrato otimista. Mas também não acredito que, se os dados a partir de 2018 tivessem entrado na análise, os números seriam astronomicamente maiores, porque se trata de um período relativamente curto em relação ao total analisado. E, independente disso, a mensagem continua a mesma: já é preocupante, mesmo não incluindo esse período mais recente.
PU - No fim do artigo, vocês trazem o conceito de smart forests. Quais as contribuições possíveis desse tipo de abordagem?
David Lapola: O processo de degradação compartilha algumas características, em relação às causas, com o desmatamento. Mas outras causas são bem distintas e não têm relação direta. Por isso, usar as mesmas técnicas, estratégias e ações empregadas para coibir o desmatamento não vai funcionar. A gente precisa de novas estratégias, mais inovadoras. Então, esse conceito de smart forests entrou no artigo mais como um exemplo. A gente cita a Green Forest Initiative [Iniciativa da Floresta Verde]. No Pará, eles instalam celulares de segunda mão em locais estratégicos. Se o celular capta, por exemplo, um som de motosserra ou de uma árvore sendo cortada, algo assim, ele emite um alerta e as pessoas competentes vão ao local. Isso ilustra o conceito de smart forests, que deriva das smart cities, uma cidade com Internet das Coisas, muita conectividade, sensores etc., para aprimorar o funcionamento desse ecossistema. No caso das smart cities, um ecossistema urbano. E, no caso das smart forests, um ecossistema florestal. Claro que existem desafios diferentes relacionados à provisão de energia, manutenção dos equipamentos, redes e tudo mais, sobretudo para as áreas de floresta mais remotas. Esse conceito inclusive já é muito difundido entre pessoas que fazem silvicultura, principalmente fora do Brasil. Então, sugerimos isso mais no sentido de dar pano para manga para uma discussão futura.
PU - Como foi a experiência de coordenar esse estudo, envolvendo dezenas de pesquisadores?
David Lapola: É um estudo de revisão. Muitos tendem a achar que um trabalho de revisão é mais fácil, mas na verdade é o contrário, porque não se trata apenas de relatar o que já foi escrito. É preciso tirar conclusões desse corpo de literatura. No nosso caso, [o estudo] envolveu a análise de dados preexistentes. Eu, obviamente, não entendia de tudo, nem era capaz de fazer todas essas análises. Então, acho que o artigo exigiu de mim um esforço mais organizacional, de identificar quem eram as pessoas corretas, quem eram os experts nesse assunto ou naquele, porque o tema é amplo. E foi preciso um pouco de perseverança, porque você recebe uma revisão da revista, pedem alterações, adequações, precisa chamar todo o grupo de novo. É um trabalho que pode ser extenuante, mas foi uma experiência muito gratificante. Para muito além do ego pessoal de qualquer dos autores, nosso esforço de inserir o estudo na Science – e na capa dela, algo que foi objeto de uma insistência minha diante dos editores [da revista] – deveu-se à atenção que o assunto merecia. Fico muito feliz que isso tenha gerado um tsunami de cobertura da imprensa. E espero que agora uma segunda onda de impacto decorrente do artigo ocorra no âmbito dos tomadores de decisão. É urgente começar a pensar em soluções. E que uma terceira onda, essa mais lenta, referente a outros estudos, ocorra de modo a complementar ou até mesmo a contestar o nosso [estudo], mas de modo a fazer avançar esse campo do entendimento sobre a degradação.