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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 05 de outubro de 2015 a 18 de outubro de 2015 – ANO 2015 – Nº 640Aquarelas de Margarido dialogam com heterônimos de Pessoa
Livro traz 38 desenhos que traçam panorama crítico e irônico da vida e da produção do poeta portuguêsRostos sem corpos, rostos que se multiplicam, rostos que se fundem com idealizações oníricas, rostos que expressam personalidades. É dessa maneira que a multiplicidade de identidades, um dos temas centrais da obra de Fernando Pessoa, ganha forma e cor em um conjunto de 38 aquarelas do pintor, poeta, ativista político e intelectual português Alfredo Margarido.
As aquarelas integram o livro Pintura e Poesia – Fernando Pessoa por Alfredo Margarido, lançado pela Editora da Unicamp em parceria com a Edusp. A edição foi concebida no contexto do Congresso Internacional 100Orpheu, realizado em maio último na Universidade de São Paulo (USP), em comemoração ao centenário da revista Orpheu, marco do Modernismo português. Paralelamente ao congresso, foi realizada uma exposição das aquarelas.
O volume é uma edição revista e ampliada do livro 33 + 9 Leituras plásticas de Fernando Pessoa, organizado pelo próprio Margarido e lançado no Brasil em 1988, por ocasião do IV Congresso Internacional de Estudos Pessoanos realizado na USP e na Unicamp.
Em ambas as edições, cada aquarela dialoga com um excerto de Pessoa e seus heterônimos selecionado por Margarido – que, dentre múltiplas frentes de atuação, foi estudioso da obra pessoana. Desse modo, o conjunto aquarelas-excertos acaba por constituir um panorama crítico, e não raro irônico, da produção artística e da vida daquele que é considerado o maior poeta português moderno, bem como do ambiente artístico e cultural em que viveu.
Segundo as organizadoras da nova edição, Yara Frateschi Vieira e Lênia Márcia Mongelli, ao lado da qualidade e da beleza plástica, a coleção se singulariza por expressar um olhar único sobre Fernando Pessoa. Yara é especialista em literatura portuguesa do século 20 e professora aposentada do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da Unicamp, e Lênia é crítica literária e professora de literatura na USP.
A característica básica dessas aquarelas de Alfredo Margarido é o estreito diálogo delas com a obra de Fernando Pessoa, analisam as organizadoras.
AS EDIÇÕES
Embora sejam semelhantes na estrutura, existem algumas diferenças entre as duas edições, detalham as organizadoras. A edição de 1988 compunha-se de reproduções de 33 aquarelas que pertencem ao acervo do Centro de Documentação Alexandre Eulálio (Cedae), da Unicamp, mais 9 de obras que integram coleções particulares, além de quatro ensaios analíticos sobre as 33 + 9 Leituras....
A nova edição contém reproduções em alta definição das mesmas 33 aquarelas abrigadas no Cedae, mais 5 de coleções particulares, das quais apenas duas estavam presentes na versão anterior. Além dos quatro artigos originais (reproduzidos em “Apêndice”), três novos foram incorporados, assim como seções com informações biográficas e uma bibliografia selecionada. Os novos artigos são assinados por Carlos Felipe Moisés, Helder Macedo e Vilma Arêas.
Em cada aquarela, há uma frase relacionada a Fernando Pessoa, selecionada por Margarido. Em Pintura e poesia... cada aquarela é acompanhada do trecho original escolhido por Margarido para dialogar com ela. Yara e Lênia revelam que fizeram uma minuciosa leitura dos textos e sua relação com as aquarelas, corrigindo apenas o que era necessário e que não desrespeitasse as escolhas e decisões explícitas do próprio Margarido.
