Edição nº 576

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 23 de setembro de 2013 a 29 de setembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 576

Flanando por Sevilha


O livro não nasceu ao acaso. Desde “Paisagens com Figuras” (1955), os poemas escritos por João Cabral de Melo Neto (1920-1999) revelam a influência de Sevilha, na Espanha, na obra do poeta que viveu na cidade em duas oportunidades (de 1956 a 1958; e de 1962 a 1964) exercendo sua carreira de diplomata. Quase 33 anos depois de sua primeira estada em Sevilha, João Cabral publicou “Sevilha Andando” – dividido em duas partes “Sevilha andando” e “Andando Sevilha” –, último livro do poeta em homenagem à cidade, lançado em 1989, ponto de partida para uma pesquisa de mestrado apresentada no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL), da Unicamp, de autoria de Gislaine Goulart dos Santos, orientada pelo professor Marcos Aparecido Lopes. Ela refez o percurso dessa história e defende que o livro se diferencia do projeto poético do autor de livros anteriores e que vinha sendo ensaiado em livros como “Agrestes” e “Crime na calle Relator”.

Depois de sua primeira estada em solo espanhol na cidade de Barcelona em 1946, onde estudou a literatura espanhola do “Século de Ouro”, os “romanceros” e teve contato com importantes figuras artísticas como Joan Miró e poetas da “Geração de 27”, João Cabral foi transferido para Sevilha em 1956, com a missão de fazer pesquisas históricas no Arquivo das Índias de Sevilha, e depois em 1962. Nos dois períodos, o poeta, em suas caminhadas pela cidade, “buscou desvendar os segredos e os encantamentos sevilhanos com seu olhar microscópico e não mais perseguiu o convívio com o mundo intelectual da cidade, como fez em Barcelona, mas caminhou pela cidade sevilhana como um flâneur, desvendando as ruas, a cultura, o povo, os toureiros, as dançarinas”, explica.

Quarta maior cidade espanhola, Sevilha é a capital da Andaluzia, na região sul da Espanha, e tanto impressionou o poeta brasileiro que o levou a declarar que é preciso “Sevilhizar o mundo”, título do poema no qual sugere transformar o planeta, para tornar-se mais civilizado, em uma enorme Sevilha. 

Para Gislaine, “Sevilha andando” e “Andando Sevilha”, se diferenciam do projeto poético da obra deixada por ele, porque na primeira parte, o poeta traz a figura da mulher em seus versos. “João Cabral é conhecido pela crítica como um poeta engenheiro, antilírico e a figura da mulher é considerada um tema da poesia romântica, da qual ele era avesso”. Na segunda parte do livro, “os temas sevilhanos se referem às questões sociais, arquitetônicas e culturais da cidade de Sevilha”. Ainda segundo a autora da pesquisa, João Cabral, nos poemas do livro “Sevilha andando”, “cria um protótipo utópico da mulher e da cidade, ambas satisfazem o amante e o habitante, trata-se de um modelo de poesia criado para expressar a realidade social sevilhana. Neste sentido, João Cabral cria um espaço de dependência poética e ética, ou seja, entre poesia e conhecimento social, como uma maneira de debater as questões sociais sem deixar de passar pelo crivo poético, por este motivo, produz imagens em que a mulher é a cidade e vice-versa”, explica.

Como material de pesquisa, Gislaine recorreu a diferentes versões do livro “Sevilha andando” que chegou a ser publicado separando as duas partes em livros diferentes nas edições da obra completa da poesia do poeta de 1994 e de 1997, organizadas pela segunda esposa dele, a poeta Marly de Oliveira, além de críticas, entrevistas e análises dos poemas.

No primeiro capítulo da dissertação, Gislaine recupera o contato do poeta brasileiro com a Espanha e, particularmente, com Sevilha. Também discute as diferentes edições, desde a original, que trouxe as duas partes unidas, defendendo a manutenção do trabalho original de João Cabral de “dar a ver” Sevilha e a mulher em dois movimentos: “mulher-Sevilha” e “Sevilha-mulher”, o que corresponde às partes do livro “Sevilha Andando” e “Andando Sevilha”. 

A autora também analisou o léxico dos poemas sevilhanos desde o livro “Paisagens com figuras” até “Sevilha andando”, concluindo que as expressões e as palavras em espanhol compõem um dicionário intraduzível para o português por caracterizarem a cultura e o povo de Sevilha. E também avaliou os traços da cultura popular nos poemas de “Andando Sevilha” presentes nas festas tradicionais da cidade e nos monumentos, retratados a partir da observação profunda do poeta. “Mas não é do ponto de vista de um turista que olha e fotografa a cidade nem de um morador, porque João Cabral conhece muito mais sobre a cidade, ele repara em detalhes aquilo que para outros cidadãos passa despercebido”.

“O livro tem um projeto humanístico, ao eleger uma cidade e uma mulher ideais para o amante e para o habitante”, destaca Gislaine.  “O poeta também aborda a questão religiosa nos poemas de ‘Andando Sevilha’, tema incontornável da cultura ibérica por estar presente na história, na cultura, nas tradições, nos costumes e nos monumentos sevilhanos, tema de interesse da análise realizada para o trabalho de mestrado, porque João Cabral se mostrava avesso às questões religiosas e espirituais.”

“No poema “Semana Santa”, a religião é vista como uma manifestação cultural popular que reativa os laços sociais; já nos poemas “O asilo dos velhos sacerdotes” e “Padres sem paróquia”, as atitudes do clero sevilhano são indiferentes às manifestações populares, por isso elas são criticadas nestes poemas por serem irrelevantes à ordem social e coletiva. João Cabral é a favor da religião enquanto manifestação cultural, não como doutrina religiosa”. 

Segundo a pesquisadora, Sevilha marcou o poeta pela semelhança com o nordeste por meio das festas populares. O poeta esteve na cidade pela última vez, em 1992, representando o presidente da República nas comemorações de 7 de setembro na Exposição do IV Centenário de Descoberta da América. Apesar de ter retornado à Espanha dois anos mais tarde, não quis voltar à cidade que o inspirou porque, segundo a autora, ele temia que a cidade tivesse sido dilacerada pelo progresso.

 

Publicação

Dissertação: “Sevilha na poesia de João Cabral de Melo Neto”
Autora: Gislaine Goulart dos Santos
Orientador: Marcos Aparecido Lopes
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)
Financiamento: CNPq