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Ginástica como marcador étnico
Estudo mostra como práticas esportivas
ajudaram a difundir cultura alemã no país

Garotos rigorosamente alinhados, alongados e uniformizados. Assim são as imagens registradas dos grupos de ginástica de clubes alemães presentes em São Paulo no final do século 19 e primeira metade do século 20. A ginástica surge de modo mais visível como parte de uma educação corporal que compunha o quadro de uma identidade germânica. As sociedades ginásticas na Alemanha do século 19 tinham o papel de organizações nacionais, de caráter associativo e comunitário, formadoras da identidade nacional e eram constituídas da associação de indivíduos livres. E são essas ideias que se fazem presentes nos grupos de imigrantes que chegam ao Brasil desde o século 19, de acordo com a pesquisadora Evelise Amgarten Quitzau, autora da dissertação de mestrado “Educação do corpo e vida associativa: as sociedades ginásticas alemãs em São Paulo (fins do século 19, primeiras décadas do século 20)”, desenvolvida com bolsa da Fapesp e orientada pela professora Carmen Lúcia Soares. Por meio das fontes analisadas em São Paulo, Evelise identificou a presença da ginástica como parte da vida associativa, cujas práticas buscavam a educação do corpo, mas também a manutenção da cultura alemã.

Ao analisar documentos referentes aos clubes ginásticos de São Paulo, o Deutscher Turnverein e o Turnerschaft von 1890 in São Paulo, Evelise notou uma verdadeira idolatria à ginástica alemã e ao seu fundador, Friedrich Ludwig Jahn (1778–1852). O turnen (fazer ginástica), defendido exaustivamente pelos imigrantes alemães, representava a manutenção da saúde e da cultura alemã. Tanto na Alemanha como nas colônias alemãs no Brasil, a ginástica, como a música, era incentivada desde a infância. O corpo educado pela ginástica representava um cidadão forte, vigoroso e apto ao trabalho. Além disso, os exercícios físicos eram defendidos como formadores de virtudes morais, coragem, presença de espírito, agilidade de raciocínio, camaradagem. Segundo Evelise, a prática dos exercícios físicos estava ligada ao principal aspecto do turnen (ginástica), que seria sua importância como marcador étnico. “O turnen é uma instituição eleita por este grupo de imigrantes para o desenvolvimento de uma comunidade unida e para a preservação da cultura germânica”, enfatiza. Para os alemães, segundo Evelise, a ginástica era a busca do equilíbrio na formação moral e corporal dos jovens.

O rigor no uso da língua alemã, demonstrado em publicações dos clubes, é uma mostra explícita da manutenção dessa cultura e de uma restrição à nacionalidade dos sócios, segundo a autora. A própria forma de se referir à ginástica (turnen) demonstrava o rigor no uso da língua. “Pouca coisa era escrita em português nas publicações e nos avisos aos sócios”, acrescenta a autora. Além das publicações, as canções e os poemas também eram publicados no idioma germânico. Segundo a autora, o turnen, presente explicitamente nos nomes destes clubes, nas denominações de determinados cargos de suas diretorias, no tratamento dado aos seus próprios membros, que faziam questão de se autodenominar turner, foi sempre fervorosamente defendido pelos alemães.

Para Evelise, esses dados encontrados nos documentos dos clubes enfatizam a tese de que praticar a ginástica significava manter viva a ligação destes alemães e descendentes com seu país de origem, suas tradições, mesmo que se considerassem cidadãos brasileiros. A partir da ginástica, segundo a pesquisadora, eles poderiam mostrar suas habilidades corporais em público por meio de grandes apresentações. “As exibições em grandes celebrações eram uma forma de mostrar à comunidade o quanto aquele grupo estava empenhado em trabalhar em prol do desenvolvimento do Deutschtum fora da Alemanha”, acrescenta. Ela acentua que além de ter acesso às publicações especializadas, os clubes fundados no Brasil eram associados à instituição reguladora da ginástica na Alemanha e, por isso, os trabalhos desenvolvidos nesses locais estavam em consonância com as teorias sobre o turnen que circulavam no país de origem.

