O exercício de adaptação de um romance para o cinema tem peculiaridades que não estão contempladas nos manuais de produção audiovisual ou de elaboração de roteiros cinematográficos – o cerne desse trabalho consiste na seleção das partes mais significativas da estrutura narrativa de uma maneira que, na transposição do texto para as telas, o espectador deixe-se sensibilizar. O argumento fez parte das discussões promovidas nesta terça-feira (12) pelo escritor Marcelo Rubens Paiva e pela cineasta Laís Bodanzky durante um encontro realizado no Centro de Convenções da Unicamp.
A mesa intitulada “Literatura x Teatro x Cinema” marcou o encerramento da temporada de Paiva como artista residente do Instituto de Estudos Avançados (IdEA), em uma programação que incluiu palestras e oficinas. Amigos de longa data, o escritor e a cineasta trabalharam juntos, pela primeira vez, na adaptação do livro Canto dos Malditos (1990), de Austregésilo Carrano Bueno (1990), para o premiado filme Bicho de Sete Cabeças, estreia da cineasta em longas-metragens, em 2001.
“Não existe um manual. O manual é escrito analisando filmes, a literatura ou as peças de teatro que já foram feitos, que fizeram sucesso, analisando por que determinada estrutura narrativa funciona”, opina Bodanzky. Para ela, trata-se de um equívoco a pretensão de alcançar uma grande bilheteria apelando a simplificações de linguagem e de estrutura, elementos que supostamente permitiriam cativar um público mais amplo e heterogêneo. “Percebemos que não precisava ser simples, que podia ser mais complexo, que poderíamos colocar uma poesia do Arnaldo Antunes e as pessoas iriam entender, se comover e mergulhar ainda mais naquela história”, explica a diretora sobre seu primeiro longa.
Paiva trabalhou no roteiro inicial de Bicho de Sete Cabeças, mas o projeto todo demorou quatro anos para ser concluído. Bodanzky acabou por retrabalhar o texto com o roteirista e diretor Luiz Bolognesi. Sem usar fórmulas prontas, o filme alcançou sucesso de público e crítica ao denunciar os abusos cometidos em instituições manicomiais, experiência autobiográfica que Bueno publicou, sem maiores repercussões, uma década antes.
A cineasta vê similaridades entre a história de Bueno e o conceito, presente em vários mitos, chamado “jornada do herói”, que envolve a descida a um submundo, o atravessamento de um ritual de passagem e a transformação resultante desse processo. “Às vezes, um filme está em um livro considerado ruim, que não teve grandes vendas, só que está lá. Depende muito do olhar daquele que se debruça, entende qual é a pérola que está ali dentro e ressalta aquela estrutura.”
Na palestra, Paiva discorreu sobre exemplos de adaptações literárias bem-sucedidas, e de algumas equivocadas, e fez uma breve análise sobre as obras de Bodanzky, sugerindo que sua filmografia percorreu temas correlatos e questões derivadas de conflitos pessoais resultantes do processo de amadurecimento, desde o curta-metragem Cartão Vermelho (1994) até os longas Bicho de Sete Cabeças, Chega de Saudade (2007), Como Nossos Pais (2017) e A Viagem de Pedro (2022), seu mais recente trabalho.
Em entrevista ao Portal da Unicamp, Paiva disse considerar que ambos compartilham uma perspectiva parecida no trabalho das adaptações, sempre definindo um objetivo muito claro desde o princípio do roteiro de modo a fazer um recorte das partes mais significativas da trama. “Eu vi mais semelhanças do que discordâncias na nossa conversa. Ela é supercaprichosa e realmente essa é a única diferença entre nós dois. Eu já sou mais do fazer. Ela tem mais calma, mas não chega a ser uma diferença muito gritante”, aponta o autor de Feliz Ano Velho (1982), sua estreia na literatura e que também foi adaptado para os palcos e telas.
Diretora, produtora e roteirista paulistana, Bodanzky teve contato com o ambiente cinematográfico desde a infância, por meio de seu pai, o cineasta Jorge Bodanzky. Além de ter feito curso de atuação com o diretor teatral Antunes Filho (1929-2019), ela se graduou em cinema pela Fundação Armando Alvares Penteado (Faap).
