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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de junho de 2013 a 15 de junho de 2013 – ANO 2013 – Nº 564Abertura ‘lenta, gradual e segura’
teve repressão ‘ampla e irrestrita’
Dissertação mostra como agentes da ditadura militarexerciam vigilância sistemática a opositores
A decisão pela “abertura lenta, gradual e segura” no Brasil não impediu que parte da comunidade de informações persistisse na vigilância diária e sistemática de pessoas que faziam oposição ao regime civil-militar. É o que a historiadora Pâmela de Almeida Resende aponta na dissertação de mestrado “Os vigilantes da ordem: a cooperação DEOPS/SP e SNI e a suspeição aos movimentos pela anistia (1975-1983)”, que acaba de defender no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob a orientação do professor Fernando Teixeira da Silva.
“Os documentos que pude pesquisar desconstroem a visão de que a repressão, a tortura e a vigilância foram práticas pontuais em períodos de maior violência, como em 1968, num contexto de combate à luta armada. A vigilância pode ter sido diferente em alguns momentos, mas sempre esteve presente”, afirma Pâmela Resende. “A ideia de que durante o período de distensão houve um afrouxamento do trabalho de vigilância não se sustenta ao nos debruçarmos sobre os documentos do período.”
Segundo a autora da dissertação, com o fortalecimento das lutas democráticas, o período de abertura foi marcado pela intensificação das manifestações sociais e pela decretação da Lei de Anistia em 1979. “O Movimento Feminino pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia estão inseridos nesse contexto de reivindicações, atuando de maneira central no processo de descompressão do regime, assim como nas discussões acerca da exigência de uma anistia que fosse ampla, geral e irrestrita”, acrescenta.
Pâmela Resende observa que a atuação desses movimentos mereceu toda a atenção da vigilância do Estado, além de trazer à tona as desavenças no interior das Forças Armadas. “À medida que os movimentos sociais se rearticulavam, aumentavam as contradições internas quanto às políticas de repressão, numa demonstração de que o processo de transição política deveria levar em consideração também as demandas de uma parte da corporação visivelmente insatisfeita com os rumos da abertura”.
Outra imagem construída na memória pública, conforme a historiadora, diz respeito ao presidente Médici como o responsável pelos anos de maior repressão – “o que realmente foi” – e de Geisel, o sucessor que iniciou a distensão política, como um moderado pouco afeito às correntes radicais das Forças Armadas – “o que não é verdade”. “O ano de 1974, o primeiro de Geisel, ficou marcado pelo registro de 54 desaparecidos e um morto oficial. Houve um mascaramento do sumiço de corpos, sem que fosse permitido às famílias o direito de sepultar seus entes, imprimindo uma normalidade institucional ao governo.”
Ainda sobre o governo Geisel, Pâmela considera que apesar da atuação ativa de uma parte da corporação descontente com a abertura política, não é possível tirar a responsabilidade do alto escalão militar por atos cometidos naquele momento como as mortes do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manoel Fiel Filho nas dependências do DOI-Codi [Destacamento de Operações de Informações do Centro de Operações de Defesa Interna do 2º Exército], em circunstâncias bem semelhantes.
“No caso de Fiel Filho, Geisel exonerou o general Ednardo D’Ávila, comandante do 2º Exército, o que para muitos demonstrava o repúdio do presidente à prática de torturas. Mas, a meu ver, Geisel precisava garantir o controle do processo político, pois enfrentava oposição também no seio das Forças Armadas e não apenas dos movimentos sociais. Ele agiu na mesma direção em 1977, ao demitir o general Sylvio Frota, expoente da ‘linha dura’ que queria ser lançado candidato à Presidência”, atenta a pesquisadora.