A leitura das obras fundadoras da ginástica alemã, produzidas entre o final do século 18 e início do século 19, pelo filósofo e pedagogo Guts Muths e pelo pedagogo Jahn, foi importante para uma melhor compreensão da ginástica alemã e das práticas presentes nestes clubes no Brasil. Segundo a autora, havia uma clara distinção entre as argumentações elaboradas por Guts Muths e Jahn sobre a prática da ginástica; enquanto Guts Muths traz em sua obra uma defesa baseada em preceitos educacionais, com fundamentos iluministas e influenciada pelas teorias médicas do período (com grande ênfase nas publicações da polícia médica), Jahn preocupa-se muito mais com o lugar da ginástica na defesa da pátria, ou seja, do turnen, trazendo a seus adeptos um discurso muito mais permeado por questões étnicas e políticas do que por questões científicas e filosóficas. Estes dois aspectos aparecem constantemente mesclados nas publicações dos clubes brasileiros e tanto argumentos médicos quanto étnico-culturais são utilizados para justificar a prática do turnen, mostrando existir uma sobreposição entre as obras de Guts Muths e Jahn. Embora houvesse essa mescla e o clube encontrasse sua definição de turnen no trabalho de Guts Muths ao afirmar que a “ginástica é o trabalho na forma de alegria”, continuam a considerar Jahn o seu fundador e é em sua homenagem e em sua memória que realizam seus trabalhos.

Ilha

Uma ilha alemã no meio da cidade de São Paulo. Assim se viam os associados do clube Turnerschaft von 1890, que consideravam, como alemães, ter a obrigação de preservar sua cultura, buscando uma única e grande família de ginastas, de acordo com Evelise. Grandes festas, como a comemoração do Dia do Trabalho e do Sonnenwende (solstício) são inseridas na programação anual destes clubes na década de 1930 e se mostram como uma forma de unir a comunidade alemã residente em São Paulo. “Há documentos que apontam para a presença de quase 25 mil pessoas reunidas na comemoração do Dia do Trabalho, em 1936, e que cerca de mil deles integraram a demonstração de exercícios coletivos”, afirma Evelise. Outras comemorações serviam também como demonstração dos valores da ginástica, mas não tinham um alcance tão grande quanto estas duas.

Para os clubes, as festas eram também uma forma de estimular os jovens da comunidade alemã de São Paulo que ainda não praticavam ginástica. Segundo Evelise, era comum a apresentação de exercícios com vara, em aparelhos e de esgrima, que causavam boa impressão entre os que assistiam. Nesses momentos, tinham orgulho de mostrar à sociedade como a ginástica os fortalecia e os tornavam aptos aos trabalhos diários, segundo Evelise.

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■ Publicação

Dissertação: “Educação do corpo e vida associativa: as sociedades ginásticas alemãs em São Paulo (fins do século 19, primeiras décadas do século 20)”
Autora: Evelise Amgarten Quitzau
Orientadora: Carmen Lúcia Soares
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)
Financiamento: Fapesp
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Estado Novo via grupos
como ameaça

A manutenção da língua e da cultura foram, na opinião de Evelise, importantes fatores que levaram à ação do Estado Novo sobre estes clubes, na década de 1930, apesar da aproximação do discurso estadonovista à devoção à ordem e ao trabalho dos imigrantes frequentadores dos clubes e ao entusiasmo pela disciplina proveniente da ginástica e do esporte, tanto em seus sentidos higiênicos quanto morais.

Num momento em que se buscava consolidar a nação brasileira, era inadmissível para o governo e para muitos intelectuais a dupla filiação nacional. “Para o ideário do Estado Novo, os grupos de imigrantes alemães, ao manterem sua língua e seus costumes, representavam uma ameaça à unidade nacional. Devemos, também, considerar a livre atuação do partido nazista no Brasil por cerca de dez anos e os indícios da ligação de membros destes clubes a células deste partido no país como um importante aspecto levantado por este estudo, embora este não tenha nosso objetivo principal”, acrescenta Evelise. Para ela, olhar para as questões do nacional-socialismo presentes no Brasil deste período e nestas comunidades de imigrantes é importante para entender a dinâmica política e social do período, entretanto, é necessário compreender que nem todos os alemães eram adeptos desta ideologia e que nem todas as práticas corporais, especialmente aquelas relacionadas à ginástica, ao turnen, eram sua expressão.

A mudança de opinião do governo brasileiro levou ao fechamento dos clubes, pois, influenciado pelo discurso emergente do “perigo alemão” e pelas pressões externas por um posicionamento oficial do Brasil com relação ao nazismo, o governo Vargas promulgou, a partir do final da década de 1930, um conjunto de medidas por meio das quais extinguiu as expressões de outras culturas no país. O primeiro objeto de ataque foi o rigor no uso da língua, proibindo o ensino e as publicações em línguas estrangeiras. Em seguida, o governo impôs a nacionalização a todas as entidades estrangeiras. Diante da forte mobilização a favor de uma política nacionalista, os clubes alemães, objeto de estudo da dissertação, tentaram manter suas atividades, acatando a exigência da nacionalização, alterando seus estatutos, segundo Evelise. Com novos nomes – Associação de Cultura Física de São Paulo e Clube Ginástico Paulista – e tendo brasileiros em suas direções, os clubes da capital paulista perderam o papel de mantenedores do Deutschtum e, consequentemente, a prática do turnen perde também seu lugar central como fator agregador da comunidade alemã em São Paulo.






 
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