“Foi incrível, engraçadíssimo, porque ele fez uma sessão de análise aqui, comigo, com câmera aberta, plateia e tudo. Ele me pegou de surpresa, de um jeito muito amoroso. É um exercício muito importante quando nós paramos para pensar na obra dos outros, como ele fez na abertura, ou mesmo analisar a minha própria obra, e um artista poucas vezes para para fazer essa análise”, afirma a cineasta em entrevista ao Portal da Unicamp. Bodanzky também dirigiu as peças de teatro Essa Nossa Juventude (2005), de Kenneth Lonergan, e Menecma (2011), de Braulio Mantovani. E, entre 2019 e 2021, foi presidente da empresa de cinema e audiovisual Spcine.
Atualmente, Paiva colabora com o cineasta Walter Salles e o roteirista Murilo Rauser na adaptação para o cinema de seu livro Ainda Estou Aqui (2015). Vencedora do Prêmio Jabuti, a obra narra o desaparecimento e assassinato de seu pai, Rubens Paiva (1929-1971), durante a ditadura militar, e a biografia de sua mãe, Eunice Facciolla Paiva (1932-2018), advogada e militante na defesa dos direitos dos indígenas e dos desaparecidos políticos.
Memórias afetivas
Paiva tem uma longa história pessoal com a Unicamp, onde cursou engenharia agrícola, entre 1977 e 1979, até sofrer o acidente que mudou seu destino e limitou seus movimentos. Depois de se graduar em Rádio e TV pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), em 1988, regressou a Campinas para um mestrado em teoria literária, entre 1991 e 1994, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Apesar dessas duas temporadas, nunca obteve um diploma de conclusão de curso da Universidade. Nesta terça-feira, o escritor recebeu do reitor da Unicamp, Antonio José de Almeida Meirelles, o certificado de participação no Programa “Hilda Hilst” do Artista Residente, do IdEA.
“A volta à Unicamp foi emocionante. Pelo visto esse vínculo não vai terminar nunca, e tomara que não termine. Apesar de minha primeira experiência ter terminado em tragédia, eu nunca deixei de amar esse lado ousado, inventivo, sempre um passo à frente, da Unicamp”, elogia Paiva, lembrando a concessão do título de Doutor Honoris Causa ao grupo Racionais e a inclusão de canções do cantor e compositor Cartola (1908-1980) nas obras obrigatórias do Vestibular.
Em 20 de outubro teve início o ciclo de atividades do artista residente, com a palestra “Marcelo Rubens Paiva: a missão de um escritor”, no IEL, apresentando uma retrospectiva de seus de 40 anos de carreira. Outra etapa dos trabalhos consistiu na oferta de cinco oficinas literárias, na modalidade virtual, entre outubro e dezembro, que contaram com 380 inscritos de várias partes do Brasil e até do exterior. “A experiência online é um pouco frustrante, porque você perde o contato ao vivo com as pessoas, mas, por outro lado, você ganha um público que nem imaginava, de todos os Estados, de outros países, e isso amplia muito a forma que você tem de conversar e atingir as pessoas. E deu muito certo”, avalia o escritor.
O coordenador do IdEA, Christiano Lyra, explica que a opção pela modalidade virtual deu-se principalmente pelas dificuldades de locomoção de Paiva. “A iniciativa trouxe o benefício imprevisto de motivar a participação de centenas de pessoas, de todas as regiões do país e do exterior. O público incluiu iniciantes e escritores bem estabelecidos e premiados.” A fim de aumentar a interação, os participantes criaram um grupo de WhatsApp para compartilhar suas experiências literárias, trocar informações sobre eventos culturais e expressar suas opiniões sobre as oficinas.
“A Unicamp faz parte da obra literária e da vida de Marcelo Rubens Paiva. As experiências dele como aluno de engenharia agrícola da Universidade no final dos anos 1970 foram narradas em Feliz Ano Velho, livro icônico do início dos anos 1980. Seu livro mais recente, Do Começo ao Fim, é também ambientado na Unicamp e em Campinas. Para a comunidade da Unicamp, a residência foi uma oportunidade de desenvolver e renovar os laços com o artista. E, para as novas gerações, uma chance de conhecer a vida, o processo de criação e a obra literária desse brasileiro fundamental”, conclui o coordenador do IdEA.
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Assista ao programa Registro Geral sobre encerramento da residência artística: