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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 24 de março de 2014 a 30 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 591De olho no futuro
Metodologia dá suporte a ações de planejamento e de tomada de decisões de moradores de comunidade da Ilha do Cardoso, no Vale do RibeiraÉ pouco comum que uma comunidade que tenha despertado o interesse acadêmico e constituído tema de estudos sinta-se em decorrência beneficiada. Não raro essas ações são olhadas com certo desencanto pelos grupos sociais em que são recorrentes. Os sentimentos e a reações que suscitam em relação aos pesquisadores podem ser resumidos em uma manifestação: “Eles sempre vêm aqui e não acontece nada”. Não é o caso dos habitantes da Comunidade do Marujá, no Vale do Ribeira, que através de um processo participativo com abordagens humanista, interativa e construtivista, foram auxiliados a reorganizar e reestruturar suas prioridades e objetivos, envolvidos em um estudo de caso. Alguns elementos se revelaram decisivos para o sucesso desse processo: a sua natureza participativa e construtivista, em que a comunidade se sentiu confortável e confiante; a conscientização coletiva; a coesão dos moradores; as decisões de consenso, fatores percebidos e destacados pelos próprios líderes comunitários.
O Vale do Ribeira possui uma das áreas de belezas naturais mais exuberantes do Brasil. Entre seus parques e reservas naturais de mata atlântica se encontra uma imensa biodiversidade de fauna e flora, o que levou a Unesco declará-lo reserva da biosfera e Patrimônio da Humanidade. Alvo de pesquisas de diversas instituições nacionais e internacionais, nele se encontra a maior parcela remanescente contínua da Mata Atlântica e de ecossistemas associados do país, concentrando 40% das unidades de conservação do Estado de São Paulo.
Dos 30 municípios que constituem o Vale do Ribeira, 23 pertencem ao Estado de São Paulo e os demais ao Estado do Paraná, sendo Registro, Iguape e Cananéia os de maior importância. Entre as unidades de conservação que o constituem destaca-se o Parque Estadual da Ilha do Cardoso (PEIC), localizado na Ilha do Cardoso, que abrange uma área de 151 km, localizada no litoral sul de São Paulo, no município de Cananéia. A 272 km da capital paulista, o acesso ao PEIC se dá pela rodovia Regis Bittencourt (BR 116) até Registo e de lá a Cananéia, de onde se chega à ilha de barco.
Os aproximadamente 400 moradores da ilha se distribuem em sete comunidades, além da indígena Guarai M’bya. Em uma delas, a Comunidade do Marujá - situada entre o canal estuarino e o Oceano Atlântico e constituída de 54 famílias e 180 habitantes -, focou-se o estudo de caso realizado pelo economista Lucas Ferreira Lima, que deu origem à dissertação de mestrado que teve como objetivo apoio à decisão e organização de comunidades tradicionais. O trabalho foi orientado pelo professor Ademar Ribeiro Romeiro, do Instituto de Economia (IE) da Unicamp, e contou com o suporte do aluno de doutorado, também do IE, Ranulfo Paiva Sobrinho.
Ao justificar a escolha dessa comunidade, o pesquisador esclarece que ela tem sido relativamente bem-sucedida nas suas tentativas, em consonância com a política do Estado, em cumprir os objetivos de conservação e preservação ambiental - gestão e manejo dos recursos naturais. Este sucesso é evidenciado pelo grande número de turistas e pesquisadores interessados em conhecer a suas belezas naturais e os métodos utilizados para conservação e preservação ambiental.
Apesar do sucesso relativo do Marujá, os pesquisadores haviam previamente constatado, por meio de conversas e entrevistas, que os seus moradores vivem com receio constante de sofrerem remoção do Parque, situação tensionada por problemas decorrentes da gestão e organização da comunidade e de rivalidades entre grupos familiares.
O autor considera que o seu trabalho ocorreu em um momento em que os moradores da comunidade do Marujá se encontravam com muitas dúvidas sobre como se organizar, redefinir prioridades e repensar objetivos. Contribuiu para isso uma gestão considerada desastrosa da Associação dos Moradores do Marujá (Amomar), que desmobilizou a comunidade e gerou dispersão e desunião. Além disso, conflitos envolvendo famílias, comunidades e órgãos públicos determinaram o temor da população do Marujá quanto à expulsão do PEIC, a exemplo do que já ocorrera na Juréia.
Embora reconheçam a importância do PEIC no controle da especulação imobiliária na Ilha, são constantes as reclamações quanto às limitações que são impostas aos moradores tradicionais pela administração do Parque, tais como restrições à coivara (queima da mata para plantação), derrubada da mata nativa para roças, hortas e construções de casas que atendam às necessidades do crescimento demográfico da comunidade.
