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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 30 de novembro de 2015 a 13 de dezembro de 2015 – ANO 2015 – Nº 645Mulher é relegada a papel secundário na PM, aponta tese
Estudo mostra que inserção feminina nas atividades policiais tem caráter complementar no campo da segurança públicaEm 1955, a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo (SP) promoveu a primeira experiência do Brasil de inserção das mulheres nas atividades policiais, tornando-se, deste modo, um paradigma de modernização para as corporações policiais do país. Passados 60 anos do ingresso das primeiras mulheres na área de segurança pública, uma pesquisa da Unicamp aponta que a presença do feminino na Polícia Militar de SP é vista, muitas vezes, como uma ameaça à identidade e tradição policial.
O estudo, conduzido junto ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp pelo historiador e sociólogo Marcos Santana de Souza, também revelou a existência de um zoneamento de gênero não institucionalizado, marcando, claramente, as funções para mulheres e homens. Conforme constatou o autor da pesquisa, é relegado ao trabalho feminino um caráter eminentemente complementar no campo da segurança pública. O trabalho, que traçou uma etnografia do feminino na polícia, acaba de ser contemplado com o Prêmio Capes de Teses 2015.
“O efetivo feminino na Polícia Militar do Estado de São Paulo representa aproximadamente 10% do efetivo total, que é constituído por cerca de 100 mil policiais. A maior parte destas mulheres atua nos setores administrativos com o argumento de uma maior compatibilidade entre as suas características físicas e psicológicas e a natureza do trabalho interno”, revela Marcos de Souza.
Ele exemplifica citando que apenas em 2014 o Regimento da Cavalaria da PM, um dos setores mais tradicionais e antigos da corporação, passou a empregar mulheres nas atividades de policiamento. O estudioso da Unicamp acrescenta que situações semelhantes também acontecem nas unidades operacionais e especializadas, como a Rota, o Batalhão de Choque e o Grupamento Aéreo, cuja presença feminina ainda é mínima.
“Há uma concepção de que mulher tem que estar ocupando uma função interna, doméstica, numa dimensão privada. E os homens, por serem ‘senhores’ do espaço público, têm que estar nas atuações e abordagens. Existe uma ideia na instituição de que a presença da mulher enfraqueceria a identidade policial e a própria confiança do trabalho prestado à população. Por este motivo a PM se mostra refratária à presença feminina, especialmente nas unidades operacionais”, afirma.
Marcos de Souza relata que outro setor que permanece sob a supremacia masculina é o dos órgãos de apoio ligados à instrução, importantes para a reprodução da cultura institucional baseada nos valores militares. Embora a participação feminina tenha crescido expressivamente, os homens constituem a maioria absoluta nestes espaços, estimada atualmente em 79,83%.
O autor da pesquisa informa ainda que as características femininas são vistas, muitas vezes, como elementos que poderiam vulnerabilizar as operações policiais e a unicidade da tropa, tão cultuada na corporação. A presença feminina também apresentaria um risco à dimensão do segredo e do silêncio, própria do trabalho policial, acrescenta.
“Esta suposta ameaça se justificaria sob a crença de que as mulheres não se entregariam plenamente ao trabalho em função dos compromissos com a ‘casa’. Neste caso, elas teriam uma disposição ‘natural’ para a quebra de segredos, da lealdade e da confiança do grupo. Esta seria uma justificativa para que elas sejam de antemão afastadas da convivência nessas searas de domínio quase absoluto dos homens.”
Por outro lado, pondera o sociólogo, existem aspectos apontando que as mulheres conseguiram ampliar sua presença na instituição, a despeito dessas restrições, veladas ou não. Além disso, diversos avanços na instituição podem ser observados como a unificação dos quadros masculino e feminino da PM em 2011, gerando oportunidades mais igualitárias de carreira ao público feminino dentro da corporação. Marcos de Souza menciona também o próprio ingresso das mulheres em setores tradicionais, como o 2º Batalhão de Choque, o Regimento de Cavalaria, entre outros.
“Essa presença foi possível porque a experiência se mostrou exitosa. A população começou a ver bons resultados no trabalho e na presença feminina na PM. E também para a própria instituição foi interessante porque esta presença vai ser ampliada em momentos de crise, em que, muitas vezes, abusos cometidos por policiais vão ganhar a opinião pública. Portanto, sobretudo nos anos de 1990, há uma ampliação considerável no efetivo feminino e nos campos de atuação, muito por conta dessa ideia de modernização e de uma tentativa de reformular a imagem da polícia”, situa.
Um marco neste sentido aconteceu em 2001, com a nomeação da tenente-coronel Fátima Duarte, a primeira mulher da história da Polícia Militar de São Paulo a assumir o comando de um batalhão e ter, sob a sua responsabilidade, policiais de ambos os sexos. O pesquisador ressalta que a nomeação, assim como investimentos no policiamento escolar e comunitário, em campanhas publicitárias e na aproximação com órgãos de imprensa, visava reformular a imagem da corporação, desgastada por episódios de abusos cometidos por policiais. “Apela-se, assim, para o elemento feminino como recurso para mudança da percepção social em torno da polícia”, pontua.
