A atividade humana sobre o planeta Terra e seus impactos no clima, biodiversidade e sociedade já são descritos por diversos pensadores e cientistas como uma nova era geológica, chamada de Antropoceno. Com o objetivo de levar essa informação científica para além do meio acadêmico e do círculo de ambientalistas, as artistas da dança Cláudia Millás e Érica Tessarolo criaram o espetáculo aTERRAr – E se deixássemos de ser humanos?, que será apresentado nos dias 1º e 2 de setembro (sexta e sábado), às 20h, no Cis Guanabara (Rua Mário Siqueira, 829, Bairro Botafogo, Campinas – SP), com entrada gratuita.
O espetáculo em multilinguagens (vídeo, música, fotografia e dança) convoca o público a um pensamento crítico e à urgente necessidade de agir para a construção de outros mundos. O processo criativo do aTERRAr se deu a partir do diálogo fluido e criativo entre a performer e criadora Millás, a diretora Tessarolo, o compositor da trilha sonora da peça, Daniel Dias, e o artista de vídeo Lucas Reitano. A dramaturgia, que remete a uma palestra, combina as informações objetivas/científicas sobre o Antropoceno com as poéticas corporal, sonora e imagética que se sobrepõem em cena.
O texto dramatúrgico foi escrito por Millás a partir da revisão técnica dos estudos mais recentes sobre o tema publicados por pesquisadores das mais diversas áreas. Esse trabalho de revisão faz parte do seu projeto de pós-doutorado “aTERRAr: criações artivistas no Antropoceno”, que desenvolve no Lume (Núcleo Intedisciplinar de Pesquisas Teatrais da Unicamp). A intenção dela, ao criar esse espetáculo, é evocar a necessidade urgente de mudanças na forma como a humanidade se relaciona com o planeta assim como chamar atenção para uma das obras de referência do seu processo criativo, o livro O decênio decisivo – propostas para uma política de sobrevivência (Editora Elefante), recentemente lançado pelo professor aposentado da Unicamp e pesquisador Luiz Marques.
“Assim como no último livro de Luiz Marques, buscamos despertar no público consciência e lucidez frente à emergência ambiental e climática que estamos vivendo. No livro, Luiz Marques afirma que esta década é decisiva para tentarmos reverter vários pontos em relação ao clima, biodiversidade, entrada de novos poluentes. E isso já impacta diretamente nossas vidas. Por isso, a importância e urgência de tomarmos medidas não somente para agora, mas mudanças que vão ficar por milhares de anos no planeta. Não dá para deixar para depois”, enfatiza Millás.
O subtítulo do espetáculo (E se deixássemos de ser humanos?) é uma provocação para o público refletir sobre nossa conduta enquanto seres humanos. “Que humanidade é essa que está provocando essas alterações, essas intervenções tão agressivas no mundo em que a gente vive? E o quanto são irresponsáveis essas ações, que estão provocando a atual emergência climática? Que humanidade é essa que está levando o planeta a viver a sexta extinção em massa, ameaçando a vida de outros seres, provocando as alterações sem precedentes como a introdução do plástico no planeta, entre tantas outras. Como a gente pode repensar tudo isso? Provocar uma mudança de conduta, com uma pegada mais ecológica? As intervenções existirão, mas que a gente as faça de maneira mais consciente, suave e leve. Isso significaria deixar de ser humano para ser terrano”, completa.
A obra é parte do projeto de pesquisa com o tema “Corpo-em-fluxo: práticas ecológicas para reinventar mundos”, desenvolvido por Millás, que é professora adjunta do Departamento de Arte Corporal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Ela começou a gestar o aTERRAr em 2021, ainda no período da pandemia, dentro do grupo de estudos Mude (Movimentos Urgentes em Dança e Ecologia), criado pela professora e composto por artistas da dança, entre os quais Tessarolo, que assina a direção do espetáculo.
Versatilidade
Com o objetivo de levar a temática do aTERRAr a um público mais amplo, as artistas conceberam o espetáculo como uma palestra-performance artivista – unindo arte e ativismo ambiental – para ser apresentado fora dos espaços convencionais dos teatros e caixas cênicas italianas, podendo ocupar salas de aula de escolas e salas multiuso de espaços culturais e comunitários de todo o Brasil.
“Não é uma palestra como estamos acostumados a ver em ambientes escolares ou empresariais, pois lança mão de diversos recursos artísticos com o intuito de trazer à tona o que acredita ser urgente dizer. Mas o que está sendo apresentado verbalmente, carregado de dados científicos, e a própria pessoa falando em cena, tudo isso tem um peso central na dramaturgia desse trabalho”, destaca Tessarolo.
Millás observa que o texto do aTERRAr é um texto vivo porque está aberto para dialogar com os diferentes públicos. “Se estamos apresentando [o espetáculo] em uma escola, utilizo um repertório de palavras e informações. Se estamos no contexto acadêmico, tenho outro. Além disso, há a própria atualização dos estudos e pesquisas”, observa Millás.
