Edição nº 594

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 14 de abril de 2014 a 27 de abril de 2014 – ANO 2014 – Nº 594

De Cabral aos mosteiros


Ctesebius, de Alexandria, foi o primeiro a juntar um conjunto de flautas a um mecanismo cujas notas eram acionadas através de alavancas, e o ar para as flautas era produzido por um fole hidráulico. Assim nasceu o órgão de tubos, o mais antigo dos instrumentos de tecla, em 246 a.C.

Seja para acompanhar o canto gregoriano, o polifônico ou os hinos congregacionais protestantes, o órgão de tubos sempre teve lugar nas solenidades das Igrejas Católica e Reformada. Era um elemento do culto e por muitos anos o único instrumento permitido nas liturgias. 

Pouco se tem publicado sobre a história do órgão no Brasil e o seu funcionamento. Também havia dúvidas se o país teria tradição organística. Apesar de muitos estudiosos defenderem que não, o doutorando Handel Cecilio concluiu em sua tese de doutorado que houve sim tradição organística no Brasil. A pesquisa, do Instituto de Artes (IA), foi orientada pela docente Helena Jank. 

Muito da dúvida sobre a tradição brasileira se justifica pela necessidade de considerar o contexto histórico, religioso, geográfico, social, urbano e econômico de cada século da história do Brasil, afirma o organista e musicólogo. 

Nos primeiros séculos, as igrejas eram poucas. Então não havia como comparar o Brasil com países da Europa – um continente que já tinha órgãos desde 660 d.C. “Não se pode comparar quantidade com igrejas europeias que possuem pelo menos um órgão. Só o convento de Mafra, Portugal, possui seis órgãos”, argumenta. 

Além disso, a colonização brasileira se deu a princípio no litoral. Depois adentrou o continente. Com isso, eram muitas as dificuldades geográficas e que encareciam o transporte do órgão.

Com a descoberta do ouro na Capitania de Minas Gerais, no início do século 18, Vila Rica tornou-se a cidade mais rica do mundo: “a Nova Iorque da época”. Contudo, para a importação de um produto, trazê-lo do litoral para Vila Rica, levava pelo menos três meses. Imagine então levar um órgão subindo e descendo montanhas no lombo de mula! Essas dificuldades encorajaram o surgimento de mestres construtores de órgãos, os organeiros, nesta Capitania.

A gênese da construção de órgãos no Brasil se deu a partir de meados do século 18, por meio do ensino de ofícios. O mestre passava o que aprendia para o discípulo. Os grandes exemplos foram Agostinho Rodrigues Leite e seu filho Salvador, que aprendeu o ofício com o pai e prosseguiu com excelência na atividade.  

Os órgãos foram introduzidos na Igreja por volta de 660 d.C., contudo foram adotados para acompanhamento no período entre os séculos 9 e 10. Na tradição católica, o canto gregoriano começou um pouco antes, no século 5.

O início do século 16 foi marcante na história do órgão de tubos com a Reforma Protestante – terreno fértil para o canto congregacional, com os hinos e o órgão solista. Logo sentiu-se a necessidade de expandir o instrumento. Foram colocados novos teclados, que passaram a crescer em extensão. A Igreja Católica, com a Contra Reforma, seguiu a mesma tendência. 

No Concílio de Trento, entre 1545 e 1563, foi postulado que o órgão de tubos seria o instrumento por excelência. A notícia foi bem-vinda, e o órgão tomou outra forma e dimensão, oficializando-se na Igreja Católica Romana. 

 

Investigação

Handel Cecilio tinha em comum com o compositor barroco G. F. Handel o gosto pelos órgãos. Isso fez com que abordasse em sua tese a arte organística no país entre os períodos colonial e o imperial. 

Ele procurou esquadrinhar os mosteiros beneditinos, por ser a Ordem que mais preservou o órgão como único instrumento em seus ofícios divinos, desde a fundação dos mosteiros brasileiros.

Seu trabalho teve como um dos objetivos a busca do marco inicial da história do órgão no Brasil e, assim, determinar quem foi o primeiro organista brasileiro. 

