Edição nº 619

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 16 de março de 2015 a 22 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 619

Brando, o autor ator


Marlon Brando em cena de O poderoso chefãoPesquisa sobre Marlon Brando (1924-2004), um dos homens mais incensados do cinema de todos os tempos, apontou que ele era um ator autor. Ou seja, em sua filmografia, foram encontrados elementos que o colocaram como um participante ativo da criação do filme, determinando aspectos que vão além do trabalho de ator.

Olhar para a filmografia dele significa olhar para a sua biografia, perceber como os seus procedimentos técnicos foram minguando com o tempo, se internalizando, de modo que ele passou a não mais representar. “Apenas necessitava estar em cena, graças a uma carga simbólica construída em conjunto com seus outros filmes”, concluiu Eduardo Bordinhon, em estudo de mestrado do Instituto de Artes (IA) denominado “Marlon Brando, o jovem rebelde e o padrinho: as figuras de um ator autor”.

No cinema, o conceito de ator autor, criado pelo pesquisador americano Patrick McGilligan em 1975, acaba se sobressaindo à ideia da encenação. Muitas escolhas estéticas são influenciadas pelo tipo físico do ator, seu estilo de interpretação e sua relação de proximidade com diretores consagrados da história do cinema. Tal conceito sugere mais do que olhar para a filmografia de um ator: envolve olhar para sua biografia e perceber que esses aspectos estão imbricados.

O mestrando escolheu esse tema ao determinar na filmografia de Brando o que poderia destacá-lo como coautor dos filmes dos quais participou. Isso porque no cinema o diretor é o autor do filme. Mas um ator autor pode igualmente assumir prerrogativas dos diretores tidos como autores, uma assinatura sua. “Através da interpretação, são capazes de imprimir a um personagem seu estilo pessoal”, realçou.

O mestrando selecionou filmes do cinema norte-americano por terem uma influência global e trazerem a ideia do star system do estrelato. “Nesse sistema, no qual o ator é o grande nome do filme, ele pode construir bases de autoria”, expôs.

Ao olhar Brando para entender se ele era de fato um ator autor, Eduardo constatou que sim, devido a algumas características. Uma delas tinha a ver com os padrões de aparecimento, tanto temáticos como gestuais ou formais. Encontrou no ator dois padrões: o do jovem rebelde e o do padrinho, os quais chamou de duas figuras essenciais.

A figura do jovem rebelde foi encontrada majoritariamente a partir da década de 1950 e a do padrinho a partir de 1970. Em 1960, houve uma transição entre essas duas figuras.

De acordo com o mestrando, para um ator que atingiu a longevidade, como Brando (alcançou os 80 anos), ele fez poucos filmes. Foram 39. E, em apenas quatro, não se enquadrou nessas duas figuras e nem em uma transição. Em outros 35, ele se encaixou, embora não estritamente, “porque a ideia das figuras essenciais não é cristalizar o ator em uma forma e sim criar um olhar, uma lente através da qual se pode olhar para sua filmografia. E isso não se relaciona somente com seus personagens. Certamente tem uma ligação com sua própria vida.”

 

O rebelde

A priori na década de 1950, o sistema de filmes norte-americano enquadrava os atores por tipos. Brando surgiu como o rebelde. Não somente sua figura, mas o seu estilo de interpretar, que diferia de outros atores nos sets de filmagem. Ele improvisava naturalmente.

Num de seus primeiros filmes, Uma rua chamada pecado, atuou com Vivien Leigh, uma atriz da escola inglesa, cuja formação era mais rígida. O improviso dele a irritava, e esse desconforto da atriz transbordava para a relação dos personagens na cena.

Relembrando o pesquisador francês Alain Bergala, Eduardo afirmou que o filme é um registro da relação entre o diretor e o ator. “Transporto isso para Brando, para uma relação entre atores. As suas relações pessoais também estiveram nos seus filmes, tanto que ele se envolveu com Vivien Leigh e com várias atrizes com quem contracenou.”

Quando o ator filmou O grande motim, em 1962, apaixonou-se por Tarita, seu par romântico. Casou-se com ela e comprou uma ilha no Taiti, onde viveram juntos de 1980 a 1989.

“A vida e o filme são uma fusão. O Brando da década de 1950 era bastante sexy e todas as mulheres olhavam para ele. Diferente do homem imbatível dos anos de 1940, o protagonista masculino se rasgava, chorava e se descabelava, promovendo uma quebra de paradigma porque inclusive era assim na vida pessoal”, descreveu.

O mestrando notou esse paralelo na pesquisa e faz fé que trabalhos futuros não o ignorem, “visto que o ator é, antes de mais nada, ele mesmo no filme. Está sendo fotografado. Não é uma pintura. É acompanhado ao longo da vida, ora engordando, emagrecendo, envelhecendo. É possível ver essa evolução e como isso funciona como parte da escrita do filme”.

 

Padrinho

Brando é visto como um caso raro de um grande ator com poucos filmes expressivos. Eduardo procurou analisar seis filmes que considerou os mais emblemáticos de sua carreira: Uma rua chamada pecado, de 1951; Sindicato de ladrões, de 1954; A face oculta, de 1961; O grande motim, de 1962; O pecado de todos nós, de 1967; e O poderoso chefão, de 1972.

Sobretudo na década de 1960, esse ator tornou-se uma figura não desejada pelos estúdios, após uma série de filmes desastrosos. Mas retornou com o filme O poderoso chefão, que lhe rendeu o segundo Oscar [o primeiro veio com Sindicato de ladrões]. O diretor Francis Coppola brigou até o fim para ficar com ele no elenco desse filme, enquanto ninguém mais queria trabalhar com o artista. Diziam que trazia prejuízo e atrasava as filmagens.