Além das apresentações no Cis Guanabara, como forma de difusão do conhecimento e acesso ao tema do espetáculo, a produção realizou uma live sobre o processo artístico (que pode ser vista aqui) e serão realizadas apresentações em escolas públicas de Campinas e Bragança Paulista, além de oficinas de formação para professores das escolas públicas visitadas pelo projeto. Depois das apresentações nas escolas, são realizadas rodas de conversa com o público para que os assuntos tratados na palestra-performance possam ser desenvolvidos com maior profundidade, dando oportunidade para que as dúvidas e curiosidades dos espectadores sejam respondidas. O espetáculo também foi apresentado no dia 26 de agosto em Bragança Paulista na Casa Lebre.
A produção contou com o apoio do Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo, Edital ProAC Expresso n°3/2022, para produção de espetáculo inédito de dança.
Sustentabilidade
Em meio a uma cultura de descartabilidade, também presente em muitas das ações culturais na forma de impressão de materiais que depois são jogados fora, gerando impacto no meio ambiente, a produção do aTERRAr optou por confeccionar um banner de maneira artesanal, feito pela artista-têxtil Hellen Audrey, com diversas técnicas (bordado, renda inhanduti, crochê e costura). A ideia de Millás e Tessarolo foi a de colocar o público, especialmente os alunos de escolas, em contato com um material de divulgação que os convidasse a acessar elementos essenciais para uma cultura de regeneração, convidando-os a desacelerar, a reconhecer a beleza que também pode nascer das mãos, a importância do tempo de contemplação e encantamento para criar um outro mundo.
Questionamentos
Durante 50 minutos do espetáculo, o público ficará imerso nos questionamentos feitos pelas artistas, entre os quais: “O que acontecerá se continuarmos sonâmbulos diante do colapso ambiental causado pela ação humana, agenciando elementos e seres vivos da Terra ao nosso dispor, atuando como um elemento geológico e agente geomórfico com efeitos semelhantes ou até mesmo maiores do que forças geofísicas da natureza? De que forma resistir à barbárie que se aproxima? Ou ainda, como se orientar politicamente no Antropoceno? Onde aterrar?”.
Para transformar esses questionamentos em cenas, imagens e uma experiência sensível e que despertasse no público a responsabilização e a urgência por novos posicionamentos, as artistas pesquisaram estudos recentes, publicados nos últimos dez anos por autores e pensadores que se dedicam a investigar a situação ambiental e as alternativas para as crises vivenciadas atualmente: Stefano Mancuso, Emanuelle Coccia, Bruno Latour, Geneviève Azam, Isabelle Stengers, Anna Tsing, Deborah Danowski, Eduardo Viveiro de Castro, Luiz Marques, Ailton Krenak, Daniel Munduruku e Davi Kopenawa.
Unindo o conhecimento das artes com o saber desses autores e da cosmovisão indígena, as artistas dão sua contribuição reflexiva e sensível ao tema a partir das artes corporais.
“Queremos tocar as pessoas de outras formas, que não seja apenas cognitiva e racionalmente. Nosso desafio foi desenvolver uma ação artística capaz de traduzir, sensivelmente, o que estava sendo falado nos diversos textos científicos, materiais técnicos e discussões realizadas pelos pesquisadores das mais diversas áreas, preocupados com o futuro do planeta e, em consequência, da nossa própria espécie”, explica Millás.
“O aTERRAr pretende ser uma colaboração das artes como ferramenta inteligente, não somente de comunicação, mas também de agenciamento de mundos, que movimenta o pensamento e provoca os espectadores a outras formas de pensar, agir e sentir. Sendo um disparador, o trabalho pretende ativar o público para a urgência em agir de forma lúcida, sensível e coerente”, destaca Millás.
Sobre o Antropoceno
O termo Antropoceno foi criado pelo biólogo Eugene Stoermer em 1980 e adotado por Paul J. Crutzen, químico holandês que ganhou o prêmio Nobel de Química em 1995, para descrever o momento presente, dimensionando o impacto humano não somente local, mas que afeta esferas naturais maiores de modo a comprometer a estabilidade climática verificada na época geológica imediatamente anterior, do Holoceno, na qual surgiram diversas espécies de seres vivos.
Na escala de tempo geológico, o Holoceno faz parte do Período Quaternário, que começou há cerca de 12 mil anos. O seu nome significa "totalmente recente". No entanto, para diversos pesquisadores, o Antropoceno marca o começo de uma nova era, marca a entrada do planeta em uma época de degradação cada vez mais intensa, um processo capaz de extinguir a própria espécie humana.
Serviço:
aTERRAr – E se deixássemos de ser humanos?
Espetáculo com Cláudia Millás e direção de Érica Tessarolo. Trilha sonora de Daniel Dias e videografia de Lucas Reitano. Duração: 50 min. Classificação indicativa: livre.
1º e 2 de setembro (sexta e sábado), às 20h no Cis Guanabara
Rua Mário Siqueira, 829, Bairro Botafogo, Campinas (SP).
Entrada Gratuita.