“Nossa fênix acaba de partir”, publicaram os colegas de José Celso Martinez Corrêa, nas redes sociais do Teatro Oficina. Zé Celso, como era conhecido, morreu na manhã desta quinta-feira (6) aos 86 anos, vítima de um incêndio. Considerado um dos maiores dramaturgos do Brasil, Zé Celso realizou um trabalho descrito como inovador e revolucionário. Com a arte, enfrentou a ditadura militar e, depois de preso e torturado, foi para o exílio. Na época, também foram salvaguardados fora do Brasil os documentos do Teatro Oficina, que desde 1987 constituem um acervo público no Arquivo Edgard Leuenroth (AEL) da Unicamp.
O acervo possui quase 18 mil itens documentais e iconográficos, como fotografias, cartazes, livros e fitas cassete. Os itens, que percorrem a história da companhia, criada em 1958 por Zé Celso e outros colegas da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), podem ser consultados no AEL.
Em 2008, quando o Teatro Oficina completou 50 anos, o dramaturgo esteve na Unicamp para uma homenagem organizada pelo AEL e que ocorreu no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Na ocasião, Zé Celso esteve junto dos professores Marcelo Ridenti, do IFCH, e Armando Sérgio da Silva, da USP. Como não poderia deixar de ser, o evento virou um espetáculo comandado pelo dramaturgo, que transformou o auditório em um palco aberto.
Leia a reportagem publicada no Jornal da Unicamp na época dos 50 anos do Teatro Oficina:
Aos 50, Oficina continua encenando o novo
Assista ao registro feito pela TV Unicamp, em 2008:
Zé Celso e seu teatro também têm uma ligação profunda com a formação de estudantes de Artes Cênicas da Universidade. Na Unicamp, é frequente a visita dos graduandos ao Teatro Oficina, uma das mais longevas companhias do país e considerado um patrimônio cultural brasileiro.
Mas as reflexões trazidas pelo dramaturgo transcendem sua área de atuação mais imediata. A última montagem dirigida por Zé Celso foi “Esperando Godot”, de Samuel Beckett. Alunos do Programa de Formação Interdisciplinar Superior (Profis) da Unicamp estavam estudando a obra e foram até o Teatro Oficina assistir ao espetáculo, que apresentou como uma de suas inovações a inclusão de Exu na trama. Reflexões sobre a espera e a necessidade de ação mereceram especial destaque da parte dos estudantes.
Confira a reportagem produzida para o Portal Unicamp:
Não adianta esperar por Godot, ele morreu
Veja publicação do AEL:
Nota de pesar pela perda de Zé Celso Martinez
Assista ao vídeo produzido pela TV Unicamp de uma das últimas aparições do dramaturgo no Teatro Oficina.
"Ele tinha uma coisa de escandalizar as pessoas"
O professor Marcelo Ridenti, que esteve junto a Zé Celso no evento realizado na Unicamp, relembra como foi o dia e destaca a importância do acervo do Oficina e do dramaturgo. Para ele, Zé Celso “marcou muito a história do teatro, da cultura e política do Brasil”. Confira:
Um dos materiais que o AEL tem disponível na área de cultura é o arquivo histórico do Teatro Oficina, que tinha no Zé Celso a sua figura mais destacada. É um acervo importante para reconstituir a história não só do Teatro, mas do contexto das lutas sociais dos anos 60 e 70 especialmente.
Na ocasião dos 50 anos do Oficina, houve uma comemoração e o Zé Celso foi convidado. Eu estava na mesa, fiz uma intervenção, depois outro professor que escreveu sobre o Zé Celso também. Mas lembro que nesse dia o Zé Celso se atrasou muito. No fim do evento ele apareceu e fez uma fala longa e emotiva. Mas o mais curioso foi que o Zé Celso tirou a roupa. Ele tinha uma coisa de escandalizar as pessoas, mas uma ou outra pessoa da plateia ficou chocada, não houve tanta celeuma.
Nos anos 1960 era diferente. Aquelas ações que faziam no Teatro Oficina e em outras peças encenadas pelo Zé Celso, por exemplo Roda Viva [em que atores despedaçavam um fígado de boi], eram muito provocadoras. Eram transgressões que hoje estão muito mais incorporadas do que nos anos 1960.
Ele marcou muito a história do teatro, da cultura e política do Brasil. É uma pena que tenha falecido, ainda mais nessa circunstância tão trágica.
Memórias de um ator do Oficina egresso da Unicamp
Egresso da Unicamp, Jota Guerreiro Vilar formou-se em 2022 em Artes Cênicas. Pouco antes de finalizar o curso, já estava atuando no Teatro Oficina. Conhecer o dramaturgo Zé Celso, para ele, foi transformador. Em cartaz na companhia com a peça "Mutação de Apoteose", Vilar traz a lembrança de Zé Celso tocando piano em um dos ensaios abertos. “Sempre apaixonado pelo teatro”, define. Confira o depoimento do ator na íntegra:
Conheci o trabalho do Oficina e do Zé Celso com 18 anos, e foi muito marcante e transformador para minha trajetória e meu entendimento de muita coisa. Me abriu para outras possibilidades de criação e linguagem, me encantei muito pela radicalização dos limites do corpo.
Entrei na faculdade [em 2017] e continuei acompanhando o trabalho da cia. Durante a graduação, tive outra experiência de encontro com ele também. Fazíamos a peça Entremeios, em 2019, dirigida pelo professor Matteo Bonfitto, e fomos selecionades para apresentar na mostra do Itaú Cultural em SP.
Fazia parte da programação da mostra uma visita ao Teatro Oficina. Fomos recebides pela Marília Piraju, que guiou pelo teatro e falou sobre a arquitetura e sobre o projeto do Parque do Rio Bixiga. Depois conversamos com o Zé, que pediu para que cada grupo (eram vários grupos universitários de todo o Brasil) desse uma palhinha do que estava apresentando na mostra.
Depois, em 2022, no meu último semestre da faculdade, passei no processo seletivo da quinta dentição da universidade antropófaga, que é um processo de troca de saberes do Oficina, durante três meses. A partir daí fui me aproximando da companhia, realizamos alguns trabalhos juntos, como agora a peça Mutação de Apoteose, que está em cartaz, dirigida pela Camila Mota.
Não tive a experiência de ser dirigido pelo Zé, que já não tinha como estar diariamente no teatro. Eventualmente, ele aparecia para nos assistir, ou participar dos ensaios abertos, ou em reuniões, sempre muito apaixonado pelo teatro. Lembro dele tocando piano no primeiro ensaio aberto que fizemos de Mutação de Apoteose. Foi muito emocionante, era uma suspensão no meio da peça.
Confira galeria de fotos do evento em 2008 e cenas do espetáculo Esperando Godot: