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Jornal da Unicamp 178 - Páginas 11
24 a 30 de junho de 2002

Agora semanal

Trabalho
“Japonês” no Brasil e estrangeiro no Japão, o dekassegui cria um jogo de identidades para enfrentar situações constrangedoras

Parece, mas não é

Dekassegui significa “trabalhar fora de casa”. No Japão, referia-se a trabalhadores que saíam temporariamente de suas regiões para outras mais desenvolvidas do país, porque o inverno interrompia a produção no campo e impedia seu sustento. Eram também dekasseguis os japoneses que, no início do século 20, cruzaram os mares e acabaram formando colônias em terras que deveriam ser apenas temporárias paradas tropicais, até que juntassem dinheiro para retomar o caminho do sol nascente.

A recente e intensa migração de descendentes nipônicos (os nikkeis) para o Japão, iniciada em meados da década de 80, vem sendo chamada de Fenômeno Dekassegui. Seguindo o caminho inverso de seus ancestrais, eles são atraídos por salários bem mais elevados em comparação ao Brasil, apesar de recrutados como mão-de-obra barata e não-qualificada. Os dekasseguis contemporâneos servem a atividades incluídas nos cinco ‘K’ – Kitanai (sujo), Kiken (perigoso) e Kitsui (penoso), Kibishii (exigente) e Kirai (detestável).

Elisa Massae Sasaki, em sua dissertação de mestrado publicada pelo Núcleo de Estudos da População (Nepo) da Unicamp, aborda a nova saga dos nikkeis rumo ao que poderia considerar sua homeland (país de origem). O trabalho é rico em números e informações sobre a população migrante, salários, remessas de divisas para o Brasil, redes sociais criadas para amparar os trabalhadores, além de trazer depoimentos de dekasseguis. Tudo isso para contextualizar o tema principal da pesquisadora: o jogo de identidades que o nikkei – de olhos rasgados, pele amarela e mesmo sangue, mas nascido fora do Japão – utiliza para sobreviver dentro de uma sociedade que o discrimina como um estrangeiro, como aquele que “parece, mas não é”.

Malvistos – Há pouco mais de 15 anos surgiram as primeiras notícias sobre japoneses aqui radicados que foram trabalhar no Japão, forçados pela crise brasileira. Ainda crianças ou muito jovens quando chegaram, os senhores isseis (de primeira geração) retornavam depois de décadas à terra natal. Eram então malvistos pela colônia no Brasil, porque se sujeitar a trabalhos subalternos implicava em ser um fracassado, ferindo o orgulho dos japoneses que para cá imigraram no início do século 20. Apesar da facilidade de entrada no Japão, lá esses isseis se sentiam estrangeiros, tratados como um mal necessário.

No decorrer dos anos seguintes, conforme a migração ganhava volume, o termo dekassegui perderia esse tom pejorativo. Como os nativos se recusavam a realizar o serviço dos cinco ‘K’, o governo japonês vivia às voltas com a invasão de trabalhadores da vizinhança – Paquistão, Bangladesh, China, Taiwan, Tailândia – e geralmente clandestina. O período de pico do fenômeno foi provocado pela Reforma da Lei de Controle e Imigração do Japão (promulgada em 1990), indicando clara preferência pelos nikkeis da América do Sul. A descendência nipônica, no julgamento dos governantes, asseguraria afinidade cultural e facilidade de adaptação à sociedade japonesa.

“Dentro da colônia no Brasil, o que era vergonhoso passou a ser uma boa oportunidade de conhecer a terra dos antepassados, além de assegurar um salário melhor. Outro fator importante é que, em meados dos anos 90, viajaram famílias inteiras de dekasseguis”, informa Elisa Sasaki. Ela lembra que, no início do fluxo, o perfil do migrante nipo-brasileiro era individual, masculino, de primeira ou segunda geração (isseis ou nisseis) e, portanto, com nacionalidade dupla. Os primeiros aventureiros também tinham idade mais avançada, geralmente sabiam falar japonês e tinham pretensões temporárias, ou seja, de juntar dinheiro e voltar ao Brasil para assegurar ou alcançar um padrão de vida melhor em menos tempo.

