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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 11 de novembro de 2013 a 24 de novembro de 2013 – ANO 2013 – Nº 583Outras bienais
Na história da Bienal Internacional de Arte de São Paulo, há um período pouco lembrado pelos intelectuais e artistas. Não por coincidência, são os anos subsequentes ao Ato Institucional número 5 (AI-5), decretado em 1968. Depois do boicote “Não à Bienal”, em 1969, as exposições da mostra perderam a importância que os principais críticos lhe atribuíam. O período de crise da Fundação Bienal, como responsável pelo maior evento de arte contemporânea do Brasil, só cessou a partir da consolidação da abertura política, registrada nos anos 80. O boicote resultou a criação de quatro mostras paralelas, de abrangência nacional, que ocorreram entre as bienais internacionais. São as pré-bienais, ou bienais nacionais, organizadas, também em São Paulo, dentro da proposta de uma “política cultural” pelo Estado, no âmbito do governo militar.
Quando foi pesquisadora, por três anos, do Arquivo Histórico Wanda Svevo, da Fundação Bienal, Renata Cristina de Oliveira Maia Zago viu-se diante de farta documentação a respeito desses eventos e decidiu pesquisar o assunto em sua tese de doutorado. Uma das descobertas do estudo foi que as bienais nacionais promoveram uma varredura de artistas emergentes em várias regiões do país. Outra foi a tremenda dificuldade de recuperar dados de um período que muita gente prefere esquecer.
Algumas polêmicas não foram compreendidas, outras questões ficaram no ar, perguntas não foram ou serão respondidas. O embate de Renata com a documentação foi a tentativa de organizar e dar sentido àquilo que, algumas vezes, já se perdeu. Documentos não se complementam, ou estão marcados pela destruição do tempo. “Houve uma inundação no arquivo e há marcas de água em alguns documentos. Alguns papéis podem ter se perdido também quando o arquivo, que ficava no porão, foi levado para o segundo andar”.
A história que Renata conseguiu recuperar sugeria a existência de um “pacote” de eventos que ela decidiu chamar de “bienais nacionais”. Trata-se, na realidade, de um conjunto de quatro exposições que ocorreram na década de 1970, e que, em alguns casos, receberam outros nomes. A primeira “pré-bienal” surgiu no ano seguinte ao boicote de 1969 com a proposta de escolher a representação brasileira da Bienal Internacional de 1971. Já em 1972, a mostra leva o nome “Brasil Plástica 72” ou “Mostra do Sesquicentenário da Independência”. Houve mais duas, em 1974 e 1976.
“Eu apostava que as exposições formavam esse ‘pacote’, mas acabei reavaliando, pois a natureza de cada edição vai se modificando. Além disso, a primeira pré-bienal não foi criada com a obrigatoriedade de continuar. Ela poderia ser uma única edição. Por várias razões, houve uma segunda edição, que não teve a mesma intenção da primeira e assim sucessivamente, e se chegou até a quarta, que foi uma grande mostra sem critérios estéticos e artísticos”, explica.
A documentação das mostras nacionais estava separada da documentação histórica das bienais internacionais. Renata apenas chegou aos registros porque encontrou, nos papéis da Bienal de 1971, a menção à pré-bienal de 1970. Segundo ela, não existe bibliografia sobre o tema.
Desde o boicote
O boicote de 1969 foi o que acabou impulsionando a realização das exposições nacionais e teve repercussão em vários países, sob o comando do crítico de arte Mário Pedrosa, no Brasil, e Pierre Restany, na França. Artistas convidados para salas especiais como Hélio Oiticica, Lygia Clark, Amilcar de Castro e Rubem Valentim, se recusaram a participar das internacionais. Renata teve acesso aos convites, enviados ainda em 1968, antes do AI-5, e as respostas dos artistas, pós-Ato, que alegavam compromissos já assumidos no período.
Por causa do movimento, avalia a autora da tese, os organizadores da Fundação tiveram receio de que não acontecesse a mostra internacional e, por isso, resolveram realizar a nacional, assegurando a representação brasileira da Bienal Internacional seguinte.
“A ideia de uma pré-bienal já era anterior. Em 1962 encontrei, na documentação do Arquivo da Bienal, registros de que já havia essa intenção porque os artistas brasileiros reclamavam muito por mais espaço”, diz Renata.
As pré-bienais de 1970 e 1974 funcionam mesmo como uma pré-seleção para a Bienal Internacional. Com exceção da última mostra, em 1976, os artistas passavam por um júri formado por críticos de arte. “Foram feitas seleções regionais e o objetivo, expresso em todos os documentos, inclusive do presidente Ciccillo Matarazzo, era mostrar um panorama das obras de artes, desde aquelas produzidas em Manaus, por exemplo, e no Amazonas, que tem uma ligação maior com o primitivismo e com a arte naif, até a produção mais contemporânea”.
