Edição nº 594

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de abril de 2014 a 27 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 594

Cafundó retrata contradições do Brasil contemporâneo

Carlos Vogt e Peter Fry relançam livro sobre comunidade rural de negros

No final dos anos 1970, o linguista Carlos Vogt e o antropólogo Peter Fry receberam, do então reitor da Unicamp Zeferino Vaz, a incumbência de investigar a veracidade por trás de uma notícia que chegara a ele por meio de um jornalista: a existência de uma comunidade rural de negros que se comunicavam por meio de uma língua africana desconhecida.

Os pesquisadores partiram a campo e constataram, para sua surpresa, que a notícia procedia. “Foi inusitado chegar a uma região tão próxima de São Paulo e deparar com uma comunidade usando uma língua, na verdade, um vocabulário de origem africana, de maneira tão ativa e singular”, relembra Vogt. “Chegamos ao local com nossos gravadores de rolo e começamos a gravar a conversa com o líder, Otávio. Reconheci algumas palavras comuns nas línguas africanas”, conta Fry, que já havia feito pesquisas na África.

A comunidade, que ainda existe, chama-se Cafundó e fica em Salto de Pirapora, a cerca de 150 km da capital paulistana. Nela vivem duas parentelas, descendentes de escravos, a dos Almeida Caetano e a dos Pires Pedroso, totalizando cerca de 80 pessoas, que utilizavam em seu cotidiano a língua, denominada “cupópia”.

Durante pelo menos dez anos (1978 a 1988), Vogt e Fry frequentaram o Cafundó, dedicando-se ao estudo da comunidade e da língua. Os resultados da pesquisa se transformaram em vários artigos e, em 1996, no livro “Cafundó – A África no Brasil”, cuja segunda edição acaba de ser publicada pela Editora da Unicamp e será lançada 16 de abril, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL).

Mais do que observadores, o contato com a comunidade acabou transformando os pesquisadores em personagens de um enredo que, de certa forma, reproduz as complexidades e tensões da sociedade brasileira contemporânea. 

“Fomos conhecendo os aspectos linguísticos, antropológicos, sociológicos que envolviam a comunidade”, relembra Vogt. “Dentre outras coisas, uma disputa relativa às terras onde eles estavam instalados e o pleito de devolução de áreas que teriam sido indevidamente apropriadas”, relembra Vogt. 

Esse contato acabou envolvendo os pesquisadores em processos de busca de melhoria das condições de vida da comunidade, inclusive com o objetivo de assegurar a eles a posse definitiva das terras que ocupavam.

Segundo os moradores, as terras do Cafundó haviam sido doadas pelo antigo fazendeiro, dono de escravos, para duas irmãs, Antônia e Ifigênia, no século 19. A primeira se casou com Joaquim Pires Cardoso, dando origem a uma das subparentelas; a segunda casou-se com Caetano Manoel, de Oliveira, e deu origem à outra.

O processo reivindicando a posse das terras corria na Justiça desde 1972 - ou seja, antes de a pesquisa iniciar. Décadas mais tarde, em 2012, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) assinou o termo de concessão de uso pela comunidade de Cafundó de parte da área reivindicada pelos descendentes das irmãs Antônia e Ifigênia. 

Tal conquista está, em parte, associada à visibilidade que a pesquisa garantiu ao Cafundó na mídia nacional e internacional por sua singularidade. Nesse contexto, ganha relevância a pesquisa realizada pelo historiador Robert Slenes, que se associou a Vogt e Fry, incumbindo-se do levantamento histórico do processo de doação das terras. A pesquisa histórica comprovou várias das versões relatadas pelos moradores do Cafundó, subsidiando o processo judicial.

 

Língua e identidade

Vários são os elementos que despertaram o interesse dos pesquisadores ao “descobrirem” o Cafundó. Um deles foi o ineditismo. “Era surpreendente que ninguém tivesse escrito ainda sobre a comunidade”, reitera Fry.

Outro era o fato de que, como vieram a confirmar Vogt e Fry, a ”cupópia” era, efetivamente, originária de línguas africanas, usada de maneira ativa pelos moradores de Cafundó, ao lado da língua portuguesa. Nesse contexto, explica Vogt, a língua, além de promover a comunicação, funcionava como marcador de identidade do grupo, composto por descendentes de escravos.

