Edição nº 591

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de março de 2014 a 30 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 591

Histórias que ensinam (e despertam)

Pesquisa da FE mostra como a literatura infantil pode ser útil para o desenvolvimento das crianças

Como ensinar as crianças contando histórias e por meio da literatura? E ensinar não somente os conteúdos propostos pelas escolas, como também auxiliá-las em seu desenvolvimento cognitivo e afetivo, proporcionando a formação de um sujeito crítico? Esta é a proposta da tese de doutorado de Fernanda Maria Macahiba Massagardi, desenvolvida na Faculdade de Educação (FE) da Unicamp. Ao longo de 575 páginas, a autora traça o caminho a ser percorrido pelos professores, abordando, de maneira pedagógica, as questões pertinentes à aprendizagem envolvendo as histórias contadas nos livros.

“O eixo que norteou a pesquisa foi o de ensinar contando histórias da literatura pensando no ensino de forma ampla, não só relacionado ao conteúdo escolar, mas também aos valores como ética, respeito, solidariedade e amizade, que estão em crise na escola”, diz a autora.

Para chegar à análise de obras do escritor irlandês Clive Staples Lewis e do brasileiro Monteiro Lobato, escolhidos para exemplificar como a literatura poderia desencadear um processo de aprendizado, Fernanda usou dez capítulos de sua tese, ou 260 páginas. Tomando como base que é preciso, antes de contar histórias, conhecer os porquês da literatura, a relação com a leitura, o livro infantil, a criatividade e a construção do pensamento científico na criança e até mesmo saber sobre as instituições de ensino brasileiras, a doutoranda pesquisou e escreveu sobre diversos temas, na forma de capítulos que podem ser lidos isoladamente. “Não é possível ensinar só lendo a história, o docente tem que ter informação a respeito da criança, do processo criativo, da leitura, de como a criança aprende e interpreta as histórias”. 

A tese traz questões de como se deve escolher um livro infantil, para que seja construtivo e interessante para a criança, qual é o comportamento do público brasileiro, e como as crianças são vistas pelos adultos. Fernanda tem como base as teorias construtivistas de Jean Piaget e a chamada “educação do sensível”, termo que ela traz de escritos do docente João Francisco Duarte Júnior, do Instituto de Artes (IA) da Unicamp, para quem “o mundo moderno primou pela valorização do conhecimento intelectivo, abstrato e científico, em detrimento do saber sensível, particular e individualizado” conforme citação do autor destacada por Fernanda.

 

Literatura na disciplina de artes

A pesquisadora propõe uma mudança fundamental no ensino da literatura: que passe a ser matéria da disciplina de artes, e não de língua portuguesa: “tem sido de grande prejuízo a inclusão da literatura apenas como suporte para dissecação gramatical. É reduzir um universo de significados a uma atividade pontual. É restringir um campo de saberes a um exercício mecânico e instrumental, sem adesão dos sentidos”, assinala. A literatura pertence a um contexto, que deveria ser explorado, segundo a pesquisa. 

Os autores Lewis e Lobato foram escolhidos por se alinharem a proposta da pesquisadora. “Quando comecei o trabalho procurei autores que tivessem essa vertente da formação do pensamento crítico. Lobato escreve História do mundo para as crianças, Emília no país da gramática, Aritmética da Emília e Geografia de Dona Benta, mas também traz em sua literatura argumentações dos personagens, sobretudo da boneca Emília, situações em que acontecem conflitos para serem resolvidos entre crianças, como em A chave do tamanho, por exemplo”. A obra de Clive Staples Lewis, na opinião de Fernanda, também tem essas características. Daí a análise comparada. “A leitura dele na Inglaterra é tão obrigatória quanto os contos tradicionais para nós”, acrescenta.

De acordo com a doutoranda, é possível apontar características das crianças nas personagens dos dois escritores. Algumas falas da Emília de Lobato seriam transduções. “Ela generaliza uma situação, vai do particular para o particular como costumamos dizer, significa que ela supõe que todos pensam como ela”. Os neologismos criados por Emília também serviriam para criar brincadeiras em sala de aula. “Os conflitos que aparecem na história podem ser discutidos com as crianças para que elas deem seu ponto de vista. É possível educar a criança de uma maneira gostosa, sem dar ‘lição de moral’, porque hoje isso está fora de contexto. Não adianta, por exemplo, a gente verbalizar, Piaget falava muito isso... a criança tem que chegar a suas próprias conclusões, construir suas verdades, sem que o professor seja impositivo”. 

Emília tem falas afirmando que o mundo é dos espertos e que a mentira é boa. Fernanda acredita que o professor pode trazer o ponto de vista da personagem para a sala de aula para questionar as crianças. Este é apenas um exemplo.

 

Mais Lobato

De Lobato, a doutoranda analisou as obras: A chave do Tamanho, O minotauro e O Picapau Amarelo, além de Aritmética da Emília, Emília no país da Gramática e Geografia da Dona Benta. Fernanda estudou a biografia do escritor. “Em 1956, Lobato já contava com 102 títulos em circulação na América do Sul. Foi traduzido para o francês, árabe, espanhol, inglês, japonês, ídiche e italiano”, descreve, exaltando a extrema preocupação do escritor com a escassez das leituras direcionadas para crianças na época.