Macbeth
Em vista desse quadro, em que pontuavam rivalidades entre famílias e grupos, agravadas por falta de rumos e objetivos, os pesquisadores se colocaram a pergunta: como auxiliar a comunidade do Marujá a se reorganizar, redefinindo prioridades e repensando objetivos? A decisão tomada por eles apoiou-se então na hipótese de que a Abordagem de Apoio Multicritério à Decisão – Multiple Criteria Decision Aid (MCDA), mais precisamente, por meio do Processo Sociotécnico Macbeth de Apoio Multicritério à Decisão, possui um arcabouço metodológico teórico e prático consistente para auxiliar efetivamente a comunidade do Marujá a superar seus impasses.
Lucas lembra que a metodologia abarca tanto aspectos técnicos como sociais e envolve toda a comunidade no processo. “Não é uma metodologia em que realizada a pesquisa de campo se retorna à universidade para elaborar o trabalho. Tudo é desenvolvido na comunidade, com a comunidade e os resultados emanam dela. Nós apenas desenvolvemos a parte técnica do trabalho com os habitantes tradicionais e os auxiliamos a organizar as conclusões a que eles próprios chegaram em suas discussões, em decorrência de um processo de conscientização coletiva”, diz ele.
A Metodologia Macbeth de apoio à tomada de decisão permite avaliar opções levando em conta múltiplos critérios. Diferencia-se de outras metodologias porque requer apenas julgamentos qualitativos. À medida que esses são expressos pelo avaliador e introduzidos em M-Macbeth (www.m.macbeth.com), o software verifica automaticamente a sua consistência e oferece sugestões para resolvê-las. Trata-se, além de tudo, de uma abordagem humanística, já usada para auxiliar moradores de comunidades a se comunicar, refletir e discutir seus sistemas de valores e referências, ou seja, o que julgam importante para solucionar seus problemas.
Esta abordagem promove também a interatividade entre os envolvidos no processo, o que gera entendimento dos problemas e debates para a busca de soluções. Além do que, o seu caráter construtivista traz no bojo a ideia de que as soluções dos problemas não preexistem na mente dos envolvidos no processo. São os debates e as interações realizadas através de um processo sociotécnico que ajudam a comunidade a construir um conhecimento maior sobre os problemas, a identificar e elencar seus objetivos fundamentais e buscar soluções mais sólidas e compartilhadas.
Em suma, a metodologia utilizada leva em consideração tanto os aspectos sociais quanto técnicos em decisões que envolvam múltiplos critérios. E mais, parte dos valores intrínsecos aos atores envolvidos, do que eles consideram importante ou que pretendem alcançar para chegarem aos objetivos por eles traçados. É a estratégia chamada de pensamento focado no valor – value-focused thinking, que diferencia a metodologia utilizada de outros métodos multicritérios.
Para o autor, trata-se de estudo pioneiro, pois embora existam muitos trabalhos sobre avaliação de comunidades tradicionais, ele não identificou nenhum que utilize a Abordagem Sociotécnica Macbeth de Apoio Multicritério à Decisão.
O trabalho de pesquisa inseriu-se no projeto CiVi.Net, patrocinado pela União Europeia, de que participam vários centros de pesquisa no mundo, oriundos de países como Alemanha, Áustria, Brasil, Costa Rica, Suíça, Países Baixos, e que tem como foco a gestão de base comunitária em relação a desafios ambientais. O CiVi.Net procura identificar histórias de sucesso de comunidades em que foram desenvolvidas estratégias de solução para a gestão eficaz dos recurso naturais. Com abordagem focada na “pesquisa-ação” e em estudos de caso, o projeto selecionou quatro regiões em que soluções bem-sucedidas têm sido levadas a cabo: três no Brasil e uma na Costa Rica.
Desenvolvimento
Uma série de reuniões foram realizadas entre membros do projeto CiVi.Net, através da Fundação de Apoio à Pesquisa Agrícola (Fundag), moradores da comunidade do Marujá e os pesquisadores para a realização do estudo de caso. A abordagem sociotécnica Macbeth desenvolveu-se em quatro etapas: identificação do contexto de decisão e do problema; estruturação do modelo; avaliação do modelo multicritério; análise de sensibilidade e recomendações.
Na primeira fase, em abril de 2012, foi realizada uma reunião com representantes da comunidade do Marujá, a equipe técnica do projeto e o autor do trabalho, embora já houvesse ocorrido uma visita prévia em dezembro do ano anterior. Na oportunidade os moradores relataram a situação da comunidade e alguns problemas que os afetam e lhes foi apresentado a proposta de trabalho. Diante da sua aceitação unânime, decidiu-se que o processo de reestruturação seria realizado em maio do mesmo ano em encontros com três grupos: crianças e jovens; adultos; e com esses dois agrupamentos conjuntamente.