Vieram o Último tango em Paris, em 1972, de Bernardo Bertolucci; e Apocalypse now, em 1979, de Coppola, filmes também renomados de sua filmografia. Depois, fez filmes com pequenas participações, como A fórmula, de 1980. O último da carreira foi Cartada final, de Frank Oz, de 2001, no qual apareceu ao lado de Robert de Niro e Edward Norton.

Nos idos de 1990, Brando apareceu pouco. Fez Don Juan de Marco, com Johnny Depp, e O bravo, dirigido por Depp – um grande admirador de Brando.

Eduardo sugeriu no seu estudo o termo “padrinho”, referindo-se a Brando, não só por causa de Godfather, de O poderoso chefão. A partir de 1970 ele foi um referencial de interpretação: um padrinho de atores como Al Pacino, John Cazale, James Caan, Robert Duvall e Martin Sheen; e, nos anos 2000, de Edward Norton e Depp.

Em certo sentido, havia uma geração de atores assistindo aos seus filmes. Viam-no como modelo masculino e como modelo de ator. Essa também é uma particularidade que fez dele um autor. Começou levar a padrões que geravam descendentes que mimetizavam seu estilo, verificou.

Ao escolher seis filmes – dois dos anos de 1950, três dos anos de 1960 e um dos anos de 1970 –, o mestrando buscou cruzar os caminhos da técnica, da análise do filme e da relação com sua vida, orientado pelo professor do IA Marcelo Ramos Lazzarato.

Quanto ao filme, o mestrando percebeu que muitas vezes a figura de Brando era adiada. Falava-se sobre ela e então ele aparecia. Quanto a seus personagens, em geral possuíam uma forte ligação com figuras femininas, um embate com figuras masculinas mais velhas e cenas de flagelo.

No campo pessoal, Eduardo ressaltou que Brando tinha problemas com seu peso e ataques de bulimia. Não se entendia no mundo. Em todo filme, pedia para ter uma cena em que era torturado. É tão verdade que em dez filmes seus personagens morriam. Somente em um a morte foi natural. Em outros, foi assassinado, alvejado por tiros, flechas, ou chicoteado.

 

Formação

A escolha do tema – a interpretação para o cinema – interessava muito ao mestrando, também ator. Ele e outros ex-alunos da Unicamp criaram em 2010 a Companhia de Tea-tro Acidental, que atua hoje em São Paulo.

Apesar de reconhecer que o mercado audiovisual tem crescido, “no início do estudo não foi assim. Havia pouco material disponível e muito charlatanismo. Resolvi lançar um olhar para o cinema a partir de uma visão da academia, pela facilidade de encontrar livros e interlocutores”, revelou.

Recorreu à Escola Americana de Cinema que, nos anos de 1950, trouxe as ideias de Constantin Stanislavski (1863-1938), diretor, ator e teórico russo de teatro que relatou seu sistema de direção e interpretação. Muito ligado ao realismo teatral, mudou radicalmente o modelo de atuação também do cinema norte-americano, entre 1940 e 1950. Não tardaram a surgir atores adeptos dessa formação, como Brando e James Dean.

Até a década de 1930 vogava uma declamatória exacerbada, em oposição ao que propunha o método de Stanislavski, mais realista. Com esse aporte teórico e com esse momento do cinema, o mestrando descobriu por onde começar. Elegeu Brando.

Como a construção do filme não se dá unicamente por uma instância técnica, passando também por uma instância de relação, o elo entre diretor e ator é chave. “Foram poucos os diretores com os quais Brando colaborou, como Kazan e Coppola. Dessa relação surgiram grandes filmes.”

Ficou muito evidente para Eduardo o valor da relação diretor-ator – com a figura do diretor projetando-se sobre o ator e construindo uma relação que gera o filme. “O resultado da Eduardo  Bordinhon, autor da dissertaçãocena é um pouco o registro dessa relação entre o diretor e o ator”, observou.

Em 1950, Elia Kazan era como um pai para Brando. Bertolucci e Coppola queriam o ator para seus filmes. Criou-se então uma mística em torno dele, a ponto de ser considerado uma lenda do cinema.

Um fato curioso foi que, a partir de 1958, ele parou de gravar suas falas. Passou a colá-las em lugares do cenário que a câmera não alcançava. Olhava o roteiro, entendia as falas e, na hora da gravação, representava.

 

Didatismo

Eduardo escreveu sua dissertação pensando em quem estivesse dando os primeiros passos no conhecimento sobre o ator no cinema. Apoiou-se em autores como o professor da Unicamp Pedro Maciel Guimarães, um téorico que lança luz ao estudo do ator autor, e de pesquisadores franceses como Alain Bergala e Florence Colombani.

Na pesquisa, Eduardo trouxe esses materiais e lançou boias para que se iniciem estudos dando relevo ao ator no cinema. Seu recorte tenta dar conta disso, de existir esse tipo de ator, de existir esse tipo de lugar e de existir esse tipo de abordagem.

A sua contribuição consiste em aclarar para um estudante o trabalho do ator. “Muitos estudos sobre o ator caem em divagações a respeito da sua genialidade, como se tal trabalho fosse intangível. O lugar intangível até existe, porém é possível lançar boias que abarquem elementos técnicos, poéticos e semiológicos numa investigação acerca do ator autor”, disse.

 

Publicação

Dissertação: “Marlon Brando, o jovem rebelde e o padrinho: as figuras de um ator autor”

Autor: Eduardo Bordinhon

Orientador: Marcelo Ramos Lazzarato

Unidade: Instituto de Artes (IA)

Financiamento: Capes