O primeiro momento estudado foi a vinda da esquadra de Cabral ao Brasil, que trouxe um frei franciscano organista, Masseu, e um órgão portátil. Pela ligação que os portugueses tinham com a Igreja Católica, os navegantes sempre levavam religiosos em suas embarcações.

Mediante análise de documentos e crônicas de época, procurou-se a comprovação da atuação de frei Masseu nas primeiras missas no Brasil. Este frei italiano acompanhou vários momentos da viagem de Cabral, e Handel os acompanhou para comprovar ou desconstruir a ideia de que ele foi o primeiro organista. A posição final foi que ele não tocou nas missas celebradas no Brasil, por não haver documentos comprobatórios, a contragosto de organistas, musicólogos e historiadores.

É certo que a esquadra tinha órgão e organista porque, segundo as crônicas, na continuação da viagem, houve relatos de celebrações com o órgão de tubos e se falava de Masseu. No Brasil, no entanto, sequer a carta de Cabral comentava esse episódio, embora esteja comprovada a presença dele nas primeiras missas do Descobrimento. 

O padre Pedro da Fonseca veio a ser o primeiro organista da Sé Primaz do Brasil, em Salvador, conforme documentação, a qual comprovava inclusive pagamentos.

 

Beneditinos

A parte final da tese trata da arte organística nos mosteiros beneditinos, exemplificando essa tradição. Conforme apurado, os mosteiros enfrentaram altos e baixos. Alguns fecharam (o da Paraíba e da Graça e de Brotas, ambos na Bahia). O jeito foi recuperá-los na documentação.

Contudo, desde o fechamento dos noviciados (formação de religiosos que precede a emissão dos votos) pelo Marquês de Pombal, no século 18, até o final do século 20, foram mantidos seus ofícios e o uso do órgão. 

O mosteiro de Olinda sobreviveu com um monge muito idoso, que sonhava com a abertura dos noviciados. Alguns relatos apontaram que ele esperou todos os dias, por anos, a chegada dos monges alemães. Quando os viu se aproximando, foi um momento de grande emoção. A restauração dos mosteiros beneditinos começou. 

Handel fez o primeiro estudo de caso sobre o órgão do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro (RJ), construído em 1773, um dos principais órgãos representantes da organaria colonial brasileira, obra de Agostinho Leite. De acordo com crônicas de época, era um órgão de tubos de baixo custo para o valor e a qualidade que possuía. 

Esse instrumento revelou técnicas interessantes de construção. Também um recibo de encomenda de um órgão realejo, portátil, mostrou as características desta tipologia de instrumento no século 18, informação então desconhecida. 

Para os monges beneditinos, “a dignidade do culto dependia de como eles cantavam o cantochão (canto gregoriano) e do órgão de tubos para o acompanhamento”.

 

Organista e musicólogo

Desde o mestrado, Handel se dedicou ao estudo dos órgãos, organistas e organeiros dos períodos colonial e imperial. A única forma de promover o resgate histórico foi por meio de documentação eclesiástica e de crônicas de época. 

Para isso, foi aos mosteiros do RJ, Bahia, Olinda, Recife e cidades de São Paulo e Vinhedo, antigo mosteiro de Santos; e a diversos arquivos em Portugal (Torre do Tombo, Arquivo Distrital de Braga, Arquivo da Universidade de Coimbra), além de ter visitado o mosteiro de Tibães (casa-mãe dos mosteiros brasileiros).

Muitos documentos no Brasil e em Portugal foram perdidos, dificultando o resgate e a construção da história do órgão no país. Em Recife, para se ter uma ideia, um membro de uma das Ordens Terceiras conseguiu arrecadar todos os livros de registro delas e os guardou em uma igreja. É que as Ordens estavam jogando-os no rio Capibaribe. Muito da história se perdeu, ou a traça comeu, ou faltou o devido restauro.

Os beneditinos, fiéis guardadores de sua documentação em arquivos próprios, foram fundamentais, e abriram as portas a Handel para a investigação nos mosteiros. 

Os mosteiros do RJ, Olinda, Salvador e Vinhedo receberam o pesquisador em suas hospedarias. Em alguns deles, foi convidado a fazer as refeições na clausura, em distinção ao hóspede.