A exposição de 1972 não tem relação com a Bienal Internacional no sentido de escolher a representação brasileira, mas está ligada às comemorações do Sesquicentenário da Independência. “Podemos verificar aí uma questão política que envolve a Fundação Bienal, uma instituição mista, que recebe cada vez mais verbas do estado. É uma forma de o governo militar promover a arte, estreitando relações com uma instituição que é uma das mais importantes nas artes plásticas”. A mostra de 72 é organizada, em parte, pelo Exército. “Tive uma dificuldade muito grande de encontrar as obras e falar com os artistas que participaram”, afirma a pesquisadora.
Em 1974 a pré-bienal volta a ter a função de escolher a representação para a próxima edição internacional. “Nesta exposição há uma mostra de gravuras brasileiras desde os primórdios, com a curadoria só de gravadores. E também houve ateliês livres de gravura com a participação do público. Pareceu-me que foi a mostra mais consistente, desde a preparação do seu regulamento pelos organizadores, até a seleção de artistas que figurariam na próxima edição da Bienal Internacional, levando-se em conta a preocupação dos organizadores de construir uma mostra paralela (de gravura) que privilegiasse a participação do público”.
Quando Renata começou a pesquisar a pré-bienal de 1976 imaginando que o evento seguiria a mesma linha da edição anterior, teve uma surpresa e a certeza de não se tratar de uma história linear. Todos os artistas que se inscrevem foram aceitos. A autora da tese supõe que a decisão da Fundação foi motivada pela ideia corrente de que as mostras regionais estavam chegando ao fim, em função da realização de uma edição latino-americana de 1978.
A proposta de panorama regional das pré-bienais repercutiu nas bienais internacionais. A representação brasileira não estaria refletindo apenas o cenário da arte contemporânea do eixo Rio-São Paulo?
Penumbra
Como parte do “sistema”, as bienais, mesmo as internacionais, acabam marginalizadas no período, segundo Renata. “O circuito alternativo se fortalece”. Em 1970 há uma mostra em Belo Horizonte, “Do corpo à terra”, na qual Cildo Meirelles queima galinhas vivas e Artur Barrio espalha as “trouxas ensanguentadas” pelo córrego Arrudas em Belo Horizonte, uma alusão à tortura e morte pelos militares. “A vanguarda aproveita para sair desse circuito já pré-estabelecido e ocorrem mostras e experimentações não convencionais como as propostas por Frederico Morais – ‘Do Corpo à Terra’ e ‘Domingos de Criação’ – e por Hélio Oiticica, por exemplo a ‘Apocalipopótese’”.
Ainda assim as bienais resistem. A representação internacional, feita via embaixadas, era garantida pela relação diplomática entre os países que enviaram outros artistas, quando os convidados se recusavam a participar. Outra saída encontrada para assegurar a importância da exposição, foi a montagem de salas didáticas, com algumas obras de grandes artistas como Van Gogh, por exemplo.
“O que me incomodava era essa penumbra, não conhecer a história. Eu queria estudar o assunto porque, depois do boicote de 1969, a bibliografia especializada não fala mais das bienais. O tema é recorrentemente retomado a partir do início dos anos 1980, certamente com a Bienal de 1981, que teve curadoria de Walter Zanini. Meu enfoque são as nacionais porque considero importante estudar o acervo documental que temos”.
Renata fez várias entrevistas e nem sempre conseguiu levantar as informações que precisava. “Entrevistei o crítico Olívio Tavares de Araújo e, como ele, muitos falam que não se lembram destas exposições”.
A ideia inicial da pesquisadora seria escolher um conjunto de obras a analisar, mas também faltou iconografia. “Praticamente não há registro fotográfico das pré-bienais. Encontrei apenas 12 fotos em papel e fotos de jornal. As fotos são panorâmicas, sem a identificação de obras, sem a identificação de artistas”.
No final do trabalho, Renata sugere várias questões: o que é o arquivo da Bienal de São Paulo? Será que o que foi guardado foi pré-selecionado? Como a Fundação se comportava de fato neste período? “Minha tese é um recorte, uma análise sobre o discurso construído nos catálogos, nas publicações e como é de fato nos documentos, uma construção que também é do pesquisador, como eu conto essa história”.
Para Renata é importante ressaltar que, neste período obscuro, artistas apareceram com suas obras, e a Fundação Bienal encontrou alternativas para não deixar a exposição morrer.
Publicação
Tese: “As Bienais Nacionais de São Paulo: 1970 – 1976”
Autora: Renata Cristina de Oliveira Maia Zago
Orientadora: Maria de Fátima Morethy Couto
Unidade: Instituto de Artes (IA)