Edição nº 625

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 18 de maio de 2015 a 24 de maio de 2015 – ANO 2015 – Nº 625

Um mergulho nos madrigais
(e nos dramas) de Gesualdo


a.	O compositor e príncipe renascentista Carlo Gesualdo: técnica primorosaPríncipe e compositor. A fusão das duas esferas tinha tudo para ser bem-sucedida. Ele teve uma iniciação junto aos melhores músicos do reino de Nápoles do século 16, na Renascença. Os seus madrigais se tornaram conhecidos mundialmente pela sua aprimorada técnica e pela sua linguagem poética, culta e sofisticada. Mas não foi apenas por isso que as suas composições se tornaram tão populares. Esses madrigais mostraram, desde as primeiras manipulações, que a intenção do seu autor, o príncipe Carlo Gesualdo, era transformar todas as pequenas narrações amorosas, por mais inocentes que fossem, em um drama. 

A sua biografia denota que esses fatos fizeram muito sentido. Esse olhar era o olhar de um Gesualdo que teve experiências dramáticas na sua vida pessoal. A música foi um refúgio e uma fonte de inspiração. Mas certamente a morte, para ele, foi eleita desde o início como a única sublimação para o seu sofrimento. Essa foi a caracterização principal contida nos seis livros de madrigais, que reúnem as 125 obras dele. Foi o que concluiu o músico Rafael Luis Garbuio, em sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Artes (IA).

O autor da pesquisa avaliou esses seis livros de madrigais, antigas composições musicais para vozes sem acompanhamento, com pequena composição poética engenhosa e galante. O seu objetivo foi promover um estudo abrangente sobre a linguagem musical empregada por Gesualdo. 

Conforme Rafael, o compositor teve dois caminhos que o transformaram num músico distinto dos demais: uma parte pessoal, cuja biografia era a de um príncipe, o que o transformava numa figura pública poderosa; e uma música que representava a fase final do Renascimento, deveras exótica para o período, além de ser de difícil execução, graças a sua sofisticação. 

Os poucos documentos de época disponíveis acerca dele demonstram que era um exímio alaudista, tocava bem órgão e era um bom cantor, uma vez que o grosso do seu trabalho de compositor era destinado à obra vocal. 

Gesualdo nasceu num principado, Venosa, localizado na região da Basilicata, Itália. Era uma cidadezinha que tinha uma torre alta e o Castelo de Gesualdo, que pertencia à sua família. Ainda cedo, recebeu o título de duque de Nápoles, que na época pertencia ao reino da França. 

Em Venosa, na corte de seu pai, contava com o estímulo de um séquito de bons compositores e instrumentistas. Fica até difícil dizer quem foi o seu principal professor. Existe, porém, um consenso de que foi Pomponio Nenna, um importante compositor do Renascimento.

 

INFLUÊNCIA

A parte mais significativa como compositor foi quando mudou-se para Ferrara, em 1594, uma cidade mais ao norte, importante reduto cultural. Foi para lá por conta de seu segundo casamento com a sobrinha do duque de Ferrara. Tinha então menos de 30 anos. 

Gesualdo residiu apenas dois anos naquela cidade, mas em um momento de grande efervescência estética, encontrando ali um universo artístico avançado em comparação ao restante das cidades-estados italianas. 

Apesar disso, viveu um período tumultuado. Enfrentou depressão e, por causa disso, passou dois anos no recôndito do castelo da família Ferrara, dedicando-se unicamente à música. Foi lá, no entanto, que ele compôs a maior parte da sua obra. 

Os dois livros de madrigais compostos por ele, anteriores a Ferrara, foram publicados pela primeira vez em 1594, em comemoração ao seu segundo casamento. Os madrigais centrais – os livros 3 e 4 – foram publicados em 1596, tendo sido totalmente compostos em Ferrara, onde foi achada sua obra mais característica: Gesualdo mais Gesualdo. 

Ferrara trouxe anos valiosos, musicalmente falando, pois o compositor teve contato com uma música mais sofisticada. Há indícios documentais do quanto ele foi influenciado por esse ambiente artístico e também o quanto o influenciou. “Ferrara se tornou outra depois de sua passagem por lá”, sublinha. 

Os madrigais 5 e 6, publicados em 1611, foram compostos quando a situação psicológica de Gesualdo começava a se deteriorar. O primeiro casamento, com Maria d’Avalos, uma das mais belas damas do reino, acabou tragicamente. Ele a assassinou, após flagrá-la em adultério. O caso se tornou público. Nunca mais Gesualdo se recuperou. 

Quando não suportou viver em Ferrara, voltou ao castelo de Nápoles. A segunda esposa o acompanhou. Foi um caminho sem retorno. Ficou enclausurado até o fim de seus dias. Morreu em 1613, aos 47 anos.  

Teve uma carreira meteórica. Não passou a viver em nenhum outro centro, nem social e nem artístico. Deixou Ferrara fisicamente, contudo era como se continuasse ligado à cidade. 

b.	O músico Rafael Luis Garbuio, autor da tese: “O ideal poético permitiu compreender a concepção artística da música da Gesualdo”Os dois últimos livros – 5 e 6 – foram marcados por um desenvolvimento exagerado das características estilísticas que já se manifestavam em Ferrara. Foram mais do que a continuidade dos livros 3 e 4. “O centro artístico de Ferrara prosseguiu então agindo em sua obra”, afirma.

Com o tempo, os seus madrigais foram se perdendo. Uma ou outra parte sobrou em fac-símile. No entanto, no ano da morte de Gesualdo, o editor Simone Molinaro reuniu todos os seis livros, com a sua anuência, fazendo uma grande publicação, que serviu de material de estudo para Rafael.