Nesta segunda fase, mais precisamente, na reunião com representantes de todas as faixas etárias, visou-se definir um conjunto de objetivos relacionados a cada área de preocupação da comunidade, como liderança, cultura e lazer, ensino, saúde, meio ambiente, moradia, economia, comunicação, turismo, de forma que fossem compreendidos e aceitos pelos participantes. Nela também foram selecionados representantes dos dois grupos etários para a etapa seguinte que se destinava à estruturação dos objetivos fins e meios. Em junho e julho realizaram-se as duas últimas etapas deste processo.
Lucas constata que antes da aplicação do processo sociotécnico Macbeth os moradores da comunidade de Marujá não vislumbravam objetivos a serem buscados. Para ele, o Machbeth efetivamente auxiliou a comunidade a repensar suas prioridades e a redefinir como objetivo estratégico a sua permanência no PEIC, o que surpreendeu seus próprios membros, pois eles não tinham ideia que este seria o objetivo estratégico a ser perseguido.
Para o pesquisador, o processo auxiliou os moradores do Marujá a organizar suas ideias, definir concretamente seus objetivos fundamentais em áreas como saúde, educação, transporte, energia, entre outras, e a lutar pela permanência da comunidade no Parque. E conclui: “O processo levou a uma coesão social que modificou radicalmente o ambiente na comunidade. As crianças e os jovens se sentiram valorizados porque até então não eram chamados a participar, inclusive dando sugestões em que os adultos reconheciam não ter pensado. Uma delas foi a criação de um barco-ambulância, para atendimento de casos de urgência, conduzindo até o hospital de Cananéia mulheres em processo de parto, acidentados, vítimas de picada de cobra. A criação de uma comissão de líderes em substituição a um único líder resolvia também problemas de rivalidades de grupos. Mas certamente o resultado mais significativo foi a conscientização das pessoas, fato ressaltado por elas mesmas nos contatos que ainda mantemos com a comunidade. Agora eles sabem para que lutar e como lutar”.
Ilha virou Parque Estadual em 1962
No início do século XVI o litoral sul de São Paulo foi uma das primeiras regiões brasileiras colonizadas pelos portugueses. A partir dos anos 1700, embarcações construídas na região passaram a ser usadas na navegação de cabotagem. Durante o século XVIII, a produção pesqueira e agrícola da região chegava aos portos do Rio de Janeiro, Santos, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. A região entrou em crise quando, ao final desse século, a Metrópole proibiu o comércio com outras cidades.
A produção agrícola foi retomada em meados do século XIX, principalmente com a monocultura do arroz, transportado por via fluvial. Esse tipo de transporte não resistiu à chegada das primeiras estradas de rodagem, que provocaram a desarticulação do sistema econômico local com o êxodo dos grandes produtores. Restaram os pequenos proprietários que praticavam uma agricultura de subsistência, mas expressiva parcela deles acabou impactada pelas leis de proteção ambiental que contribuíram também para estancar o desenvolvimento da região.
O agressivo processo de devastação de matas nativas, resultante de uma ocupação humana desordenada e não planejada, e que vinha desde a colonização, ensejou o conceito de áreas protegidas, inseridas no contexto de valorização e manutenção de reservas naturais, inspirado em modelo implantado desde o fim do século XIX nos EUA. A partir de 1967 vários órgãos foram encarregados da implementação e administração no Brasil das denominadas Unidades de Conservação (UCs). Depois de anos de propostas e debates, em 2000, lei instituiu o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza (SNUC) e definiu órgãos executores da sua implementação.
A Ilha do Cardoso foi transformada por decreto em Parque Estadual já em 1962, na categoria de Unidade de Conservação de Proteção Integral. Portaria Ministerial faz a cessão da Ilha do Cardoso da União para o Estado com o objetivo de permitir a implementação do Parque Estadual e determina a permanência nele apenas dos ocupantes tradicionais da Ilha.
Em 1995 o Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema) aprova relatório de proteção ambiental que recomendava que no Plano de Manejo do PEIC fossem contempladas as famílias de pescadores, incorporadas suas contribuições e lhes fossem atribuídas, preferencialmente, funções de manutenção, fiscalização e gerenciamento.
A elaboração do Plano de Manejo do PEIC ocorreu em 1997 através de processo em que participaram comunidades tradicionais residentes e entidades governamentais e não governamentais que atuavam no Parque. Em 1998, a comunidade criou a Associação dos Moradores do Marujá (Amomar), mantida pelas contribuições dos próprios moradores tradicionais e que passou a se responsabilizar pela limpeza das praias, coleta seletiva do lixo, telefonista e projetos de melhoria. O Marujá dispõe hoje de infraestrutura simples, como escola, centro comunitário, posto telefônico e igreja.
Publicação
Dissertação: “Processo sócio técnico Macbeth de apoio multicritério à decisão e a organização de comunidades de tradicionais: o caso da Comunidade do Marujá, no Vale do Ribeira – SP”
Autor: Lucas Ferreira Lima
Orientador: Ademar Ribeiro Romeiro
Unidade: Instituto de Economia (IE)