Edição nº 605

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 08 de setembro de 2014 a 12 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 605

Estudo investiga formação da cárie na microgravidade

Pesquisa foi conduzida por dentista formada na FOP, hoje diretora do curso de Farmacologia da New York University

A probabilidade de uma pessoa desenvolver cárie dentária no espaço é provavelmente bem maior que na Terra. A constatação é de um estudo conduzido pela dentista Simone Duarte, atual diretora do curso de Farmacologia da Faculdade de Odontologia da New York University (NYU), instituição dos Estados Unidos. Graduada e pós-graduada pela Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP), da Unicamp, a cientista comprovou por meio de testes laboratoriais que o biofilme oral [placa dental na qual as bactérias causadoras da cárie se organizam] tem uma massa duas vezes e meia maior quando formado em um ambiente com microgravidade simulada, comparado ao biofilme formado na gravidade terrestre. “Ainda não sabemos quais fatores contribuem para esse comportamento dos micro-organismos, mas o resultado do estudo nos fornece mais elementos para que continuemos buscando novos métodos de prevenção e tratamento da cárie”, afirma a pesquisadora.

Simone esteve visitando a FOP no final de agosto. Ela mantém projetos em colaboração com professores e tem recebido estudantes da faculdade, bem como de outras instituições brasileiras, que participam de programas de intercâmbio com a NYU. “Desta vez, vim ao Brasil para participar de um evento científico na Universidade Federal do Ceará. Aproveitei a oportunidade me reunir com colegas da FOP e matar um pouco da saudade de Piracicaba, onde nasci”, conta. A cientista lembra que começou a pesquisar o biofilme oral ainda na graduação, quando fez iniciação científica sob a orientação do professor Pedro Luiz Rosalen.

Atualmente, diz a dentista, a ciência tem um considerável conhecimento acerca do biofilme oral, mas ainda está desenvolvendo métodos eficientes para controlar a sua formação. Os procedimentos químicos, como a aplicação de antibióticos, não surtem bom efeito, pois as bactérias se mostram resistentes aos fármacos quando estão organizadas na placa. O método mecânico da escovação, embora seja o mais eficaz no momento, também não consegue remover totalmente o biofilme, que age como uma cola e fica preso aos dentes. “Por isso é importante que continuemos pesquisando novas abordagens. O estudo envolvendo a microgravidade nos trouxe informações relevantes sobre o comportamento do biofilme. É preciso conhecer bem o inimigo para poder derrotá-lo”, pondera Simone.

A pesquisadora destaca que o biofilme não está presente somente na boca. Ele também pode ser encontrado no intestino e em outras partes do corpo, servindo de matriz para a proliferação de diversos micro-organismos, alguns deles patogênicos. Simone resolveu incluir a microgravidade em suas investigações depois de ler alguns artigos sobre o tema. De maneira geral, a literatura aponta que o organismo humano passa por transformações fora da atmosfera terrestre. No caso dos astronautas, os fluídos corporais são alterados, os músculos se atrofiam e as células envelhecem mais rapidamente.

Além disso, também há evidências de que determinados micro-organismos tornam-se mais resistentes no espaço. “Entretanto, nenhum trabalho falava especificamente sobre o biofilme oral. Minha hipótese era de que essa matriz também se tornaria mais resistente num ambiente de microgravidade”, explica. Num dos artigos consultados, a dentista soube que um grupo internacional de pesquisadores havia investigado o comportamento de células humanas na microgravidade, com o auxílio de um equipamento que simulava em laboratório esse tipo de ambiente. Uma das integrantes da equipe era a médica Thais Russomano, especializada em medicina espacial e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRGS).

Simone consultou Thaís, que lhe forneceu mais detalhes sobre a investigação envolvendo as células humanas. A dentista foi informada, por exemplo, que o aparelho que reproduz em laboratório o ambiente com microgravidade é uma espécie de biorreator. “O problema é que eu não queria pesquisar o comportamento de células isoladas, mas sim do biofilme”. O passo seguinte da pesquisadora foi tentar ter acesso ao equipamento, para saber se ele serviria aos seus propósitos. “Um colega nos Estados Unidos me disse que tinha um biorreator que não usava mais, mas que talvez precisasse de manutenção. Felizmente, o equipamento precisava apenas de algumas peças para voltar a funcionar. Comprei as peças e iniciei os testes”, recorda.

