Edição nº 591

Nesta Edição

1
2
3
4
5
6
8
9
10
11
12

Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 24 de março de 2014 a 30 de março de 2014 – ANO 2014 – Nº 591

História revelada


Quando se propôs a promover a catalogação do acervo artístico da Catedral Metropolitana de Campinas, como objeto da sua dissertação de mestrado, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, sob orientação do professor Jorge Coli, a pesquisadora Paula Barrantes não fazia ideia da dimensão que o trabalho tomaria. Depois de três anos de intensa pesquisa, período em que escarafunchou documentos e espaços do templo, ela reuniu dados inéditos e relevantes tanto sobre a coleção quanto acerca da história da construção da igreja, que se entrelaça com as circunstâncias políticas, sociais e econômicas da cidade. Paula apurou, por exemplo, que as primeiras obras sacras não foram doadas à Igreja, mas sim para Nossa Senhora da Conceição, padroeira do município e à qual o edifício foi consagrado. Identificou, ainda, que as obras esculturais da Catedral são de autoria de quatro artistas, e não de dois, como se acreditava.

A autora da dissertação conta que o seu projeto de pesquisa pretendia trabalhar com algum patrimônio de Campinas. Depois de analisar vários deles, Paula percebeu que existiam poucas informações sobre o acerco artístico da Catedral. “Mesmo quando recorremos à literatura memorialística da cidade, as referências são escassas e há muitas incertezas sobre as obras. Foi então que decidi fazer a catalogação do acervo”, justifica.  Depois de pedir autorização às autoridades eclesiásticas, a pesquisadora passou a analisar tanto as obras artísticas (pinturas, esculturas, talha etc) quanto os documentos relativos a elas. “O acervo documental estava muito desorganizado. Tive que abrir pasta por pasta e analisar documento por documento para ver o que interessava”, diz.

Uma das primeiras percepções de Paula foi que estava errado catalogar as primeiras imagens sacras doadas à Igreja como pertencentes à Catedral. Na realidade, elas compunham o acervo de Nossa Senhora da Conceição. “Na época, as pessoas costumavam doar bens diretamente aos santos de devoção”, explica. Ainda a título de esclarecimento, a pesquisadora ressalta que seu estudo ficou restrito às obras artísticas pertencentes à matriz. Não foram incluídas no escopo do trabalho as peças que compõem o conjunto do Museu Arquidiocesano de Campinas, que funciona nas dependências do templo.

Paula afirma que conseguiu identificar mais dois escultores que contribuíram para a conclusão da Catedral. Além de Vitoriano dos Anjos e Bernardino de Sena, nomes registrados na historiografia, ela chegou às figuras de dois italianos: Rafaello de Rosa e Marino del Fávero. “O primeiro decorou o forro, as paredes internas e concebeu os dois anjos anunciadores instalados sobre os altares. Ele também foi responsável por toda a decoração da fachada do templo. Já o segundo concluiu a Capela do Santíssimo e o trono episcopal”, aponta. A autora da dissertação observa que, embora o acervo artístico da Catedral seja muito rico, a obra mais importante é a talha, em torno da qual todo o projeto foi executado.

Por falar nas obras físicas do templo, elas levaram 76 anos para serem concluídas. A demora, conforme Paula, ocorreu por causa de vários fatores, principalmente os de ordem política e financeira. “A primeira reunião para se discutir a construção da Catedral, da qual participaram representantes da Igreja e da elite local, ocorreu em 1807. Os trabalhos propriamente ditos começaram a ser executados dois anos depois. Durante 1808, a comissão responsável pela obra, com apoio dos fazendeiros, contabilizou a produção dos agricultores locais, para fechar um imposto provincial que bancaria os custos, mas que foi regulamentado apenas em 1854”. Como forma de arrecadar recursos, também foram feitas contribuições pessoais e realizados bingos.

Um aspecto pouco conhecido acerca da história da construção da Catedral, prossegue a autora da dissertação, diz respeito à criação, em 1872, da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro, com sede na cidade. Foi graças à empresa ferroviária que os trabalhos ganharam um impulso importante. “Na ocasião, a Câmara de Vereadores fez um acordo com a Mogiana, segundo o qual o açúcar e o café que seriam transportados pelos trens deveriam ser pesados e ter a guia de recolhimento de imposto emitida. Como a companhia não permitia sonegação, o dinheiro necessário à conclusão do templo finalmente foi arrecadado”, conta Paula.

Antes de chegar a este ponto, no entanto, o projeto de construção da Catedral enfrentou outros obstáculos, como registra a pesquisadora. A primeira resistência partiu da própria Igreja. As autoridades eclesiásticas não queriam a transferência da matriz da Igreja do Carmo, aprovada pelo Bispado de São Paulo, para a da Nossa Senhora da Conceição. Ainda assim, a proposta foi sustentada por uma elite liderada por fazendeiros, que acabou por vencer a queda de braço. Ademais, também ocorreram diversos problemas políticos que contribuíram para o atraso dos trabalhos. Como o Diretório das Obras era presidido por membros da elite, as sucessões na sua direção causavam interrupções e até mesmo mudanças de rumos do projeto, principalmente quando motivadas por posturas ideológicas.

