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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 16 de setembro de 2013 a 22 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 575Diário traz à tona impasses da saúde mental
Tese defendida na FCM e publicada em livro sugere novas propostas para o atendimento psiquiátricoParaisópolis é uma cidade situada na Serra da Mantiqueira, no Sul de Minas Gerais. Em 2005, o médico psiquiatra Aidecivaldo Fernandes de Jesus, também chamado de Aidê, foi convidado para implantar um serviço de saúde mental na cidade. A proposta inicial era a implantação de um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), o que acabou não ocorrendo. Para um CAPS funcionar, a cidade precisaria, na época, ter mais de 20 mil moradores, de acordo com portaria do Ministério da Saúde (MS). A população local não chega a isso.
Com o apoio do gestor local, Aidê decidiu traçar outra estratégia. O psiquiatra montou, então, um ambulatório multiprofissional em saúde mental nos moldes do Programa Saúde da Família. O ambulatório foi crescendo ao longo desses anos: foram incorporados um psiquiatra, duas psicólogas, uma terapeuta ocupacional, uma assistente social, três agentes comunitários da saúde, uma enfermeira, uma técnica de enfermagem, um administrativo e um auxiliar de serviços gerais. Hoje são 11 profissionais.
O psiquiatra criou um diário coletivo chamado de “Dom Queixote”, em homenagem ao épico de Miguel de Cervantes, “Dom Quixote de La Mancha”. Por alguns meses, registrou suas reflexões e a dos trabalhadores – estes de forma anônima. Cada um escrevia usando um codinome identificado por cores (leia trechos nesta página). Todos podiam ler e escrever. Dificuldades de toda ordem eram relatadas, incluindo relacionamento interpessoal, de ética com relação aos pacientes e até as brigas com os gestores. Mas também havia registros de sucessos, êxitos e alegria.
Em 2008, ao entrar na Faculdade de Ciências Médicas (FCM) da Unicamp, os registros da equipe serviram de base para sua tese de doutorado em Análise Institucional e Saúde Coletiva, defendida em 2012. A orientação foi da professora e socióloga Solange L´Abbate, do Departamento de Saúde Coletiva. O trabalho acabou virando o livro “Saúde mental no contexto da realidade brasileira: As peripécias de uma equipe multiprofissional”, publicado recentemente pela editora Appris.
À luz da análise institucional – metodologia que busca a transformação das instituições a partir das práticas e discursos de seus sujeitos –, Aidê analisou o dia a dia do serviço clínico em saúde mental em Paraisópolis – no qual o trabalho não é focado apenas no atendimento do psiquiatra. Ele é mais um profissional na engrenagem do cuidado multidisciplinar em saúde mental.
“É praticamente unânime, há tempos, o reconhecimento de que uma atenção à saúde de qualidade depende do trabalho integrado de diferentes profissionais numa mesma equipe”. Aidê ousou utilizar um método de pesquisa-intervenção, no qual todos foram participantes. O resultado é uma nova proposta em saúde mental”, explica Solange L´Abbate.
E a partir desse trabalho, Aidê saiu apregoando aos quatro ventos aquilo que viu na prática clínica em saúde mental na pequena cidade do interior de Minas Gerais e aprendeu a partir de muitas reuniões e estudos sobre políticas públicas de saúde. Segundo Aidê, analisar o serviço clínico diário utilizando conceitos aprendidos na Universidade coloca a saúde mental em perspectiva.
“O modelo de atendimento aos pacientes com transtornos mentais adotado em Paraisópolis é inovador e pode ser implantado em 70% das cidades brasileiras com menos de 20 mil habitantes. É melhor atender os pacientes próximo da casa deles a deslocá-los para outra cidade ou centro especializado”, diz Aidê.
Campo minado
Está em vigência no país, há alguns anos, um debate público sobre a chamada “reforma psiquiátrica brasileira”. Entra ano, sai ano, diversos personagens se posicionam a favor ou contra: psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas ocupacionais, enfermeiros, médicos sanitaristas, políticos e pacientes.
Em 2009, cerca de 2.300 pessoas marcharam em Brasília por uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Em 2010, também em Brasília, aconteceu a IV Conferência Nacional de Saúde Mental (CNSM). A aposta de Paraisópolis foi defendida por Aidê nessa conferência.
“Fui delegado nacional e quis levar essa discussão para lá. Até então os municípios pequenos não tinham voz. Esse modelo foi aceito”, disse Aidê.
Segundo Aidê, a última recomendação do Ministério da Saúde – publicada no Diário da União no mês de maio –, alterando a população mínima para implantação de um CAPS para 15 mil habitantes, é fruto do relatório final dessa conferência.
“Acho que conseguimos sensibilizar o Estado brasileiro da necessidade de rever algumas diretrizes. Para mim, a atual Portaria do Ministério está mais flexível e adaptável à realidade de mais municípios de pequeno porte. Por outro lado, permanece o desafio de estabelecermos condições para implantação de um serviço de saúde mental em 100% dos municípios brasileiros”.
De acordo com o psiquiatra, a experiência de Paraisópolis também vai contra a recomendação do Ministério da Saúde para que um CAPS regional seja a porta de entrada da rede de atenção em saúde mental. Em sua opinião, a Estratégia Saúde da Família (ESF), que há 16 anos é o modelo estruturante da atenção primária em saúde no Brasil, deveria ser essa entrada.
