Nos últimos anos, novos e antigos conflitos globais vêm se acirrando e levando cada vez mais pessoas ao exílio forçado, separando famílias e interrompendo trajetórias de vida. O mais recente relatório da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR) indica que há, atualmente, 108 milhões de pessoas em situação de deslocamento forçado no planeta.
Com o objetivo de ajudar a reduzir a invisibilidade dos refugiados e promover uma reflexão sobre os efeitos dos conflitos contemporâneos nas vidas dessas pessoas, a Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM/ACNUR) da Unicamp e o grupo de pesquisa "Trajetórias sem fronteiras: cinemas do refúgio contemporâneo” organizam a exposição “Visíveis e Invisíveis: Guerras, Conflitos, Vivências”. A mostra traz fotografias do jornalista brasileiro Yan Boechat, que há cerca de duas décadas realiza coberturas em fronts de batalha mundo afora.
O evento de inauguração aconteceu nesta quinta-feira (10), seguido por uma roda de conversa com o jornalista e ativista sírio Anas Obaid, que é aluno da Unicamp através do programa de vagas para refugiados da Cátedra, e do educador e produtor cultural Ivan de Mello, ambos do coletivo “Ponto Zero do Refúgio”, que mediará uma série de atividades complementares à exposição durante esse período. O fotojornalista Yan Boechat também esteve presente na cerimônia.
“Não é apenas um número [108 milhões]. Ele representa vidas, sonhos, frustrações, pesadelos. Existem hoje campos de refugiados maiores do que muitos países europeus, mas que não constam nos mapas. Então, há uma política de apagamento, de invisibilidade, uma necrodiplomacia que permite a morte de pessoas nas fronteiras, e isso fica invisível para um público mais amplo”, analisa a presidenta da Cátedra, Ana Carolina de Moura Delfim Maciel.
O projeto ocupará a Unicamp durante os próximos dois meses. As fotos já estão dispostas em diferentes espaços da universidade, que podem ser encontrados no mapa interativo disponibilizado pelo site da exposição. Com curadoria de Erika Zerwes, “Visíveis e Invisíveis” traz 20 fotografias feitas por Boechat durante a última década, em diferentes coberturas de conflitos, sobretudo no Oriente Médio, na Etiópia e na Ucrânia. As imagens são apresentadas em três grandes conjuntos: "A Frente de Batalha", "A Vida em Meio à Guerra" e "Os Deslocados".
“Achei interessante o fato de ser um brasileiro em fronts internacionais, com um trabalho muito impactante de documentação desses conflitos. Ele tem um acervo incontável e muito generosamente disponibilizou todos os arquivos e nos deu carta branca”, conta Ana Carolina. O conceito de ocupação foi abraçado, porque a ideia era que a mostra ocupasse um espaço onde as pessoas já estivessem circulando, para aumentar a visibilidade. "Não queríamos uma exposição em espaço fechado".
Um dos impasses que surgiu durante o processo de curadoria da exposição foi em relação às fotografias com violência explícita que faziam parte do acervo. Yan Boechat, que se prepara para uma nova viagem à Ucrânia ainda neste mês, frisa não mostrar pessoas que podem ficar em risco devido à exposição. “No mais, não tenho muito freio, fotografo tudo que vejo. Se não está colocando alguém em risco, acho importante registrar”, diz o fotojornalista.
“Por que trazer isso para um público mais amplo? Tem a ver com o próprio título da exposição: estamos nesse limite entre o visível e o invisível. Embora haja relativa circulação de informação no contexto midiático atual, por outro lado é perceptível que grandes potências envolvidas em conflitos e guerras não têm interesse nessa divulgação”, contextualiza a presidenta da Cátedra.
O processo expositivo envolveu uma série de reuniões com equipe de produção, curadoria, fotógrafo e discentes da equipe. Dentre as diretrizes curatoriais, destacou-se a opção de não incluir na exposição imagens de conteúdo sensível. A violência simbólica, no entanto, encarrega-se de comunicar de maneira contundente as dores da guerra.
Guerras cotidianas
A primeira vez que Yan Boechat foi para uma área de conflito foi em 2003. Desde então, esteve em muitas frentes de batalha e campos de refugiados nas regiões mais nevrálgicas de conflitos internacionais.
"Meu trabalho é jornalístico, mas vejo as coisas sob uma perspectiva histórica muito grande. Procuro entender historicamente o que estou cobrindo. Nesse sentido, eu me sinto privilegiado pela oportunidade de assistir de perto essas mudanças históricas. Mas claro que vivenciar essas situações também traz ônus. Você vai se tornando um cara mais duro”.
Como fotojornalista, Boechat busca relacionar a vida cotidiana das pessoas afetadas pela guerra com a dimensão histórica dos conflitos. "Procuro dar voz às pessoas comuns, às vítimas civis. Essa é uma maneira de fugir de uma visão maniqueísta das narrativas sobre a guerra. No momento em que você foca nas pessoas comuns, você consegue fugir desse maniqueísmo".
