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Baixar versão em PDF Campinas, 23 de março de 2015 a 29 de março de 2015 – ANO 2015 – Nº 620Falhas na governança agravaram crise hídrica, apontam especialistas
Os conflitos institucionais na gestão dos recursos hídricos e a omissão das autoridades no planejamento para a previsível crise de escassez de água que afeta a região Sudeste mobilizaram os debates durante o Fórum Sustentabilidade Hídrica: Perguntas, Desafios e Governança, ocorrido nos dias 17 e 18 de março na Unicamp. Membros do Ministério Público, dos governos federal e do Estado de São Paulo, além de especialistas de universidades do Brasil e do exterior se reuniram durante dois dias para entender as causas e buscar soluções para a histórica crise de abastecimento. Vídeo
A construção de barragens foi a principal medida adotada em São Paulo nas últimas décadas para gerir os recursos hídricos, mas isso se mostrou insuficiente para suprir as necessidades da população, afirmou durante o evento o professor Ademar Romeiro, do Instituto de Economia (IE). “Faltaram outras medidas, como a redução das perdas, o tratamento da água, o reúso, a redução da poluição e, talvez a mais negligenciada das medidas, o uso e ocupação adequadas do solo”, alertou Romeiro. “Por que os gestores assumiram riscos excessivos?”, questionou o professor do IE.
Para Alexandra Faciolli Martins, promotora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo, a solução para a crise tem sido buscada por meio de obras bilionárias, de longo prazo, que visam principalmente a transposição de rios, mas isso poderá se tornar uma nova fonte de conflitos. “Por que a gestão tem sido de altíssimo risco? O primeiro grande problema é o não reconhecimento da crise. Praticamente depois de quase dois anos, com o reservatório negativo, nós continuamos reiteradamente ouvindo que não vai faltar água, que não vai ter problema, que as coisas estão planejadas e resolvidas”, declarou, em referência ao Cantareira.
A promotora, que atua no Grupo de Ação Especial de Defesa do Meio Ambiente (GAEMA), discutiu também a questão da privatização e do tratamento da água como mercadoria. De acordo com Alexandra Martins, esse não é o conceito instituído pela Constituição 1988. “A água é um bem de domínio público e como tal deve ser tratada. Quando falamos em domínio, não podemos correr o risco de dar uma equivalência à propriedade. A propriedade não é da União, nem dos Estados e nem dos comitês”, disse. “Quando falamos em domínio, é no sentido da gestão. A gestão é atribuída a cada um desses entes do sistema de gerenciamento de recursos hídricos e se dá, como regra geral, de forma descentralizada, para que seja possível ser participativa.”
Outra integrante do Ministério Público que participou do evento, a procuradora federal Sandra Shimada Kishi, concordou que o governo do Estado de São Paulo não facilitou o acesso à informação e o controle social durante a crise. Para ela, “na crise houve uma indevida interferência do governo do Estado” nos comitês de bacias, particularmente na bacia do PCJ (Piracicaba, Capivari e Jundiaí). “Não haverá controle da sociedade se não houver paridade dentro dos comitês”, apontou. A procuradora, que é gerente do projeto Qualidade da Água do Ministério Público Federal, afirmou que, no auge da crise, houve descompassos, falta de transparência e tímida ação dos comitês. “Até hoje não há esquema de racionamento ou planos de rodízio na região metropolitana, nem na capital. Não houve programa sólido de incentivo à economia de água e faltam informações sobre alternativas para aumentar a oferta hídrica.”
Antonio Carlos Zuffo, professor da Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo da Unicamp, defendeu que o gerenciamento hídrico somente poderá ser bem-sucedido se for feito de forma descentralizada e junto da população. Luciana Cordeiro, professora da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, destacou também a necessidade de criação de mecanismos de gestão da água mais participativos e questionou a falta de iniciativa e atuação da sociedade nessa área. A professora da FCA lembrou que apenas 2,7% da água do planeta é doce e que o Brasil dispõe de 13% desse total. Apesar disso, a região Sudeste concentra 42% da população, mas conta com apenas 6% da água doce do país.
A cientista política Margaret Keck, professora da Johns Hopkins University e responsável por pesquisas sobre gestão hídrica no Brasil desde a década de 1990, abordou em sua palestra as dificuldades de implantação de políticas nessa área. No caso da gestão compartilhada dos recursos hídricos, que substituiu o antigo modelo centralizado, muitas vezes a divisão das responsabilidades entre as várias esferas leva a falta de ações práticas, como entre a União e os Estados, defendeu.