Assim, uma das hipóteses levantadas era a de que a “cupópia” constituía-se numa língua formada com base no português, no kimbundu, além de outras línguas africanas que foram trazidas pelos escravos, sobretudo, para as regiões Sul e Sudeste. “Adotamos a hipótese de que esta era uma das línguas usadas para a comunicação entre diferentes etnias no Brasil escravocrata”, explica Vogt.

A hipótese acabou sendo comprovada mediante um extenso levantamento realizado em outras regiões do país, que possibilitou aos pesquisadores identificar semelhanças da “cupópia” com vocabulários que permanecem em uso em outras partes do Brasil – como na cidade de Mauá, na região do ABC paulista e em Patrocínio de Minas.

“É a mesma língua, com diferenças de vocabulário em função da dinâmica da convivência com o português, usada por pessoas que jamais tiveram contado entre si”, afirma o linguista Vogt. “Isso mostra o quanto essa língua pode ter sido disseminada e o quanto foi importante seu papel de comunicação no contexto da escravidão”. 

No Brasil contemporâneo e no contexto da comunidade do Cafundó, a “cupópia” se delineia como expressão de uma identidade africana que convive com outra identidade, a de ser brasileiro. “A brasilidade dos moradores do Cafundó supõe uma expressa da africanidade que está presente o tempo todo em sua vida cotidiana”, detalha Vogt.

 

A cultura negra em cena

Por causa dessa riqueza e complexidade, defendem os pesquisadores, não é exagerado descrever o Cafundó como “uma jóia rara”, cuja “descoberta” colaborou para trazer à tonar e fortalecer a questão da importância da cultura negra a partir da perspectiva das práticas do cotidiano.

Tal dimensão era invisível no Brasil dos anos 1970 - em que a cultura negra tendia a ser associada ao exuberante (à festa e à religiosidade), ou como algo menor, espúrio. “Era um momento em que começavam os movimentos de reconhecimento das minorias e o Cafundó colaborou para trazer a questão racial para o debate público”, afirma o antropólogo Peter Fry. Ele acredita, então, que a pesquisa possa ter colaborado para trazer à luz a questão do negro, que acabou sendo incorporada à Constituição de 1988.

Ao mesmo tempo, ao aprofundar o olhar para o Cafundó, os pesquisadores encontraram na comunidade um microcosmo da cultura brasileira, uma metáfora do Brasil com todas as tensões de natureza racial, cultural, de luta pela identidade, além da pobreza, da miséria e das disputas sociais.

“Falando de algo totalmente insólito e aparentemente distante, falamos, na verdade, do que há de mais comum na expressão da identidade brasileira”, reitera Vogt. Uma identidade na qual convivem forças distintas, que se reforçam e se tensionam. 

No caso da comunidade do Cafundó, a tensão se evidencia entre o “ser caipira”, pois são brasileiros que vivem numa típica comunidade rural do interior paulista e o “ser negro”, ligado a uma identidade ancestral africana. “Quando mais se afirmam africanos, mais caipiras são. Isso é um pouco paradigma de brasilidade. Tem a ver com o que nós somos, com a nossa convivência com as diferentes matrizes culturais de onde viemos”, conclui Vogt.

 

 

 

Acervo de pesquisas vai ser digitalizado

As gravações originais feitas por Carlos Vogt e Peter Fry durante a pesquisa no Cafundó, na cidade mineira de Patrocínio e outras localidades estão sendo digitalizadas e disponibilizadas ao público.

O material sob responsabilidade do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae) do IEL, na Unicamp, foi convertido para meio digital. A iniciativa tornou-se possível graças a uma parceria com a Universidade de Estocolmo, na Suécia, segundo Flávia Carneiro Leão, diretora técnica do Cedae.

O acervo inclui, além das gravações, cópias dos documentos de cartórios utilizados para o levantamento histórico que integra a pesquisa, cartas, além de relatórios e plano de pesquisa, artigos e matérias jornalísticas, dentre outros materiais.

Durante o lançamento da segunda edição do livro, as gravações serão apresentadas. O evento também contará com um debate do qual participarão três moradores da comunidade do Cafundó, além dos autores, Carlos Vogt e Peter Fry.

 

 

Serviço

Lançamento: “Cafundó – A África no Brasil”
Local:
Miniauditório do Centro Cultural do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp
Data: 16 de abril
Horário: 10h

Título: Cafundó — A África no Brasil
Autores: Carlos Vogt e Peter Fry
Páginas: 416
Preço: R$ 68,00
Editora da Unicamp