Todo esse imbróglio, afirma Paula, trouxe consequências sérias, como as sucessivas quedas da fachada do templo. “Em 1865 foi registrada a primeira queda, causada pela falta de fundação e infraestrutura. Apesar disso, o presidente do Diretório das Obras, Sampaio Peixoto, foi mantido no cargo porque era filho de um importante juiz”. Um ano depois, a fachada caiu novamente, pelos mesmos problemas. Sampaio Peixoto foi finalmente demitido. Em 1873, a fachada ruiu pela terceira vez, sob a responsabilidade do espanhol José Maria Villaronga y Panellas. “Foi então que, numa decisão política, os idealizadores do movimento resolveram contratar Cristovão Bonini, que era engenheiro da Estrada de Ferro Sorocabana, para dar continuidade às obras. Entretanto, ele também enfrentou problemas como discussões políticas e falta de recursos”, revela a autora da dissertação.

Dias atuais
A intrincada história da construção da Catedral de Campinas de certa forma ajuda a compreender o atual estado daquele patrimônio histórico e arquitetônico. Na opinião de Paula, que conheceu cada detalhe do acervo artístico e da estrutura do templo, a impressão que se tem é de que a igreja foi submetida a uma condição de descaso, principalmente após a morte do bispo Paulo de Tarso Campos, em 1970. “A situação da Catedral não é das melhores. As telas da via sacra, do pintor Claude Joseph Barandier, estão em péssimo estado. Algumas peças de madeira estão sendo alvo da ação de cupins. Como as calhas laterais do edifício estavam com problema, houve infiltração nas paredes. Com isso, a pintura parietal do calvário de Cristo ficou destruída. Para completar, a imagem do Cristo Crucificado também apresenta problemas”, elenca a pesquisadora.

Na prática, conforme Paula, a Catedral, que é tombada nas esferas municipal e estadual e que está em fase de tombamento em âmbito federal, foi abandonada pelo poder público. A única contribuição da Prefeitura à igreja atualmente, diz, é a designação de um guarda municipal, que faz a segurança do templo em horário comercial. A despeito disso, acrescenta a autora da dissertação, existe a disposição do atual arcebispo metropolitano, dom Airton José dos Santos, de empreender esforços para melhorar a situação da igreja matriz.

Ele esta empenhado em organizar um museu de qualidade, para que mais pessoas tenham acesso ao acervo. “Isso é muito importante, pois o conjunto de obras da Catedral não se refere somente a Campinas. Lá, há peças vindas de Piracicaba, Itatiba, Atibaia e até do Nordeste. Hoje, o Museu Arquidiocesano só pode ser aberto à visitação nas tardes de sexta-feira e nas manhãs de sábado, visto que não há segurança nem guias suficientes para fazer com que o espaço funcione integralmente todos os dias”, lamenta a pesquisadora.

Nos dias que correm, está em vigor uma campanha para custear a segunda fase de restauro da Catedral. De acordo com a igreja, os trabalhos pretendem recuperar tanto na parte estrutural do edifício quanto os seus ornamentos. O projeto contempla a restauração da fachada frontal, lateral e posterior e seus elementos decorativos, torre, campanário, cúpula, forros do altar-mor e capelas laterais, assim como a readequação da infraestrutura elétrica, hidráulica, de comunicações e de condutores de águas pluviais. As obras terão início pela restauração do frontispício (frente do templo). Parte dos recursos virá dos impostos pagos pelo comércio da cidade.

De sua parte, Paula está comprometida com a publicação de um catálogo a partir do material que reuniu durante a sua investigação. “Estou tentando arranjar um patrocinador. O catálogo trará parte importante da história de Campinas, e seria muito bom que um público mais amplo tivesse acesso a esses dados”, pondera. A publicação, caso vá para o papel, conterá, entre outros pontos, a história das fachadas, um dicionário sobre os artistas que passaram pela Catedral e uma relação de algumas de suas obras. Conforme a pesquisadora, que contou com bolsa de estudos concedida pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), além do arquivo documental da Catedral, ela também se valeu de documentos dos arquivos da Cúria Metropolitana de Campinas, do Centro de Memória da Unicamp e da documentação em microfilme do Arquivo Edgard Leuenroth (AEL), do IFCH.

Publicação
Dissertação: “Catalogação do acervo artístico da Catedral Metropolitana de Campinas: pinturas, esculturas, talha e detalhes arquitetônicos de 1840 a 1923”
Autora: Paula Barrantes
Orientador: Jorge Coli
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Fapesp