No início do século 20 não existiam contos fundamentados em lendas e tradições brasileiras, mas somente temas relacionados à moralidade, inspirados na tradição europeia, segundo texto da tese. O primeiro livro infantil publicado no Brasil, de autoria de Alberto Figueiredo Pimentel, era uma coletânea de contos de Perrault, Andersen e Grimm. “Eram famosos, contudo, os caderninhos de folhetos intitulados Testamentos. Testamentos do galo, do rato etc. Versos curtos que habitualmente as crianças colecionavam. Os volumes eram muito caros ou muito baratos e de má qualidade”.

Inspirado nas ideias dos educadores da época, Lobato passa a escrever com intuito de educar. Preocupa-se com a formatação e as ilustrações dos livros. Os capítulos têm características de hipertextos: podem ser lidos em sequência ou individualmente (assim como Fernanda sugere que sua tese seja lida). 

Com Emília, personagem que faz mais sucesso entre as crianças, Lobato “antecipa as necessidades da literatura atual, criar leitores questionadores”. Fernanda então retoma Piaget, para quem a criança constrói sua realidade por meio da imaginação e da manipulação do concreto. “Lobato é um mestre no estímulo da imaginação infantil e o docente pode fazer uso dos textos dele para propor experiências concretas para as crianças”.

A chave do tamanho trata da relatividade dos fatos. Lobato traz a Segunda Guerra para a narrativa. Emília tenta encontrar uma chave para terminar com o conflito, no entanto a chave diminui o tamanho das pessoas. A partir daí várias situações são colocadas e podem ser discutidas nas salas de aula. Como as crianças, Emília leva tudo ‘ao pé da letra’, o que a faz suspeitar que muito do que os adultos dizem é mentira. “É uma obra que enriquece e possibilita diversos debates sobre o conceito de mentira, verdade, relatividade, adaptação e democracia”, destaca.

Parágrafo a parágrafo a autora retira dos escritos de Lobato o que pode ser debatido com as crianças e de que forma. Na análise de O Minotauro, Fernanda observa: “Lobato, ao apropriar-se da mitologia e transformá-la, consegue manter sua essência e fazê-la divertida, numa linguagem que a criança consegue entender. É relevante a perspicácia demonstrada por ele no que tange ao mundo da criança e a escolha de temas importantes para a formação de um cidadão pleno”.

 

Lewis

Um autor que ficou conhecido no Brasil pelas telas de cinema. Lewis publicou os sete volumes que compõem As Crônicas de Nárnia entre 1950 e 1956. Em um paralelo com a fé cristã, as crônicas possuem referências bíblicas. A pesquisadora enfatiza, no entanto a possibilidade da leitura sem a preocupação com os ideais cristãos. “É impossível deixar de perceber que há situações muito paradoxais nas narrativas, que propõem atitudes que vão contra o senso comum da vida prática, mas possuem reverberação no pensamento ético, tais como: quem ganha, perde; o fraco é forte, o sano é louco, entre outros”.

Uma característica marcante dos escritos de Lewis é a criação de outros mundos onde habitam seres que não são humanos, mas se comportam como tal. Também é constante a presença de animais falantes. O sobrinho do Mago, protagonizada por crianças, explica como se deu a criação de Nárnia por Aslam, o leão que simboliza Jesus Cristo. A crônica O leão, a feiticeira e o guarda-roupa, a primeira a ser escrita e também a de maior sucesso entre o público, também entrou para a análise da pesquisadora. Quatro crianças humanas chegam ao mundo de Nárnia através de um antigo guarda-roupa.

“A obra de Lewis é questionadora e emerge no século XXI atraindo grande público adulto e infantil, promovendo a tomada de consciência na medida em que traz soluções conflituosas que provocam desequilíbrio cognitivo na criança e também o desenvolvimento afetivo, considerando que enaltece valores como amizade e trabalho em equipe”, assinala.

Fernanda afirma que a literatura promove uma capacidade de significação de mundo para as pessoas. “Eu acredito que a literatura pode ensinar as crianças, mas não apenas o conteúdo exigido pelo currículo. Isso também pode ser ensinado, até porque a criança tem a necessidade de aprender, mas vai além porque a criança vai desenvolver o que o Antônio Cândido chama de poder humanizador da literatura. A humanização é o que falta no ensino”.

 

Publicação

Tese: “Percursos da literatura na educação: ensinar contando histórias”
Autora: Fernanda Maria Macahiba Massagardi
Orientadora: Orly Zucatto Mantovani de Assis
Unidade: Faculdade de Educação (FE)

Comentários

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Gostaria somente de agradecer e parabenizar pelo excelente projeto. Abracos, Isabel C. Ferro Pereira ( psicologa clinica - mestre em Saude Mental)

Pereirai@me.com