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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 08 de setembro de 2014 a 12 de setembro de 2014 – ANO 2014 – Nº 605Impasses fundiários no semiárido
Terminava a década de 1970 quando economistas ligados ao governo passaram a defender a implantação de uma Política Governamental Hídrica (PGH) no Nordeste semiárido, a fim de ampliar a oferta hídrica para instalação de uma agricultura moderna e diversificada. Isso ocorreu, por exemplo, na região do Vale do Açu, no estado do Rio Grande do Norte (RN). Segundo a literatura regional da época, esta intervenção governamental hídrica na economia teria contribuído para constituir, desenvolver e dinamizar os mercados de terras agrícolas (MTA), a ponto de transformar a terra agrícola em ativo de aplicação capitalista e/ou alvo de especulação.
Tese de doutorado contrariando esta proposição foi defendida por Rogério Pires da Cruz, sob a orientação do professor Bastiaan Philip Reydon, junto ao Instituto de Economia (IE) da Unicamp. “Mercados de terras agrícolas no semiárido nordestino – Constituição, desenvolvimento e dinâmica recente” é o título do estudo de caso, que tem seu foco em dois mercados de terras agrícolas: Assú e São Rafael, onde aquela política do governo levou à construção da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves (BARG), entre 1979 e 1983. Esta obra permitiu o surgimento do Perímetro Irrigado do Baixo Açu, base para a instalação de um setor produtor de fruticultura irrigada.
Na tese, Rogério Cruz sustenta que a mercantilização da terra no Vale do Açu antecede à constituição de um mercado institucionalmente, que ocorreu em 1895 com a Lei de Terras estadual. Portanto, muito antes da intervenção governamental hídrica. “O desenvolvimento do mercado fundiário rural se fez inicialmente atrelado à expansão do algodão. Somente muito posteriormente teve um impulso originado pela Política Governamental Hídrica, que gerou expectativas especulativas e tornou a terra tanto alvo de produção agrícola, quanto objeto de especulação de capitais privados. De um lado, essa política desenvolveu e dinamizou o MTA; de outro, agravou a questão fundiária regional, através de aumento na concentração, ociosidade e especulação com terras agrícolas”, afirma.
Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), Rogério Cruz concedeu por e-mail a entrevista que segue e em que defende a efetivação do Imposto Territorial Rural como uma das soluções para a questão fundiária no semiárido nordestino.
Jornal da Unicamp – Por que escolheu este tema para o projeto de doutorado? Já vinha se ocupando da questão fundiária no semiárido nordestino?
Rogério Cruz – Antes do doutoramento no Unicamp, eu fiz parte do Núcleo Temático da Seca e do Semiárido (NUT/Seca) da UFRN. É um grupo de pesquisa que, no final dos anos 1980, se propunha a estudar os impactos – econômicos, sociais, políticos e ambientais – decorrentes da construção da Barragem Armando Ribeiro Gonçalves na região do Vale do Açu. Sua construção teve início em 1979 e terminou em 1983. O objetivo era dar estabilidade à oferta hídrica para permitir a inserção de modernização agrícola naquela região, o que de fato ocorreu.
Essa proposta hídrica e sua concretização geraram um período de debates intensos, dentro e fora da UFRN, antes, durante e depois da obra. De um lado, a construção da BARG criou problemas para os habitantes originários, à medida que desapropriou quase 30 mil hectares e destruiu perto de 570 imóveis, sobretudo em áreas de várzea do rio Piranhas Açu. Eram áreas aptas para a reprodução social das famílias, que em sua grande maioria vivia no município de São Rafael. Essa obra destruiu, pois, uma parte expressiva da agricultura familiar originária regional.
De maneira concomitante, existiam outros estudos sobre os impactos da Política Governamental Hídrica (PGH), em diversos perímetros irrigados do semiárido do Nordeste, inclusive no Vale do Açu. Assim, no âmbito do Programa Nacional de Irrigação (Proine), o Instituto de Economia da Unicamp já tinha lançado um livro denominado “A irrigação e a problemática fundiária do Nordeste” (1989), que discutia os impactos das políticas de irrigação sobre a estrutura fundiária.