Lógica da desconfiança
Pâmela Resende realizou exaustiva pesquisa nos arquivos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (DEOPS-SP) e do Serviço Nacional de Informações (SNI). “A documentação produzida pelo DEOPS, liberada ao acesso público em 1994, é de riqueza maior por apresentar, em alguma medida, o pensamento dos órgãos repressivos, por conta da circularidade das informações. A amplitude temporal do seu acervo, 1924 a 1983, permite mapear o trabalho de vigilância e repressão da polícia política sobre diferentes setores da sociedade civil. Já a documentação do SNI possui a peculiaridade de retratar os conflitos e interesses a partir do golpe de 1964, tendo em vista que esse órgão foi criado pelo regime com interesse e práticas específicos.”
A pesquisadora pôde perceber a vigilância sistemática de opositores do regime nas anotações minuciosas, como por exemplo, sobre acontecimentos e personalidades presentes em atos públicos pela anistia. “Os agentes vão registrar os nomes dos principais oradores, como do advogado Luiz Eduardo Greenhalgh, então presidente do Comitê Brasileiro pela Anistia, da atriz e produtora cultural Ruth Escobar e de Terezinha Zerbini, criadora do Movimento Feminino pela Anistia. Anotavam onde moravam, onde estacionaram o carro, placa, horários, etc., descortinando suas vidas”.
A historiadora incluiu na dissertação algumas das 100 fotografias tiradas por agentes do SNI numa manifestação popular em agosto de 1979 – mês de votação do projeto de lei da anistia. “Nesse conjunto de fotografias encontrei também um informante com o rosto circundado a caneta e em cuja legenda lê-se ‘elemento de segurança’. Quer dizer, o termo comumente utilizado para denominar os opositores do regime – elemento – foi usado para caracterizar um agente de segurança. No decorrer da pesquisa encontrei outros documentos mostrando certa ‘confusão’ nas linguagens utilizadas.”
Dificuldade de acesso
Se no DEOPS a política de acesso a informações já estava consolidada, podendo-se consultar diretamente o banco de dados e os documentos, Pâmela Resende encontrou muita dificuldade para investigar o fundo do SNI, então sob a guarda do Arquivo Nacional em Brasília. “Iniciei o mestrado em 2010 e a Lei de Acesso à informação veio apenas em maio de 2012. Na ocasião, não podia ter acesso direto aos documentos do SNI. Devia formular palavras-chaves e enviá-las a um funcionário, que fazia a pesquisa em uma base de dados cujo conteúdo eu desconhecia. E recebia certidões do que aparecia na pesquisa para solicitar reproduções do que me interessasse.”
A historiadora conta que a falta de acesso lhe trouxe vários problemas, a começar pelo custo de cada reprodução. Outra orientação era para que não se deslocasse à Capital Federal, até porque não poderia consultar a base de dados. “Isso me incomodava muito, pois não sabia a dimensão do fundo e o que poderia pesquisar tangencialmente. Com a Lei de Acesso, eles elaboraram uma base de dados com os acervos produzidos durante o regime civil-militar e que estão sob custódia do Arquivo Nacional. Fui a Brasília diversas vezes posteriormente e constatei uma melhora exponencial.”
Em relação ao recorte na pesquisa de 1975 a 1983, Pâmela Resende justifica que precisava determinar um marco temporal: 1975 é o ano da criação do Movimento Feminino pela Anistia e 1983 o ano da desativação do DEOPS. “Poderia ir somente até 1979, quando foi publicada a Lei da Anistia, mas ela não contemplou a totalidade dos anseios dos movimentos – e, justamente por esse caráter da lei, a luta pela anistia continuou, apesar de uma desmobilização progressiva natural. No entanto, novos atores ganharam um novo protagonismo, como a Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos e o Grupo Tortura Nunca Mais, incorporando outras bandeiras, além da busca dos desaparecidos e a responsabilização do Estado pelos crimes cometidos.”
Publicação
Dissertação: “Os vigilantes da ordem: a cooperação Deops/SP e SNI e a suspeição aos movimentos pela anistia (1975-1983)”
Autora: Pâmela de Almeida Resende
Orientador: Fernando Teixeira da Silva
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)