Edição nº 567

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 01 de julho de 2013 a 28 de julho de 2013 – ANO 2013 – Nº 567

‘Revoltas’ decretam o fim do ciclo de redemocratização, diz docente

Quando manifestações começaram, no início de junho, professor de filosofia terminava livro sobre a história política do Brasil e utilizou esforço para decifrar a voz das ruas

“O país já mudou”, afirma Marcos Nobre, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, autor de livro (e-book) que acaba de ser lançado sobre a onda de protestos que tomou conta do país nas últimas semanas. “As pessoas perguntam: aonde vai dar esse movimento? Já deu em algum lugar. A cabeça das pessoas mudou, a cultura do país mudou. Sobretudo, mostrou que a cultura política que está na sociedade, essa cultura democrática, está muito mais avançada que a do sistema político brasileiro”, explica.

“Choque de Democracia – Razões da Revolta” foi escrito em dez dias, no calor dos acontecimentos, mas como desdobramento de um trabalho maior que Nobre realiza sobre a história política do Brasil, analisando o período entre 1979 e a eleição da presidente Dilma Rousseff, em 2010, e que resultará em um livro a ser lançado no segundo semestre. Segundo o professor, os acontecimentos de hoje marcam o final da fase que ficou conhecida como “redemocratização”. Leia a entrevista:

Jornal da Unicamp – Por que o senhor deu ao livro o nome “Choque de Democracia”?

MARCOS NOBRE – Há um discurso no Brasil, durante décadas, desde 1989, no qual essa palavra “choque” vem sendo usada. Houve o “choque de capitalismo”, o “choque de gestão” e, durante as manifestações, houve a “tropa de choque”. A palavra é usada sempre num sentido que não inclui a democracia, essas forças vivas da sociedade, como se fosse necessário ao sistema político ter um choque para se organizar.

JU – E agora ocorreu um choque no sentido contrário?

NOBRE – Exatamente isso. Queria usar essa ideia. Esse choque veio de onde não esperavam. Trata-se, justamente, de um choque de democracia. Não é um choque de gestão, não é um choque de capitalismo nem tropa de choque. Tínhamos um travamento do sistema político que foi rompido com esse choque.

JU – E por que as manifestações foram chamadas de “Revoltas de Junho”? Que elementos essas mobilizações possuem para serem consideradas revoltas?

NOBRE – Existem canais que são de protesto. Protestos são coisas que ocorrem normalmente em uma democracia. Então, a expressão mais óbvia seria: “protestos de junho”. Mas, na verdade, é um pouco mais que isso. É o fato de que a sociedade não estava encontrando caminhos para expressar o seu protesto, a sua insatisfação, da maneira como o sistema político estava operando, e se revolta também contra essa falta de canais de expressão. Quando aconteceu a repressão policial, as pessoas se disseram: ‘não conseguimos mais influenciar esse retorno político, de maneira alguma; ele se fecha nele mesmo, funciona segundo suas próprias regras e não presta conta à sociedade; e quando tentamos, o sistema quer, ainda por cima, soltar a polícia’.

É uma revolta pelo direito de se manifestar, pela abertura de canais entre a sociedade e o sistema político. Por isso, é mais do que um protesto. Coloquei no plural [revoltas] e isso é muito importante, porque não há uma unidade de reivindicações, de foco, a organização é diferente. As pessoas estão expressando insatisfações de muitos tipos, de muitos níveis, como posso encontrar uma unidade e um traço de união? O que encontrei foi essa revolta contra o sistema, tal como ele está operando, com essa blindagem contra a influência da sociedade.

JU – Em quanto tempo o senhor produziu o livro e como trabalhou nele?

NOBRE – Faz seis anos que estou produzindo um livro da história política do Brasil, de 1979 até a eleição da Dilma Rousseff (2010). Quando estava nos últimos ajustes, eclodiram as revoltas. Houve uma coincidência muito impressionante. No livro, tentava mostrar como e por que, de que maneira, esse sistema foi se fechando nele mesmo, foi se blindando contra as ruas. No final, eu dizia que isso não ficaria assim. Não é possível que fique assim, porque numa democracia você precisa ter canais abertos para mudar e alterar o sistema político. É como se as ruas tivessem atropelado os últimos parágrafos do meu livro. Deixei de lado o livro, que deve sair no segundo semestre, e passei a usar as análises que fiz durante os seis anos para entender esses protestos. Foi como se tivesse construído certa sistematização teórica na qual achava possível compreender o que estava ocorrendo. Por isso, foi possível fazer o trabalho em dez dias.

JU – É isso, essa blindagem, que o livro destaca como sendo “peemedebismo”?

NOBRE – “Peemedibismo” é o nome que dou para essa blindagem do sistema contra a sociedade.

JU – Como poderíamos definir o “peemedebismo”?