Então, ao chegar à Unicamp, fiz um curso sobre Políticas Agrárias e de Terras, com o professor Bastiaan Reydon, que havia participado daquela pesquisa e que me estimulou a ampliar os estudos, especificamente sobre mercados de terras agrícolas (MTA). Esse curso foi importante para que eu pudesse discutir na tese de doutoramento tanto a formação histórica dos MTA naquela região, algo inédito na literatura, quanto ampliar o entendimento existente acerca da especulação, que se difundiu com a construção da BARG.
JU – O senhor aponta um dinamismo “temporário” dos negócios com terras agrícolas.
Cruz – Naquele contexto de intervenção governamental, observou-se que quando a barragem foi concluída cresceram as expectativas de valorização das terras, seja para pequenos poupadores, seja para investidores com maiores volumes de capital. Foi principalmente nesse momento que esses atores econômicos dinamizaram o mercado de terras agrícolas. E isso ocorreu num pequeno espaço de tempo. A literatura regional disponível afirmava que esse dinamismo dos negócios era resultado da ação governamental. Isso é verdade. Todavia, não necessariamente como algo permanente.
Primeiro porque os negócios com terras ficaram limitados a uma grande empresa (Frunorte) que se instalou na região e que fez negócios pontuais, isto é, aproximadamente 5 mil hectares, negociados entre 1987 e 1992, que significou aproximadamente 40% do total de área negociada no Vale do Açu no período citado.
Segundo, porque a economia pretérita da região, baseada no algodão, vivia em decadência, fato que contribuiu para que esses negócios apresentassem tendência de retração. Terceiro, porque o desenvolvimento da fruticultura irrigada foi fugaz no tempo; com isso, a dinamização do mercado tendeu a ser muito pequena.
Por fim, a elevação de preços da terra que derivou daquela dinamização agrícola, não retrocedeu e as expectativas de valorização da terra se mantiveram. Isto é, as expectativas de comprar terra a preço barato para tentar vendê-las mais caro, num tempo futuro, mantiveram-se. Com isso, a rentabilidade da terra enquanto tendência se manteve, enfrentou retornos propiciados por outros tipos de investimento e, com isso, se transformou em alvo de uma especulação ampliada. Logo, se tornou um ativo.
JU – Quais as fatias de terras que ficaram nas mãos de grandes proprietários locais, de grupos econômicos externos e de pequenos proprietários?
Cruz – Em primeiro lugar, a terra agrícola no Vale do Açu já era fortemente concentrada em poucas mãos antes da emergência da barragem. Com a desapropriação de terras para compor essa obra, o problema se agravou em níveis diferenciados, ou seja, em São Rafael o impacto foi muito maior do que em Assú. O curioso nessa intervenção governamental é que a elevação da concentração, neste estudo de caso, não se deveu aos movimentos do mercado de terras, mas à atuação do governo.
Além disso, observa-se que a terra da caatinga nordestina, além de concentrada, tende a ser ociosa. E não apenas pelas tão propaladas adversidades naturais - como é o caso da seca –, que existem e ainda condicionam negativamente o segmento produtivo. Ali, a terra está em desuso pela retração da economia algodoeira, e tornou-se mais do que apenas espaço físico para a reprodução da vida em sociedade. É também patrimônio, ou ainda, quando comercializada pode ampliar os capitais privados, de tal maneira que, diante das obras derivadas da PGH, a terra tornou-se um ativo atrativo para reprodução do capital privado. Se ainda não são todas as terras, quando se procura cotá-las, o preço tende a subir. Em alguns casos, em proporções muito expressivas.
Mais: com a construção da BARG, ao contrário do que afirma a literatura regional disponível, os dados cartoriais mostraram que não houve invasão de forasteiros comprando terras. Quem comprou e vendeu terras, em face das expectativas da construção da barragem, foram investidores locais de origem urbana. Assim, a terra naquela região semiárida, ao contrário da visão pura e simples de uma terra situada numa região seca e de aparência desoladora, pode se transformar em dinheiro, pois é objeto de especulação dos capitais privados locais.