Muito dessa abertura se deveu a uma carta de Dom Luís de Orleans e Bragança, príncipe herdeiro da família imperial brasileira. Handel, ligado à Monarquia, solicitou ao príncipe essa apresentação para os mosteiros. Dom Luís redigiu uma carta de próprio punho, sem falar do incentivo dos príncipes Dom Antônio e Dom Bertrand. 

Com isso, foi possível recuperar a história desde a sua fundação e o que havia sobre a arte organística, como os órgãos de tubos, os organistas desta Ordem e os organeiros.

 

Trabalho

Handel examinou milhares de documentos. Primeiramente era necessário descobrir em qual arquivo ou igreja estava o documento necessário. Mesmo inventariados, era preciso consultar livros históricos e documentos extensos para descobrir onde estaria uma pequena informação. 

Outro obstáculo foi a leitura de documentos antigos. Teve que aprender paleografia, que estuda textos manuscritos antigos e medievais. No Brasil, os cursos em geral duram 15 dias ou um semestre, e poucas escolas oferecem cursos intensivos. 

Deparar-se com um documento do século 18 no mestrado foi desanimador para Handel. Foi então que procurou a responsável pelo arquivo de Sabará (MG). “Ela abriu o documento no computador. Foi lendo e eu acompanhando. A caligrafia antiga foi se tornando clara.”

O pesquisador continuou a leitura de textos antigos como autodidata, com o auxílio de escassa bibliografia.

Na Universidade de Coimbra, Portugal, aonde foi dar continuidade às pesquisas documentais, com bolsa-sanduíche da Capes, Handel soube que haveria dois semestres de Paleografia e Diplomática, que trata da leitura e o estudo dos documentos antigos. A professora dessas disciplinas, Maria do Rosário Barbosa Morujão, tornou-se a sua coorientadora estrangeira. 

Debruçou-se sobre os séculos 16 e 17 [as leituras mais difíceis], passando pelos 18 e 19 [leituras mais fáceis]. “Sem a paleografia, eu não teria feito um terço do que fiz”, admite. Outras ferramentas empregadas foram a historiografia portuguesa e brasileira, além de um curso intensivo de Latim com a professora Anita Martins.0

 

Influência

Handel notou algumas lacunas na musicologia brasileira. Os séculos 16 e 17, por exemplo, são pouco pesquisados, enquanto o século 18 e os subsequentes são mais estudados. 

Especificamente quanto à história da arte organística brasileira, não se sabia sobre a gênese da organaria e a construção de órgãos. Até meados do século 18, documentos reclamam a falta de organeiros, que é respondida por meio de análise de documentos brasileiros e portugueses.

“Atualmente, temos organeiros brasileiros e muitos órgãos digitais, mas sobreviveram apenas cerca de 24 órgãos históricos”, relata. O último é o da antiga Sé do RJ, a antiga capela real, vindo de Portugal. 

O pesquisador constata que o órgão de tubos está intimamente ligado à liturgia das igrejas cristãs. Havia regras estipuladas desde o Concílio de Trento para o seu uso e sistematizadas em 1600 no Caeremoniale Episcoporum. Em algumas missas, era obrigatório. Na Semana Santa, não podia ser tocado. Só no Sábado de Aleluia, e com toda registração. 

Handel atua em concertos no Brasil e no Exterior. Na Espanha, compõe o Duo Regia Symphonia Musicae com o trompetista Basilio Gomarín Píres. Também atua como organista em igrejas reformadas desde os dez anos. Estudou piano, mas escolheu o órgão. O pai foi seu primeiro professor e quem lhe deu o nome de um dos mais notáveis músicos de todos os tempos.

 

 

Publicação

Tese: “A arte organística nos mosteiros beneditinos do Brasil colonial e imperial: seus órgãos, organistas e organeiros”
Autor: Handel Cecilio
Orientadora: Helena Jank
Coorientadora: Maria do Rosário B. Morujão (Universidade de Coimbra)
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Capes

Comentários

Comentário: 

Importantíssima pesquisa, uma obra referencial na musicologia histórica! Parabéns, Handel! Quero ter a oportunidade de lê-la. Abraços!

thadeu.malmeida@gmail.com