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O que as controvérsias
científicas podem nos dizer
sobre a proibição do fumo?


Por: Maria Conceição da Costa e Maiko Rafael Spiess

O século XX foi o cenário para o estabelecimento do consumo de derivados de tabaco como um hábito socialmente aceito e, em alguns casos, até mesmo desejável. Nesse período, o cigarro (surgido como um substituto barato dos charutos e cigarrilhas e, a princípio, visto como um produto moralmente questionável) tornou-se gradativamente um produto massificado, fortemente associado com um simbolismo de masculinidade, sofisticação, emancipação e liberdade. Como aponta o pesquisador norte-americano Allan Brandt em seu livro “The Cigarette Century: The Rise, Fall, and Deadly Persistence of the Product That Defined America”, o processo de popularização do cigarro foi uma mudança rápida e significativa, intimamente relacionada com uma série de inovações tecnológicas, de marketing e profundas mudanças culturais.

Por sua vez, o século atual parece ser o pano de fundo para um movimento contrário: ainda que os efeitos nocivos do consumo de tabaco já sejam conhecidos desde a segunda metade do século passado, apenas recentemente os hábitos tabagistas passaram a ser combatidos com maior ênfase. Se inicialmente o “combate ao fumo” baseava-se em políticas públicas voltadas para a conscientização individual sobre os riscos do tabaco, a mais nova forma de combater os hábitos tabagistas está relacionada com a proibição do consumo de derivados de tabaco em espaços públicos. No Brasil, essa segunda tendência manifesta-se por meio da promulgação de leis que proíbem o consumo de tabaco em ambientes fechados de uso coletivo como, por exemplo, a Lei Municipal nº 29.284/2008 da cidade do Rio de Janeiro, a Lei nº 13.541/2009, do Estado de São Paulo, ou ainda a medida provisória aprovada pelo Senado em novembro último. A racionalidade por detrás dessas leis é muito clara: se o consumo ativo de derivados de tabaco possui efeitos negativos para o fumante, é possível que também a exposição passiva à fumaça tabágica seja nociva à saúde. Assim, a proibição do fumo em locais públicos seria uma medida justificada, pois garantiria que os não-fumantes não sejam sujeitados aos eventuais efeitos negativos dos hábitos tabagistas de terceiros.

No entanto, poucas pessoas sabem que a exposição à fumaça tabágica ambiental e seus efeitos para a saúde humana são ainda um assunto em aberto. É verdade que o fumo em locais públicos pode ser definitivamente incômodo, mas ainda não sabemos com certeza se ele é, afinal, nocivo. Ao contrário do consenso científico existente em torno dos efeitos do consumo ativo de tabaco, a correlação entre a exposição passiva à fumaça de tabaco e doenças cardíacas ou o câncer de pulmão não é tão clara e pode ser questionada por diversos ângulos: os componentes tóxicos da fumaça agem da mesma maneira nos fumantes ativos e nos casos de exposição passiva? O que caracteriza a exposição passiva à fumaça tabágica ambiental, e quais os métodos para seu dimensionamento e medição? A partir de que nível de exposição a fumaça de tabaco é prejudicial? Qual o papel de outras fontes de poluição ambiental na causalidade, por exemplo, das doenças respiratórias?

Para algumas pessoas, a indefinição e o ceticismo podem diminuir a importância de tais medidas de saúde pública. Para outras, a existência de um consenso é pouco significativa, pois em última instância, em caso de incertezas é preferível adotar o “princípio da precaução” e assumir uma postura que proporciona maior segurança. De qualquer maneira, como nos mostra o campo dos Estudos Sociais da Ciência e da Tecnologia (ESCT), as controvérsias científicas são, sobretudo, interessantes oportunidades analíticas. Deste modo, o estudo da controvérsia sobre a exposição passiva à fumaça de tabaco pode fornecer elementos importantes para compreendermos tanto o funcionamento da Ciência, quanto as noções de adoecimento, saúde e vida pública de nossa sociedade.