Em relação às transformações geopolíticas dos últimos anos, Boechat analisa que diversos acordos e arranjos da ordem pós-guerra começaram a ruir. "O fim da guerra fria parecia indicar que teríamos um período de estabilidade, mas isso se mostrou absolutamente falacioso. Há uma disputa imperial pelo mundo hoje. Então, acho que uma das reflexões é que estamos num período de tensão global. Esses conflitos todos têm combustíveis que vão muito além das realidades regionais. Vivemos um momento de instabilidade, como já vivemos na história muitas vezes quando potências entram numa disputa de hegemonia".
Construção coletiva
A curadora Erika Zerwes explica que, devido ao formato fragmentado da exposição, com imagens espalhadas pelo campus, foram selecionadas fotografias mais narrativas, que pudessem comunicar algum aspecto do drama humano envolvido nesses conflitos e ser apreciadas tanto sozinhas quanto no contexto mais amplo das outras imagens da exposição.
“O que mais me impactou nessa obra fotográfica foi a força visual que elas trazem, ao mesmo tempo de serem um testemunho muito franco do que o fotógrafo vivenciou. No meu entender, o olhar do Yan reflete a clareza e o conhecimento que ele tem, tanto das possibilidades quanto dos limites da fotografia em situações extremas. É um olhar que tem enorme compaixão humana, ao mesmo tempo em que também mostra abertamente a crueza dos acontecimentos”.
A concepção do projeto contou ainda com a colaboração de estudantes que atuaram em todas as frentes da organização, como João Ruffatto, do curso de midialogia da Unicamp, que colabora frequentemente com Ana Carolina Maciel em diversos projetos da Cátedra e assina a direção de produção da exposição ao lado dela.
“Foi um processo de muita troca, de todos os lados. A curadora e a professora Ana estavam dispostas a escutar os alunos, que por sua vez puderam entender o ponto de vista da instituição”, diz o estudante.
João observa que um dos aspectos mais interessantes para os alunos foi a oportunidade de participar não só da produção, mas também da conceituação. “Em várias reuniões, discutimos, junto com a curadora, sobre o processo curatorial. Então, vários pontos que surgiram desses debates foram incorporados à exposição de alguma forma. É uma oportunidade muito importante para os estudantes refletirem sobre as formas de representação dos conflitos, das guerras e dos deslocamentos na atualidade”, conclui.
A participação ativa em debates conceituais e práticos envolvidos na concepção da exposição também foi destacada pela estudante Amira Romagnoli, do curso de Midialogia. Sua função no projeto foi na área de comunicação e envolveu igualmente propostas educativas que integram o site e atividades paralelas à exposição.
“Foi o primeiro espaço, dentro da minha experiência acadêmica, em que pude mostrar um conhecimento que não necessariamente aprendi em livros, mas que também é muito valoroso, esse conhecimento da vivência. Sei que a minha atuação conseguiu ser eficaz porque meus colegas e a professora Ana me deram espaço".
Filha de pai sírio que chegou há 25 anos no Brasil como refugiado, os temas contemplados pelo projeto remetem à sua história familiar e às diversas repercussões da questão do refúgio, inclusive no Brasil. “Até hoje, meu pai sofre xenofobia aqui. Essa exposição é muito importante, porque pode ser relacionada à questão de que o Brasil recebe a diversidade, mas não inclui essas pessoas”, reflete Amira.
Confira a ficha técnica com a equipe completa da exposição
Refúgio Acadêmico
Na Unicamp, há cerca de duas dezenas de alunos em cursos de graduação e pós-graduação inscritos através do programa de vagas extras para refugiados da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, oriundos da República Democrática do Congo, Angola, Síria, Afeganistão, Gana, Serra Leoa, Belarus e Rússia.
“As Cátedras começaram recentemente um processo de internacionalização, e a Unicamp vai ser usada como modelo, porque nem todas têm o processo de ingresso de estudantes que temos aqui. Eu acredito imensamente nessa troca”, declara Ana Carolina Maciel.
Em 2022, a Cátedra da Unicamp foi pioneira ao promover o I Seminário Internacional Refúgio Acadêmico, que reuniu mais de 90 participantes de várias nacionalidades, entre refugiados, pesquisadores, ativistas, artistas, membros do poder público e órgãos governamentais, agências de fomento e imprensa, com objetivo de ampliar os debates sobre a tragédia do refúgio contemporâneo e mobilizar respostas concretas.
O grupo de pesquisa CNPQ "Trajetórias sem fronteiras: cinemas do refúgio contemporâneo” se insere nas ações da Cátedra na Unicamp e atua com atividades de pesquisa e orientação sobre o tema do refúgio na narrativa audiovisual, além de promover ações de extensão, como a exposição “Visíveis e Invisíveis: Guerras, Conflitos, Vivências”.
A Cátedra Sérgio Vieira de Mello (CSVM) é um projeto da Agência da ONU Para Refugiados (ACNUR) em cooperação com centros universitários.