A dentista utilizou, então, o mesmo substrato e a mesma bactéria para criar dois biofilmes, um mantido na microgravidade simulada e outro na gravidade terrestre. Em somente cinco dias, o primeiro apresentou uma massa duas vezes e meia maior que o primeiro. “O próximo passo da pesquisa será tentar entender porque os micro-organismos se tornam mais resistentes na microgravidade. Paralelamente, continuaremos investigando novos métodos de combate à placa. Na NYU, temos estudado o uso de luz e de produtos naturais, como a própolis, que possam ajudar a remover o biofilme de maneira mais eficaz”, revela.

 

Escola pública

Simone Duarte não se encaixa na imagem que a maioria das pessoas faz de um cientista. Acessível e sorridente, ela mais se parece com uma estudante de pós-graduação. A dentista cumpriu uma trajetória admirável até assumir a diretoria do Curso de Farmacologia da NYU. De família humilde e egressa de escola pública, ela realizou um sonho ao passar no vestibular para o curso de Odontologia da FOP. Durante a graduação, no entanto, o pai dela morreu e a situação financeira da família foi abalada. “A situação ficou muito difícil. Felizmente, obtive bolsas-auxílios concedidas pelo SAE [Serviço de Apoio ao Estudante], o que me ajudou a prosseguir com os estudos”, relata, em tom de agradecimento.

O interesse de Simone pela pesquisa surgiu ainda na graduação, quando travou contato com métodos de investigação por meio do programa de iniciação científica. Depois, fez mestrado e doutorado, ambos no Programa de Pós Graduação em Odontologia, área de Farmacologia, Anestesiologia e Terapêutica na FOP/Unicamp. Graças aos contatos feitos durante a pós-graduação, Simone foi convidada para fazer o pós-doutorado na University of Rochester, também nos Estados Unidos. “Nessa época, fiquei sabendo que a NYU estava recrutando um professor para a sua Faculdade de Odontologia, para substituir um docente que estava se aposentando. Enviei meus dados e fui chamada para uma entrevista. Felizmente, eu me encaixava perfeitamente no perfil que a instituição queria – alguém que fizesse pesquisa e que também ministrasse aulas”.

Logo após ingressar na universidade norte-americana, Simone foi convidada a assumir a diretoria do curso de Farmacologia. “Penso que o convite se deveu à sólida formação que a Unicamp me proporcionou. Na FOP, a farmacologia é voltada às necessidades específicas da odontologia, o que não ocorre normalmente em outras universidades, nem mesmo do exterior. Nas demais instituições, a farmacologia atende às demandas de diversas áreas da saúde”, esclarece. Na posição que ocupa atualmente, a dentista diz estar tendo a oportunidade de receber muitos estudantes brasileiros, vários deles da FOP, para o cumprimento de estágios em seu laboratório na NYU.

Os brasileiros, segundo ela, são vistos com bons olhos na universidade. “Além de apresentarem um bom nível de conhecimento, eles também são muito dedicados. Esse movimento que o Brasil vem fazendo para internacionalizar a sua ciência é muito positivo. Esse é o caminho. Atualmente, nós não participamos de projetos internacionais de pesquisa cientifica apenas para aprender. Em diversas áreas, nós também temos muito que ensinar aos nossos parceiros”, assegura. Sobre a possível assimetria entre os países desenvolvidos e em desenvolvimento no que toca à infraestrutura de pesquisa, a dentista diz não ver grande diferença. “Penso que estamos em patamares bem parecidos. A maior disparidade talvez seja em relação à burocracia. Nos Estados Unidos, o pesquisador não perde tanto tempo preenchendo formulários quanto no Brasil. Com isso, ele pode dedicar mais horas ao trabalho no laboratório”.