O autor do estudo acrescenta que as mulheres ouvidas durante a pesquisa relataram a percepção de que avançaram significativamente na profissão, apesar da permanência de alguns entraves. De modo geral, segundo Marcos de Souza, os entrevistados vinculam os preconceitos contra as mulheres na polícia à permanência do machismo no conjunto da sociedade brasileira, da qual a PM não seria uma exceção.
Outro aspecto relevante apontado pelo trabalho é que a inserção feminina na PM tem tornado a rotina policial menos dura e hostil, tanto para mulheres como para homens. “Quando se está num universo policial e militar essa dimensão do cuidado e da diferença não costuma ser observada. Estes profissionais, homens e mulheres, estão num ambiente extremamente hostil do qual os direitos fundamentais não são respeitados, muitas vezes. E a inserção feminina traz, de alguma forma, essa questão da diferença para a problematização, de que o policial tem família, de que ele é um sujeito com seus dramas, com suas dificuldades e que precisa ser ouvido e compreendido.”
A tese de Marcos de Souza, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais do IFCH, ainda concorre ao Grande Prêmio Capes, que será anunciado no dia 10 de dezembro de 2015. Outras duas teses da Unicamp, também premiadas entre as melhores de 2014 pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), também disputarão o Grande Prêmio. O historiador, formado pela Universidade Federal de Sergipe com mestrado em sociologia, foi orientado em seu estudo pela professora do IFCH Mariza Corrêa, que atua como pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu.
Além do estudo etnográfico, o pesquisador buscou entender os sentidos do trabalho policial feminino na corporação paulista com a realização de entrevistas em profundidade com 44 policiais militares masculinos e femininos de diferentes círculos hierárquicos e com o auxílio de análise documental. Os registros sobre a presença feminina foram colhidos junto ao Comando da Polícia Militar de São Paulo, Academia de Polícia Militar do Barro Branco, Arquivo do Museu da Polícia Militar de São Paulo e Centro de Altos Estudos de Segurança (CAES).
“A contribuição do meu trabalho está no sentido de analisar a presença das mulheres na PM e compreender como estas diferenças de gênero são pensadas do ponto de vista institucional, e também como estas diferenças marcam a atuação das policias. Trata-se de uma reflexão sobre as representações sociais de gênero que ainda permanecem, mesmo num momento em que a mulher conquistou espaços e ascendeu socialmente”, contextualiza.
Marcos de Souza também considera que seu estudo abre perspectivas para a compreensão de como esta presença feminina, com todas as suas implicações, reflete no trabalho prestado e desenvolvido pela instituição à população. “A sociedade brasileira demanda, cada vez mais, por maior segurança, uma vez que o Brasil é um dos países que tem um dos mais altos índices de homicídio do mundo. Torna-se, portanto, essencial refletir sobre como a população pensa este tipo de enfrentamento da violência e, ao mesmo tempo, distingue posições e expectativas para homens e mulheres no campo policial. Acredito que outras pesquisas relacionadas à polícia devam ser desenvolvidas e ampliadas considerando a perspectiva de gênero, especialmente no campo na sociologia da violência.”
‘SOU POLICIAL,
MAS SOU MULHER’
A frase que dá título à tese de Marcos de Souza foi colhida a partir do depoimento de uma policial que atua no Pelotão de Choque da Polícia Militar do Paraná, concedido para uma rede de televisão, afiliada da TV Band. Embora de outro Estado, a expressão é muito recorrente, segundo o pesquisador da Unicamp. A sua escolha para nomear o trabalho foi motivada pelas múltiplas dimensões e demandas que nela se revelam, justifica o autor da pesquisa.
“Em determinado momento da entrevista, a policial fala da vaidade e da imagem policial, como se fossem elementos distintos, que não se casassem. Ela vai dizer, por exemplo, que tem que manter uma postura, se manter séria, fardada, mas que ela não abria mão nem do rímel, nem do batom. Ou seja: ‘sou policial, mas sou mulher, não posso esquecer-me disso.’ E essa dimensão foi algo que percebi nas demais entrevistas porque é uma cobrança institucional, também, o fato de ser feminina na corporação. Há um esforço institucional da polícia em mostrar esta compatibilidade e fazer com que as policiais não percam de vista que ser mulher é necessariamente ser feminina, o que representa uma clara forma de regulação dos comportamentos.”
Ainda de acordo com o estudioso, em “sou policial, mas sou mulher”, há a percepção do feminino como elemento restritivo da experiência de ser e estar na polícia. “O ‘mas’, como conjunção adversativa, deixa evidenciado o sentido de contraste ou compensação do feminino na profissão. A frase, portanto, aponta exatamente para esse sentido polissêmico da existência humana e dos desafios e interesses que orientam o lugar das mulheres no campo policial: elas querem ser vistas como profissionais capazes, mas não desejam ao mesmo tempo ver esquecido ou negligenciado o fato de serem mulheres, mães, esposas e irmãs”, analisa.
