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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 15 de junho de 2015 a 21 de junho de 2015 – ANO 2015 – Nº 628Mapeamento pode antecipar diagnóstico da febre maculosa
Veterinário analisou as principais variáveis ambientais e demográficas na bacia do rio PiracicabaA febre maculosa brasileira (FMB) é uma doença infecciosa de caráter agudo e de grande importância em saúde pública devido à sua alta letalidade. Apesar de a doença ter tratamento e cura, o coeficiente de letalidade no Estado de São Paulo alcança mais da metade dos casos notificados. Não deveria ser assim, se dependesse do tratamento, que é eficaz. A questão é que esse tratamento deve ser ministrado precocemente, o que não ocorre porque no exame clínico a febre maculosa pode ser confundida com outras doenças, como a leptospirose e a dengue na região Sudeste. Não havendo um fator patognomônico (sinal ou sintoma específico), a FMB só é confirmada através de exame laboratorial, ao tempo em que o caso pode tornar-se grave a partir do quarto ou quinto dia de infecção e evoluir rapidamente para óbito.
O médico veterinário Celso Eduardo de Souza, que estuda a FMB há 25 anos e atua na Superintendência de Controle de Endemias (Sucen) do Estado de São Paulo, espera contribuir para facilitar a suspeita precoce de casos da doença, em tese de doutorado apresentada na Faculdade de Ciências Médicas (FCM). Souza estudou os fatores ambientais associados à transmissão e distribuição espacial da febre maculosa na bacia do rio Piracicaba, região paulista onde se registra a maior incidência de FMB no país. A pesquisa foi orientada pela professora Maria Rita Donalísio Cordeiro e desenvolvida no Laboratório de Análise Espacial de Dados Epidemiológicos (EpiGeo).
O autor da tese explica que o tratamento da FMB é específico, à base de doxiclina, e precisa ser instituído até o segundo dia dos sintomas, caso contrário, a chance de óbito se torna elevada. “Os antibióticos de primeira geração utilizados atualmente não atingem a bactéria Rickettsia rickettsii. Outra dificuldade é que somente agora o Ministério da Saúde está importando a doxiclina injetável para tratamento de casos graves em humanos; no Brasil, ela existe apenas para uso animal, ou seja, também estamos sem ferramentas adequadas. De qualquer forma, creio que a garantia dos medicamentos não vai diminuir o número de óbitos, por causa da dificuldade no diagnóstico e da confusão com outras doenças.”
Na opinião de Celso de Souza, é preciso aumentar a suspeição por parte do médico, para que ele inicie imediatamente o tratamento. “Recentemente, quando estive no HC [Hospital das Clínicas Unicamp], os médicos residentes discutiam o ‘caso de Holambra’ – cidade onde morava um casal que saiu para pescar às margens do Rio Jaguari, em Jaguariúna, área de transmissão da FMB. Ambos ficaram doentes e receberam tratamento com diagnóstico de dengue, com protocolo perfeito, mas na verdade tinham contraído febre maculosa; foram removidos para o HC já em estado grave e morreram”.
O médico veterinário da Sucen também guarda na memória a advertência do já falecido sanitarista Luiz Jacintho da Silva, professor da Unicamp e estudioso da febre maculosa, de que está se trabalhando apenas com a ponta do iceberg. “Isto é verdadeiro, pois só chegam os casos graves que necessitam de hospitalização; os casos brandos passam despercebidos, o que talvez explique a baixa incidência registrada da doença. Não existe um exame para diagnóstico imediato e, se coletado o soro, o resultado sairá somente 15 dias depois, quando já for tarde. Dificilmente o médico vai suspeitar (e tratar) de doença transmitida por carrapato se o paciente não mencionar que frequentou áreas de risco ou teve contato com o vetor.”
Tais informações, conforme salienta o autor da tese, só podem ser obtidas com uma boa anamnese – entrevista feita por profissional da saúde que busca relembrar todos os fatos relacionados à doença e ao doente. “O diagnóstico é realmente o grande desafio para os estudiosos, ou ‘a pedra angular’ da febre maculosa, na definição dos norte-americanos. Isso por que se trata de uma bactéria sensível a antibióticos: toma-se o remédio e pronto, controla-se a infecção. Nos Estados Unidos, a letalidade varia de 2% a 20%, graças à atuação diferenciada da vigilância epidemiológica”.