JU – A Política Governamental Hídrica foi implantada para contemplar a fruticultura de exportação? Esse tipo de cultura realmente fracassou?
Cruz – Com a implantação da PGH e a decorrente construção da barragem, a elite política local impediu a expansão do projeto público de irrigação, que tinha sido proposto originalmente pelo governo federal. Deveria incluir parte dos desapropriados no perímetro e não o fez. Assim, quando venceu a proposta privatista da elite local de se instalar uma irrigação privada, vieram oportunidades de negócio e muitos segmentos comercializaram terra e ampliaram seus capitais. Todavia, de modo concomitante, houve exclusão da terra (com a desapropriação) e, ainda, aumentaram as barreiras para o acesso a ela, visto que ficou relativamente mais cara.
O resultado: a PGH destruiu a economia agrícola de base familiar que havia, para construir um espaço de modernidade baseado na produção da fruticultura irrigada, mas que teve vida breve. Um dos exemplos está na vida breve que teve a empresa Frunorte, praticamente única instituição de porte a se instalar no Vale do Açu, em 1987, e que faliu em 1998. Mas do ponto de vista da economia regional, a falência da Frunorte foi praticamente compensada com a instalação de uma empresa multinacional produtora de banana no município de Ipanguaçu, igualmente situado no Vale do Açu.
Neste ponto, deve-se registrar que essas empresas instalaram o assalariamento no campo, algo muito expressivo para o desenvolvimento da economia mercantil e monetária local, pois o dinheiro e a terra já eram mercadorias. Esse foi o salto de qualidade que consolidou a economia capitalista na região. Todavia, o paradoxal nesta experiência é que a intervenção do governo fracassou onde as condições hídricas eram mais favoráveis (Assú) e foi exitosa onde o grau de organização social e comprometimento social com a geração de produção foi maior (município de Baraúna), apesar de, neste caso, haver maiores limitações de acesso à água. Esta é uma questão de pesquisa que precisa ser aprofundada em futuras investigações, até porque coloca em xeque a ideia de que a água é base para o desenvolvimento econômico. Pode até ser, mas sem toda a importância que o discurso oficial dá a ela.
JU – O “coronelismo” no Rio Grande do Norte ainda é grande? Ou a entrada de grupos econômicos e de projetos governamentais está mudando o jogo de forças?
Cruz – Falar em coronelismo, desde o ponto de vista fundiário, é falar (novamente) na terra concentrada e no poder econômico que daí pode decorrer. No caso do Vale do Açu, a hegemonia do poder local pertenceu e ainda pertence a uma família, que ali se instalou desde a época da Independência do Brasil e que chegou a ter apenas uma propriedade com aproximadamente 11 mil hectares. Isto é, a exemplo do que ocorreu na economia brasileira em geral, a terra nasceu e permaneceu concentrada naquela região até a atualidade. Recentemente, essa família vendeu essas terras para o governo federal, por suposto, em condições vantajosas. Logo, contribuiu para que a terra se firmasse na condição de um ativo – e o fez com endosso do Estado. Em suma, após a PGH observa-se que a terra continua concentrada, ociosa e objeto de especulação.
Em face desse tipo de diagnóstico, nosso estudo aponta, dentre outras medidas, para efetivação do Imposto Territorial Rural, por parte da Receita Federal e com funcionários de Estado sem ligações familiares com a região. Por quê? Porque se evitaria intervenções do poder local na política fiscal e poderia haver uma elevação dos custos de manutenção da propriedade da terra, estimulando os proprietários a ofertá-la. Em razão disso, espera-se que o ITR estimule a queda dos preços e, consequentemente, facilite o acesso e uso da terra para produção agrícola. O fato é que, após mais de quatro séculos de história econômica, a questão da terra, também naquela região, continua atual.
Publicação
Tese: “Mercados de terras agrícolas no semiárido nordestino – Constituição, desenvolvimento e dinâmica recente”
Autor: Rogério Pires da Cruz
Orientador: Bastiaan Philip Reydon
Unidade: Instituto de Economia (IE)