OS HETERÔNIMOS, O MAR, A BIOGRAFIA
A heteronímia é uma das questões centrais enfocadas nas aquarelas, trazendo à luz, em cores e traços leves, toda a carga poética do questionamento existencial que atravessa a obra de Fernando Pessoa. Para Yara e Lênia, o tema da heteronímia é mesmo central às aquarelas – como não poderia deixar de ser –, secundado por outros tão viscerais quanto, como o mar e as relações com os amigos. Mas o tema recebe um tratamento original na pintura de Alfredo Margarido. Ele insere, em todos os quadros, o(s) rosto(s) de Fernando Pessoa (que se multiplicam, mas são sempre o mesmo) ou algum pormenor que o lembre: o chapéu, os óculos, o nariz adunco, observam as professoras.
“Cada um de nós é vários, é muitos, é uma prolixidade de si mesmos. Por isso aquele que despreza o ambiente não é o mesmo que d’ele se alegra ou padece. Na vasta colônia do nosso ser há gente de muitas espécies, pensando e sentindo diferentemente”. O trecho assinado por Bernardo Soares, semi-heterônimo de Pessoa no Livro do Desassossego, vem ao lado de uma ilustração de um corpo sem cabeça, vestido com terno e gravata. No alto, descoladas do corpo, há seis cabeças de cores diferentes de um homem com bigode e óculos, numa evidente referência a Pessoa. Em baixo, à direita, uma xícara com café, outra alusão a um conhecido hábito do poeta.
É esse tipo de diálogo que dá o tom do livro, conduzindo o leitor numa viagem pelo universo de Pessoa e do Modernismo português. O mar, outro tema recorrente na obra do poeta, também ganha destaque no olhar de Margarido.
Em outra aquarela, veem-se apenas duas mãos sobre uma máquina de escrever, da qual sai uma folha de papel com o desenho de um barco pirata. Em baixo, lê-se: “Quilhas partidas, navios ao fundo, sangue nos mares” – verso da “Ode Marítima”, de Álvaro de Campos. A máquina retratada é uma Royal.
“O observador familiarizado com a vida e a obra de Fernando Pessoa reconhece logo um dos pertences pessoais do poeta, quem sabe o mais emblemático, a sua máquina de escrever, imagem mais de uma vez reproduzida nas fotobiografias a ele consagradas”, comenta o crítico literário Moisés no artigo que assina no livro. Foi na Royal que Pessoa escreveu a “Ode Marítima”.
A infância, a predileção pela aguardente, entre outros episódios da biografia do poeta – tais como a famosa foto de “Fernando Pessoa em flagrante delitro”, como diz a dedicatória à namorada Ofélia de Queirós –, a amizade com Almada Negreiros e Mário de Sá-Carneiro são outros elementos tematizados nas aquarelas.
“Ó meu passado de infância, boneco que me partiram!”. O verso de Álvaro de Campos foi selecionado por Alfredo Margarido para acompanhar uma aquarela que remete para uma célebre fotografia do menino Fernando Pessoa andando de triciclo.
Outra retrata o balcão do bar frequentado pelo poeta, acompanhada de um texto assinado pelo escritor L. P. Moitinho de Andrade: “Muitas vezes assisti a cenas como esta: – o ‘Sr. Pessoa que estava trabalhando, em via de regra, à máquina de escrever, visto que não minutava o que datilografava, levantava-se, pegava o chapéu, compunha os óculos, e dizia com ar solene: ‘Vou ao Abel’. Ninguém estranhava essa atitude exceto eu, que a vi pela primeira vez num verão não muito longe de 1923”.
Segundo as organizadoras, não há dúvida de que Alfredo Margarido queria que o espectador entendesse a espécie de laço, muito particular, que existe entre o artista e o cidadão Fernando Pessoa, com seu peculiar modo de ser, e a obra por ele criada. “De fato, Margarido sempre esteve coberto de razão, a extraordinária dimensão dessa poesia esbarra, a cada página, com acidentes biográficos!”, concluem.