As dificuldades de se promover uma gestão integrada dos recursos das bacias hidrográficas – áreas geográficas cujas águas convergem para um determinado ponto – surgem quando há na bacia rios que nascem e tem foz dentro do Estado, sendo, portanto, estaduais, e rios que passam por mais de um Estado e são de responsabilidade federal. Vicente Andreu Guillo, diretor presidente da ANA, enumerou os problemas dessa limitação legal e citou o caso do sistema Cantareira para exemplificar.
“A afirmação da Constituição de que a gestão de água deve ser compartilhada e descentralizada está absolutamente correta. Porém, o problema que se apresenta é, em situação de crise, qual é o fórum de decisão caso não haja acordo no tempo necessário em relação ao conflito?”, questionou, complementando que a nesses casos se corre o risco de uma decisão na esfera do Poder Judiciário. “Precisamos criar, no âmbito do sistema de gerenciamento dos recursos hídricos, um fórum de decisão no caso da existência de um conflito. Alguém tem que tomar essas decisões e ser responsável por elas. Se não há condições dessa tomada de decisão, acaba acontecendo uma sensação de inércia e paralisia.” Segundo Andreu, a solução dessa questão passa pela busca de um acordo federativo.
O diretor presidente da agência federal também questionou a falta de detalhamento na legislação sobre os setores prioritários a serem atendidos em caso de seca. A lei prevê que se deve predominar o consumo humano e a dessedentação de animais, mas esse conceito gera distorções que estendem a abrangência para o consumo urbano, incluindo setores produtivos, em vez de somente o consumidor residencial. “Precisamos aproveitar a crise. Nunca tivemos uma agenda de água tão relevante social e politicamente como agora”, alertou. “Se a chuva lavar a nossa memória sobre tudo o que estamos passando, não estaremos aptos a enfrentar crises como essas que se sucederão”, concluiu Andreu.
A necessidade de preservação de bacias e de sua vegetação como uma maneira para diminuir os custos de tratamento da água potável foi apontada por José Galizia Tundisi, professor do Instituto Internacional de Ecologia e Membro da Academia Brasileira de Ciências. Em seus estudos, o professor apontou uma piora da qualidade da água nos últimos 150 anos, sendo que atualmente é possível identificar mais de 200 mil substâncias orgânicas dissolvidas na água.
Tundisi defendeu também uma ação mais incisiva dos governos na ampliação da cobertura vegetal em áreas urbanas, considerando também as mudanças climáticas. “Temos que nos adaptar ao clima e uma das maneiras é produzir as chamadas ‘cidades verdes’, aumentar a vegetação natural, fazer mais parques que permitam recarregar os aquíferos, aumentar a biodiversidade e dar oportunidade de mais lazer à população.”
Em defesa da atuação governamental paulista na crise, Rui Brasil Assis, coordenador de recursos hídricos da Secretaria de Recursos Hídricos do Estado de São Paulo, explicou que todos os comitês de bacias possuem planos de recursos hídricos, mas não se pode esperar que as medidas levem a risco zero. “Risco zero significa quase investimento infinito, ou seja, risco zero é algo que a sociedade não consegue pagar”, justificou o gestor.
Planejamento ineficiente
Sérgio Razera, diretor presidente da Fundação Agência das Bacias PCJ, explicou que não faltou planejamento dos comitês de bacias, mas que o plano da bacia foi feito sem o conhecimento do movimento cíclico do clima, usando apenas dados de fluviometria e pluviometria do passado.
Richard Palmer, chefe do Departamento e professor de Engenharia Civil da Universidade de Massachusetts - Amherst, e William Werick, ex-consultor de recursos hídricos da agência federal norte-americana Corps of Engineers, demonstraram o funcionamento do chamado Shared Vision Planning, um protocolo de planejamento para secas que integra colaboração e modelação computacional. A partir de um simples programa criado no software Excel é possível fazer projeções sobre a oferta hídrica, alertando para possíveis problemas. O conceito prevê a fundamental colaboração de vários tomadores de decisão no processo para identificar fraquezas e pontos fortes e adotar ações em um ambiente seguro. Durante o Fórum, Palmer, Werick e Stefanie Falconi, doutoranda da Johns Hopkins University, demonstraram exemplos práticos referentes ao sistema Cantareira.
O evento foi organizado pelo Fórum Pensamento Estratégico (Penses), Coordenadoria Geral da Universidade (CGU), Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA), Instituto de Economia (IE) e Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FEC) da Unicamp.
Comentários
Discussão Pela Descentralização na Gestão dos Recursos Hídricos
Os pesquisadores e promotores públicos defendem a necessidade de uma descentralização da gestão dos recursos hídricos e afirmam haver uma centralização das decisões e consequente falta de transparência nas ações tomadas pelo Governo Estadual; enquanto os representantes deste governo dizem que é um exagero estas afirmações e que "os fatos não são bem assim". Talvez devido à falta de empatia das autoridades que não vivem na periferia e não sabem o que é ficar sem água durante dias.