Souza também é autor de um trabalho importante que identificou a capivara como um hospedeiro amplificador da bactéria Rickettsia rickettsii, transmitida através da picada de carrapatos (no caso, pelo Amblyomma sculptum). Este trabalho vem sendo utilizado para o controle da FMB e influenciou, por exemplo, na decisão de abater 100% da população de capivaras no Lago do Café, em Campinas. “Verdade que a capivara não é a única vilã, mas é considerada um dos melhores hospedeiros amplificadores da R. rickettsii entre os animais estudados, capaz de infectar mais de 30% dos carrapatos que sugam seu sangue durante o período de ricketsemia. Não existe ainda nenhum tratamento com carrapaticidas que seja eficaz nestes animais: a simples pulverização é inútil, pois se trata de animal semiaquático”, justifica o pesquisador.
O MAPEAMENTO
Em relação à tese, o veterinário informa que no período abrangido de 2003 a 2013, houve perto de 1.200 casos notificados no Brasil, sendo 570 no estado de São Paulo e, destes, 360 na bacia dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí (PCJ). Esta bacia banha 65 municípios – incluindo Campinas, Piracicaba, Pedreira e Jaguariúna, que registraram o maior número de ocorrências (54%) na última década. “A letalidade na região ficou entre 40% e 60% dos casos. Constatamos que a doença sempre ocorre em áreas de baixa altitude e próximas a coleções hídricas. O risco de contrair febre maculosa no centro da bacia do Piracicaba é oito vezes maior que no restante da região.”
O pesquisador chegou a tais constatações analisando as principais variáveis ambientais e demográficas, bem como a presença das espécies de vetores e de animais hospedeiros nos locais prováveis de infecção (LPI), associados à confirmação de casos de febre maculosa. São informações retiradas das fichas de investigação de focos de carrapatos realizadas pelas equipes de campo da Sucen e das fichas de investigação epidemiológica de FMB do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Serviço de Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde. O projeto aprovado pelo CNPq incluiu uma pesquisa de campo, cujos dados ainda estão sendo trabalhados.
Segundo o autor do estudo, a partir dos dados coletados, foram desenvolvidos modelos matemáticos buscando entender os fatores associados ao risco de contrair a doença em determinadas áreas. “A ideia é repassar os mapas e outras informações para que os serviços de saúde fiquem atentos: se uma pessoa febril vier de uma região reconhecidamente de risco para FMB, deve ser imediatamente investigada e tratada precocemente. O resultado da tese é o mapeamento das áreas de risco e o estudo dos fatores associados à FMB – fatores que, embora conhecidos, não estavam publicados em lugar algum. Agora temos tudo por escrito.”
NA ÁREA URBANA
Mais uma conclusão na tese de doutorado é que o ambiente periurbano (vizinhança imediata de uma cidade) apresentou maior número de locais prováveis de infecção (LPI) em comparação ao ambiente rural. Ao ponto em que obrigou Campinas a exterminar a população de capivaras na Lagoa do Taquaral e no Lago do Café, embora elas ainda sejam vistas no Parque Ecológico Monsenhor Emílio José Salim – de onde sua retirada não foi solicitada à Secretaria de Meio Ambiente. “A febre maculosa, no passado considerada uma endemia rural, atualmente vem ocorrendo também na área urbana e periurbana. Consequentemente, houve mudança também do perfil ocupacional dos doentes, antes mais de trabalhadores rurais e hoje de pessoas que frequentam os ambientes de risco em atividades de lazer (pesca, passeio, ecoturismo) e voltam infestadas de carrapatos infectados”.
O autor incluiu no estudo uma revisão histórica, segundo a qual, a primeira descrição de FMB no país foi feita no estado de São Paulo em 1929, a partir de casos na capital paulista. Houve progressivo declínio da incidência na década de 30 e um longo silêncio a partir de 1943, até a sua volta no início dos anos 1980, com a criação da lei de crimes ambientais e a ocorrência de novos casos suspeitos na Região Metropolitana de São Paulo. Em 1985, a FMB passou a ocorrer de maneira endêmica, sobretudo nas bacias hidrográficas dos rios Atibaia, Jaguari e Camanducaia, que formam a bacia do rio Piracicaba, com os primeiros casos ocorrendo em Pedreira e Jaguariúna.
Celso de Souza ressalta, finalmente, algumas hipóteses aventadas para a reemergência da FMB na região de estudo, dentre elas a maior disponibilidade de testes laboratoriais específicos para a doença; invasão de focos naturais pelo homem com os empreendimentos imobiliários de novos condomínios; e o aumento da população de capivaras devido à falta de predador natural, proibição da caça e destruição das matas ciliares pela expansão da produção de milho e cana-de-açúcar.
Publicação
Tese: “Fatores associados à transmissão e à distribuição espacial da febre maculosa brasileira na bacia do rio Piracicaba, Estado de São Paulo, SP, Brasil”
Autor: Celso Eduardo de Souza
Orientador: Maria Rita Donalísio Cordeiro
Unidade: Faculdade de Ciências Médicas (FCM)