Até hoje muito se estuda sobre o quanto foram alteradas as partituras de 1613 em relação às originais, porque pode ter havido alguma alteração editorial, cogita-se.

Foram muitos poemas destinados a Gesualdo, por sua importância e pelos fatos transcorridos. Mas muito desses documentos foram romantizados e repletos de lendas. Não se sabe ao certo o que aconteceu, diz Rafael. “A morte dele é um fato nebuloso até hoje.”

Alguns comentam que ele se autoflagelava, por acreditar que estava em constante delito. Tinha um tio cardeal – Carlo Borromeo, que foi beatificado e se tornou São Carlo Borromeo. Também possuía posição destacada frente à igreja católica, tanto que o Concílio de Trento teve amplo apoio dos Gesualdo. 

 

DETERMINAÇÃO

Rafael escolheu os madrigais de Gesualdo pela sua música avançada. Ainda na graduação, no IA, fazia parte do Camerata Anima Antiqua, um grupo vocal dirigido pelo orientador da tese, professor Carlos Fiorini, cuja música resulta de compositores do Renascimento. 

Quando em 2004 Rafael se deparou com um madrigal de Gesualdo, percebeu que aquela obra era mais empolgante e mais complexa do que os demais madrigais. “O fato de ser mais difícil me intrigava pois o material musical era quase o mesmo, com um adendo: a difícil linguagem do compositor”, esclarece. 

No mestrado, Rafael escolheu nove motetos sacros de Gesualdo (gênero musical do Renascimento baseado em textos sacros). Foram feitos para o sábado santo, uma cerimônia da igreja católica. 

Rafael passou dois anos no mestrado estudando o material. A seguir, ingressou no doutorado e aí sim, de forma específica, avaliou os madrigais: a sua música secular.

Para o pesquisador, Gesualdo traduzia algo misterioso e, quanto mais se debruçava sobre um único madrigal, mais começava a entendê-lo. Tirava camadas e camadas, e nunca se esgotava, de tão profundo o seu texto. 

Ao contrário da maior parte dos compositores, Gesualdo não somente escolhia um poema e escrevia. A relação dele com o texto era mais intrínseca (não só musical), e Ferrara foi o ponto principal das mudanças. 

Na primeira fase, tomava o poema de grandes poetas do Renascimento, principalmente Torquato Tasso e Guarini, e promovia pequenas alterações. Era assim como outros compositores costumavam fazer: trocavam termos, readequavam tamanho, diminuíam, aumentavam, mas nada muito drástico. 

Na fase de Ferrara, começou a alterar mais. Esse processo Rafael chamou de manipulação textual. Ele praticamente passou a construir um outro poema em cima do original. Na terceira fase, a manipulação era tão profunda que já não existia mais a figura do poeta. Gesualdo compunha sozinho.  

O doutorando também percebeu que existia um ideal poético no compositor e passou a persegui-lo. Quase toda tese versou sobre isso: sobre identificar, através da manipulação textual, qual era esse ideal e como caracterizá-lo. “Com a caracterização, unimos o ideal poético com a expressividade musical”, relata. “Esse ideal poético permitiu compreender a concepção artística da música de Gesualdo.” 

c.	O castelo da família Ferrara, onde foi composta a maior parte da obra de Carlo Gesualdo

ANÁLISES

O ideal poético de Gesualdo envolvia poemas mais curtos do que o habitual para ceder espaço para a música. Ele primava por um poema numa linguagem mais erudita do que se fazia na época. 

O compositor não permitia tom popular, que ganhou notoriedade a partir da segunda metade do século 16, quando o poema palaciano começou a incluir essas expressões. Gesualdo foi contra e primou, antes, por uma linguagem culta e por vezes enigmática. Não incentivou o jogo erótico e amoroso no seu poema – o chamado madrigal amoroso e mesmo o madrigal erótico. 

Ele pendia para a figura do oxímoro (com o leitor sendo levado a procurar um sentido metafórico). O seu poema trazia o contraste de ideias na mesma frase: a morte prazerosa e o amor dolorido. O oxímoro de dois termos totalmente opostos era colocado em sua escrita e a tragédia amorosa. 

Os seus madrigais são pouco executados nas salas de concerto brasileiras, justamente pela dificuldade técnica de cantar Gesualdo, o que não impede que eles sejam conhecidos. Um deles se chama Moro, lasso, al mio duolo, madrigal do sexto livro, que é um Gesualdo fase mais Gesualdo. Nessa obra, os efeitos sonoros e a morte desejada são evocados o tempo todo. 

Outro madrigal, executado na defesa de tese de Rafael, é Luci serene chiari, primeiro madrigal do quarto livro. Ele é menos dramático do que Moro, lasso, mas também é muito Gesualdo. Já o primeiro madrigal da primeira fase é Baci soavi e cari, teoricamente o primeiro madrigal publicado por ele, que o torna mais conhecido.

Nas suas poesias, Gesualdo falava muito sobre ele mesmo. Misturava as figuras do homem e do compositor. Uma das primeiras observações da fase central foi a quantidade de io e mio que ele foi incluindo nos poemas. Os poemas não teriam nada de io e mio, já que diziam respeito à dor do amor. Mas ele colocava mio dolore. 

Na última fase, os poemas eram totalmente pessoais. Assim conhecia-se um pouco mais de sua vida, de sua estética. “Percebia-se que estavam falando dele e de sua tragédia amorosa”, constata Rafael.

 

Publicação

Tese: “Os madrigais de Carlo Gesualdo: um estudo interpretativo à luz de seu ideal poético”

Autor: Rafael Luis Garbuio

Orientador: Carlos Fiorini

Unidade: Instituto de Artes (IA)