“Para um CAPS funcionar, nós precisaríamos fazer um consórcio entre duas ou três cidades. É uma regionalização. Mas isso traz complicações. O CAPS focaliza seus atendimentos em casos graves e persistentes. E não é esse o perfil epidemiológico de Paraisópolis”, revela o psiquiatra.
Até outubro de 2011 foram atendidos 2.880 usuários no ambulatório de saúde mental da cidade mineira, perfazendo uma média de 800 atendimentos mensais, com o registro de 40 a 60 novos usuários por mês. A maioria é composta de mulheres com idade entre 19 e 60 anos, com problemas de violência doméstica, depressão e ansiedades leves. Os homens atendidos, em sua maioria, tinham problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas, dentre elas o crack.
A estrutura física atual do ambulatório atende todos esses pacientes, segundo o psiquiatra. O salário dos funcionários é bancado pela prefeitura. O que falta, na opinião de Aidê, é a implantação de um Centro de Cultura e Convivência (CECCO) na cidade para a promoção da saúde mental. A prefeitura de Paraisópolis está negociando com o Estado a criação desse centro.
A proposta já tomou rumos regionais. Em várias cidades da Serra da Mantiqueira a proposta de Paraisópolis é discutida. Adotando a ESF, Aidê propõe que cada município tenha sua equipe em saúde mental para fazer a visita domiciliar dos pacientes e atendê-los em seu próprio território, além da inserção do agente comunitário de Saúde na equipe do CAPS. O Centro de Cultura e Convivência é um acréscimo necessário à estratégia.
“Por meio de um espaço para a realização de oficinas terapêuticas, arte e cultura, você insere o portador de transtornos mentais no social e faz a promoção da saúde desses pacientes sem a necessidade de medicalização. É isso que defendo, além da terapia”, explicou.
Assim como o personagem “Dom Quixote”, Aidê está sempre com o livro a tiracolo, fazendo palestras e dando autógrafos. “Quero levar a discussão de como construir uma equipe nesse modelo de atendimentos às pessoas com transtornos mentais para todos os lados. Ao adotar essa estratégia, o município e/ou a região já estariam estruturados para receber, futuramente, um CAPS potente e eficiente no atendimento”, diz Aidê.
Trechos do livro
“Enfim, prezado diário, tive mais um dia de trabalho. Sinceramente falando, muito semelhante a tantos outros: brigamos e construímos na reunião, cobramos por uma atuação clínica eficaz, escutamos algumas pessoas, não conseguimos resolver a demanda de outras, não nos foram dadas todas as condições necessárias para uma atuação, foi tenso, cansativo... Mas revigorante ao seu final. (...) Portanto, Queixote, só posso finalizar dizendo que muito mais que queixar a você, sua existência nos permitiu conviver mais honestamente... Não deveria ser esse o principal objetivo de todos os cotidianos?”. Aidê.
“Pessoal, parceiros de trabalho. Hoje venho ao Dom Queixote para dividir com vocês minha ‘inquietação’. Tenho observado alto índice de abstenção nos atendimentos agendados comigo (...) Têm sido frequentes os pedidos para que eu volte a oferecer atendimento individual por partes dos pacientes em trabalho grupal. Confesso que endureci no meu posicionamento que privilegia o atendimento grupal em detrimento do atendimento individual, mas as ‘ausências em sessão’ têm me forçado a rever o meu fazer e levantar questionamento, inclusive sobre a minha ‘adequacidade técnica’. Angustio-me com esta. Às vezes eu me pergunto se eu saberia mesmo trabalhar (...)”. Branca, em 9 de agosto de 2010.
“Fiquei muito satisfeito com a conversa que tive com Vermelha, Laranja e Aidê, posso dizer que saí mais capacitado da sala, admito que esteja completamente equivocado, quando digo que meu jeito de ser é este, apresentado à minha colega, que a fez ficar magoada. (...) Pretendo e vou me esforçar ao máximo para cumprir minhas obrigações e estou disposto a trabalhar em equipe”. Verde, em 2 de março de 2010.
“Sou um ‘usuário em tratamento’, confesso que até ontem nunca tinha relacionado este termo com a minha pessoa, (olha que usei muita droga), mas tinha me esquecido disso, porque talvez de certa forma tenha ou tinha preconceito, com relação ao que o pessoal de fora olharia para mim, hoje trabalhando num serviço de saúde metal, às vezes tendo que conversar com um paciente sobre droga, confesso que fico meio inseguro, porque acho que é como se estivesse falando para mim mesmo, chego às vezes a pensar que sou diferente dos que usam, por estar na saúde mental, mas com isso tudo acontecendo, ‘o querer ajudar’ acaba sendo mais forte. Que bom, é aí que percebo que também sou um deles, porém em tratamento. Falo assim porque sabemos que têm muitos que não querem, não têm condições, sei lá porque, não se tratam. É muito satisfatório ser assistido por todos, penso que olham diferente para mim. Estão sendo fortificantes estas vivências”. Verde, em 4 de fevereiro de 2010.
Serviço
Livro: Saúde Mental no contexto da realidade brasileira: as peripécias de uma equipe multiprofissional
Autor: Aidecivaldo Fernandes de Jesus
Editora: Appris
Páginas: 259
Preço: R$ 62,00
Comentários
Interessantíssimo o tema, a
Interessantíssimo o tema, a experiência e o livro.
Gostaria de adquirir o livro. Como faço??