Uma das mais conhecidas controvérsias sobre a exposição tabágica ambiental tem como protagonistas dois pesquisadores estadunidenses, James E. Enstrom e Geoffrey C. Kabat. Pesquisadores da área de saúde pública nas universidades da Califórnia e Nova Iorque, respectivamente, eles publicaram em 2003, no British Medical Journal (BMJ), um artigo intitulado “Environmental tobacco smoke and tobacco related mortality in a prospective study of Californians, 1960-98”. Apesar de o trabalho publicado seguir todos os preceitos da prática científica e ter sido submetido ao processo de peer review da revista, ele foi quase que universalmente condenado por negar a existência de qualquer relação significativa entre a fumaça ambiental de tabaco e as doenças cardíacas e o câncer. Nem mesmo o fato de os pesquisadores se basearem em um estudo epidemiológico reconhecido (o Cancer Prevention Study – CPS I, produzido pela American Cancer Society) evitou a polêmica e os ataques à credibilidade dos autores e até mesmo do processo editorial da revista.

A primeira e mais comum acusação ao artigo é sobre o envolvimento dos autores com as empresas de tabaco norte-americanas. De fato, ambos os autores estiveram em algum momento relacionados com as companhias produtoras de cigarro ou com escritórios de advocacia que representam essas empresas, caracterizando um claro conflito de interesses. Mas e quanto aos seus opositores, que também recebem financiamento (governamental e privado) para comprovar os efeitos negativos da fumaça tabágica? Nesse caso, a idealização da Ciência como uma atividade desinteressada não contribuiu para a solução do impasse, e acabou privilegiando apenas um lado da disputa. Analiticamente, se as acusações sobre conflitos de interesse podem recair sobre os autores do trabalho, porque elas não poderiam ser aplicadas também para seus críticos?

Para além dessa questão, outros pontos decorrentes da controvérsia merecem destaque. Em primeiro lugar, como indica a antropóloga Mary Douglas, nossas noções de risco são socialmente condicionadas e representam nossos ideais coletivos de segurança, bem-estar e normalidade. Os processos de secularização e a mediação científica fizeram com que os discursos sistematizados sobre risco substituíssem noções mais tradicionais como, digamos, pecado ou tabu. Sua função social, no entanto, é muito similar: as percepções sobre os riscos são sempre politizadas e buscam conformar os indivíduos aos ideais coletivos. Especialmente no caso de algumas doenças crônicas, comportamentos “desviantes” (como os hábitos tabagistas ou dietas ricas em gorduras) contrariam padrões morais e científicos estabelecidos, transformando as pessoas nos principais culpados por sua própria situação de adoecimento. A vinculação entre adoecimento e comportamentos proscritos, e a medicalização do fumante passivo (isto é, sua constituição como um sujeito passível de adoecimento) construiu a noção do fumante como o “outro” culpado pelos riscos à saúde de terceiros. Assim, mesmo sem um consenso sólido a respeito do tema, os hábitos tabagistas (e, portanto, os fumantes!) passaram a ser estigmatizados e sujeitos ao controle governamental e ampla reprovação social.

De forma resumida, o estudo das controvérsias científicas revela elementos sociais normalmente ocultos no processo de construção dos enunciados científicos. No caso específico dos efeitos do fumo passivo, para além de levantar a questão da intervenção “externa” e do financiamento da atividade científica, a análise sociológica demonstra um lado usualmente negligenciado dos grandes estudos epidemiológicos e das prescrições médicas: muito mais do que representações de uma suposta realidade objetiva, em muitos casos esses construtos tecnocientíficos refletem nossos ideais coletivos de segurança e bem-estar que, por definição, são sempre socialmente contextualizados.

Assim sendo, ao invés de proceder com uma simples desconstrução do conhecimento médico e epidemiológico, o estudo social de tais enunciados científicos pode fornecer elementos para uma compreensão mais ampla sobre os temas abordados, seus desenvolvimentos históricos e, principalmente, suas implicações sociais mais amplas. Desta forma, estaremos colaborando para compreender o problema dos malefícios do cigarro sem incorrermos em uma perseguição moralista contra suas maiores vítimas, os próprios fumantes.

Maria Conceição da Costa (dacosta@ige.unicamp.br) é professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica (DPCT), do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp; Maiko Rafael Spiess (spiess@ige.unicamp.br) é aluno de doutorado do mesmo instituto



 
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