NOBRE – O impeachment do presidente Fernando Collor é um marco muito importante [1992] no processo de redemocratização do país. Por um lado, esse processo mostrou que as ruas queriam retomar o poder que achavam ter sido usurpado, mal utilizado. De outro lado, pelo sistema político, houve certo pânico. Lembrando que tivemos uma transição ‘morna’ para a democracia, pactuada pelas elites. No momento do impeachment, essas elites, que pactuaram a transição, ‘disseram’: “como faremos para nos proteger contra isso, porque não é possível que toda a hora que um presidente for mal, as pessoas irão às ruas e retiram o mandato”. Foi uma estratégia defensiva.

Manifestantes protestam em frente ao Congresso, em Brasília, em 20 de junho

JU – E como foi construída essa blindagem?

NOBRE – De forma progressiva. Boa parte da opinião pública aceitou a versão de que o presidente caiu porque não tinha base parlamentar suficiente. Daí nasceu o mito das “supermaiorias”, de que é necessário, para qualquer governo se manter e não sofrer impeachment, construir não só a maioria, mas a supermaioria, alguma coisa que atinja para além dos três quintos de votos necessários para fazer reformas constitucionais. Assim, o sistema político podia continuar operando como sempre e, ao mesmo tempo, com o fato de que os governos eleitos estariam presos a essa supermaioria, todo presidente teria a obrigação de fazer um pacto com esse sistema político.

JU – E por que o senhor chama isso de “peemedebismo”?

NOBRE – Porque o PMDB foi quem primeiro, na década de 80, inventou essa “tecnologia”. Se olhar o resultado da eleição de 1986, verá que o PMDB elegeu a maioria esmagadora na Assembleia Nacional Constituinte, em aliança com o PFL, que tinha feito a Aliança Democrática para eleger Tancredo Neves. Ali se criou na Constituinte uma coisa chamada “Centrão”, que era justamente uma maneira de neutralizar ao máximo as reinvindicações populares. Esse sistema elitista queria dar um jeito de impedir que essas forças de transformação se unificassem. O “peemedebismo” nasce um pouco daí. Na verdade, essa ‘tecnologia’ começa no MDB, durante a ditadura, que obrigou todo mundo a ficar num único partido de oposição. Forças completamente heterogêneas e incompatíveis tinham que se entender dentro do mesmo partido.

JU – Isso tudo resulta nessa crise de representatividade que vive o país?

NOBRE – Há uma crise de representação, com certeza, mas você não pode ter a concepção de uma representação clássica. A sociedade contemporânea, do final do século XX e início do século XXI, inventou formas de representação e participação que não se restringem ao legislativo e à eleição de cargos no executivo. Com certeza, o que está se dizendo [nas ruas] é que as diferentes formas de participação, não só do legislativo e do executivo, não estão funcionando.

JU – É como se a representação estivesse sofrendo uma “mutação”?

NOBRE – Ela está se transformando há algum tempo. O que acontece nas revoltas, é que elas dizem que não está funcionando em nenhum nível. Nem no conselho de segurança do bairro, nem no conselho de saúde da cidade. O horizonte se abriu com as manifestações. Se olharmos a proposta do governo, essa coisa que era constituinte e agora é um plebiscito, está sendo moldada e discutida conforme é encaminhada. Não é uma ideia fechada. Está ocorrendo uma disputa política de como podem ser encaminhados os problemas levantados pela sociedade. A sociedade disse: se vocês quiserem continuar sendo o sistema política brasileiro, vão ter que mudar.

JU – Inicialmente, vários setores da sociedade, como a imprensa, partidos políticos, os próprios políticos e o governo, não compreenderam bem o que estava se passando, alguns chegaram a criticar as mobilizações...

NOBRE – O sistema político, como um todo, ficou atônito e não conseguiu entender as manifestações. Por que isso aconteceu? Vamos voltar ao impeachment do Collor e para as “Diretas Já”. O que temos nas “Diretas Já”? Uma frente contra a ditadura. Você tem uma espécie de unidade forçada, na qual as pessoas deixam as diferenças de lado para um objetivo comum. No impeachment é a mesma coisa. É isso que chamo de “unidade progressista”. As pessoas deixam de lado as suas diferenças políticas, as razões pelas quais foram às ruas, em razão do impeachment. Se olharmos para as revoltas de junho, não há unidade. Não é organizada por nenhum partido, movimento social de massa, por sindicato, por ninguém. Não há palanque. Pela primeira vez temos um protesto que não tem essa unidade forçada, que caracterizou esse processo de redemocratização brasileiro. Não falo em unidade, falo em traço de união das diversas revoltas porque elas têm isso em comum: ser um processo contra um sistema enquanto tal como ele está funcionando, ou seja, contra o “peemedebismo”. Não tem mais unidade e isso significa que acabou nosso processo de redemocratização. Isso é bom. As forças políticas estão juntas na rua, mas são, às vezes, incompatíveis, e estão ali também para disputar o sentido desse movimento.

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