TRANSPOSIÇÃO DE LINGUAGENS
A combinação de texto e imagem que caracteriza as aquarelas cria um movimento em zigue-zague, transformando os dois artistas – Margarido e Pessoa – em parceiros de jogo. Nesse sentido, a professora titular aposentada do IEL-Unicamp Vilma Arêas enfatiza, em seu artigo no livro, o caráter narrativo das pinturas, compondo uma “complexa e divertida história em quadrinhos”, na qual a caricatura cumpre seu papel de transformação do viés oficial, mas também um desejo de aproximação do poeta.
Na mesma direção, o crítico literário Moisés apreende a obra de Margarido a partir da correspondência entre as artes, visão fundada na Grécia Antiga e que prevaleceu até o século XVIII, com o Iluminismo e a ascensão de uma visão de mundo pautada pela divisão e pela especialização. Para os gregos, a pintura era poesia muda e a poesia, pintura que fala. Este é o lema-guia que, segundo o crítico, orienta o percurso da coleção de aquarelas dedicadas a Pessoa.
Nessa medida, o procedimento literário de inserir versos ou frases no corpo dos desenhos desempenha certas funções, desde sublinhar ou esclarecer aspectos nem sempre detectáveis nas figuras, até convidar a uma reflexão – sempre permeado de um fino traço de humor, reitera Moisés em seu artigo.
O humor e a ironia são as marcas da obra de Alfredo Margarido, fundamentada em sua profunda erudição, analisa Helder Macedo, professor emérito de português do King’s College, Universidade de Londres. Como afirma em seu artigo, a erudição é o suporte criativo para Margarido que, por meio do vocabulário das artes visuais, simultaneamente interpreta, comenta e ironiza Fernando Pessoa.
Militância marcou trajetória do autor O português Alfredo Augusto Margarido (1928-2010) formou-se na Escola Superior de Belas-Artes do Porto. Teve sua vida marcada pela militância política. Desde cedo filiou-se ao Partido Comunista Português, chegou a ser preso duas vezes (em 1948 e 1949) e envolveu-se no movimento anticolonialista. Viveu na África entre 1955-1957, onde participou ativamente de jornais e outros periódicos, bem como da organização de eventos culturais – sempre denunciando o colonialismo. De volta a Portugal em 1958, dedicou-se à organização de antologias de autores africanos de ficção e poesia. Em paralelo com a militância, Margarido tornou-se autor de livros de poesia e ficção. No ano de 1962, juntamente com Arthur Portela Filho, publicou O novo romance, que introduziu em Portugal o nouveau-roman. Em 1964, partiu para Paris, onde se formou em Sociologia na École Pratique des Hautes Études, tornando-se professor e pesquisador. Na França, lecionou em várias universidades, entre elas Sorbonne, Paris-Nanterre e Paris-Vincennes. Dez anos mais tarde retornou a Portugal, mas desiludido com a Revolução dos Cravos, que derrubou o regime salazarista, retornou à França, onde consolidou sua situação profissional e requereu nacionalidade francesa. Na década de 1980, foi professor visitante em várias instituições brasileiras, entre elas a USP e a Unicamp. Participou do colóquio “Fernando Pessoa: eventos comemorativos do cinquentenário de morte”, no IEL-Unicamp no ano de 1985, ocasião em que foi montada, pela primeira vez, a exposição “Uma leitura plástica de Fernando Pessoa”, com as aquarelas agora reunidas no livro Pintura e Poesia.... Três anos mais tarde, em 1988, quando da realização do Congresso Internacional de Estudos Pessoanos, as obras foram novamente expostas no IEL. Nos anos 1990, voltou a viver em Portugal, passando a lecionar na Universidade Autônoma de Lisboa e na Universidade Lusófona de Tecnologias e Humanidades. Nesse período, manteve uma tribuna de intervenção contra os “vícios sociais” em alguns jornais portugueses, instaurando um jornalismo formador de opinião. |
Serviço Título: Pintura e poesia: Fernando Pessoa por Alfredo Margarido Organizadoras: Yara Frateschi Vieira e Lênia Márcia Mongelli Páginas: 128 Edição: Edusp e Editora da Unicamp Áreas de interesse: Artes plásticas e Literatura Preço: R$ 50,00 |