Rede social – A massificação do fluxo se deu ao ritmo da formação de redes sociais no Japão e no Brasil: um aparato de amparo, infra-estrutura e informações que oferece segurança aos que estão em terra estrangeira. “Entenda-se por redes sociais um conjunto de laços interpessoais que ligam migrantes e não-migrantes, por meio de vínculos de parentesco, amizade e com a comunidade de origem”, explica Elisa. Acrescente-se como atores das redes os agentes intermediários – recrutadores de mão-de-obra, agências de turismo, centros de informação e orientação aos trabalhadores – e aquele que não encontrar perspectivas num país em crise vai se sentir fortemente tentado a se arriscar no exterior.

Seguindo os dados que conseguiu levantar à época de sua dissertação, a pesquisadora estimou em 220mil a população de dekasseguis em 1997, observando que depois da “grande revoada” ocorrida no período de 1989/90, com o boom econômico japonês, o número cresceu muito pouco nos anos subseqüentes. Elisa credita boa parte dessa estabilidade da população à promulgação do “visto de reentrada”, que permitiu aos dekasseguis um ir-e-vir constante entre Brasil e Japão, ou seja: a possibilidade de vir para um período de visitas e descanso, retornando muitas vezes para o mesmo emprego. Segundo ela, esses trabalhadores podem ser incluídos na categoria dos “transnacionais” (migrantes de longa distância).

Guarda-roupa – Mesmo que os órgãos oficiais japoneses ofereçam amparo legal aos nikkeis e que o termo dekassegui venha perdendo a conotação de temporalidade diante do período cada vez maior de permanência no Japão, o preconceito ainda persegue os migrantes. “Nesse pano de fundo desenrola-se o que denominamos de negociação da identidade. O dekassegui é detentor de vários elementos identitários que são acionados de acordo com as situações vivenciadas ao longo da sua experiência migratória”, escreve Elisa Sasaki.

Ela acrescenta que, nas entrevistas que realizou com alguns desses trabalhadores, são comuns os relatos de que “no Brasil se sentiam japoneses e, no Japão, brasileiros”. Não é fácil lidar com a brasilidade (tudo o que foi assimilado de nossa cultura) e a japonidade (herdada de pais e avós), mesmo estando aqui. No Japão, o dekassegui recorre a uma “caricaturização” de situações, jogando com diferenças, contrastes e multiplicidades do japonês, traçando, assim, a sua “marca” irredutível.

Elisa Sasaki tenta explicar melhor esta negociação de identidade: “Vamos nos referir à ‘roupa’ como um valor ou bagagem cultural. Para a viagem, você escolhe algumas roupas, não levando todos os seus pertences. Lá, seu guarda-roupa terá as roupas do país de origem e também as que foram adquiridas no país hospedeiro. Ou seja, além de não levar todos os seus pertences, você também adquire novos elementos da experiência migratória. Daí vai escolher uma roupa para cada ocasião”.

Talvez como resultado dessa experiência, muitos dekasseguis não conseguem se readaptar ao Brasil e retornam ao Japão pouco tempo depois. Uma parte, é verdade, porque se vê novamente em dificuldades financeiras – falta de emprego, baixo salário, poupança insuficiente –, mas muitos simplesmente por opção.

Em seu trabalho, Elisa Sasaki reproduz anúncios publicados em jornais dirigidos a migrantes brasileiros no Japão, procurando por parentes que deixaram de mandar notícias. Segundo a pesquisadora, esses casos são tão freqüentes que já se pode falar em uma “sociedade anônima” de dekasseguis brasileiros, pois estando no Japão, se quiserem, podem facilmente ‘sumir do mapa’.


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