Marcos de Souza acrescenta que numa ordem focada nos preceitos militares, vistos como essencialmente masculinos, as mulheres compreendem que “ser mulher” impõe restrições, pesados testes de competência, discriminação e amarguras. “Neste ambiente, elas seguem lidando com as estruturas, afastando-se da idealização traçada nos primeiros tempos com a Polícia Feminina, quando o trabalho desenvolvido era eminentemente assistencial e voltando para o atendimento de mulheres, crianças e idosos. Elas apresentam novas formas de ser mulher diante de transformações sociais diversas que informam contradições, incertezas e esperanças.”
O ‘Baile da Espada’ e a ilusão perdida pelas ruas De modo institucional, a presença feminina é reverenciada como expressão do caráter moderno e democrático da Polícia Militar. Tais expectativas levariam as policiais a viverem a experiência de uma “ilusão”, segundo Marcos de Souza. No trabalho, ele exemplifica este sentimento com o relato de uma entrevistada no contexto do “Baile da Espada”, ocorrido durante a festa de formatura da Academia de Polícia Militar do Barro Branco. O pesquisador, que acompanhou a cerimônia em duas ocasiões, conta que aspirantes e seus padrinhos dançam ao som de valsas sob os olhares orgulhosos de parentes e amigos, num espaço prestigiado por seus superiores e por autoridades civis. O baile de formatura funciona como um rito que marca o ingresso no oficialato e o desejo de ascensão social e de reconhecimento. “Era basicamente sobre esse desejo que se referia a minha entrevistada quando definiu a festa, marcada por luxo e por um protocolo extenso de exigências dos participantes e convidados, como uma ‘ilusão’ a ser negada pela realidade das ruas e também dos quartéis, na complexa missão de enfrentar o crime numa sociedade desigual e violenta como a sociedade brasileira”, relata. “No caso das mulheres, como pude acompanhar, o baile surgia ainda como uma promessa, bastante transitória, é verdade, de reconhecimento de feminilidade para além das molduras disponíveis no cotidiano policial e de uma participação em iguais termos com os homens. As marcas da diferença feminina, longe de constituírem restrições, eram reverenciadas, uma vez que elas haviam superado, através do esforço pessoal, os mesmos desafios reservados aos homens. Na festa, a beleza e a sensualidade da farda feminina, presente na longa saia com abertura lateral e no uso mais acentuado de maquiagem, era parte de um passaporte conquistado pelas mulheres nas práticas e discursos que transitam entre igualdade e diferença”, completa. O RECEIO À MASCULINIZAÇÃO Ainda conforme o historiador, uma maior concentração do público feminino nos trabalhos internos tem por objetivo não apenas explorar aquelas que seriam competências próprias das mulheres como “maior senso de organização”, “sensibilidade”, “capacidade de comunicação”, mas também para evitar que em contato com as ruas as mulheres “sofram” com o risco de masculinização de suas atitudes, assim como de “inversão” de sua sexualidade. Tais aspectos, segundo ele, deslegitimariam socialmente o emprego feminino na atividade policial, tendo em vista as expectativas reservadas a esse público dentro e fora da corporação. “Neste sentido, as diferenças de gênero, longe de serem minimizadas no campo policial militar, são em grande medida reforçadas com vistas a definir, a priori, espaços e atribuições para homens e mulheres. Especialmente no interior dos quartéis, as mulheres, com sua ‘sensibilidade’, ajudariam a restaurar as forças e ‘curar as feridas’ dos homens, ‘naturalmente’ inclinados à ‘guerra’.” Marcos de Souza esclarece que o receio em torno da masculinização das mulheres na polícia é um elemento bastante difuso não apenas entre os policiais, mas na própria sociedade. Ele cita o caso da sargento Alessandra, com 18 anos de serviço. A profissional relata a experiência do marido professor sobre as representações sociais no ambiente de trabalho de como seria o comportamento da esposa. “Muitos não sabem que ele é marido de uma policial militar, nem imaginam. Tem gente que com ele trabalha há cinco anos numa escola e ninguém sabe que ele é casado com uma policial militar, porque ele preferiu não falar”, conta a sargento, em depoimento para o pesquisador. “Segundo Alessandra, as reações costumavam ser de certa desconfiança ou marcadas por comentários inconvenientes para o marido, que, por vezes, ouvia termos como ‘sargentona’ das pessoas para se referirem às mulheres na polícia, além de questionamentos sobre o cotidiano do casal, a exemplo de quem ‘mandava’ no relacionamento”, explica Marcos de Souza. |
Publicações
Artigos
SOUZA, Marcos Santana de. A violência da ordem: polícia e representações sociais. São Paulo: Annablume, 2012.
Novos espaços do feminino: trabalho, gênero e corporações militares no Brasil. In: Sociais e Humanas, Santa Maria, v. 24, n. 02, jul/dez 2011, p. 133-147.
“Elas não servem pra guerra”: presença feminina e representações sociais de gênero na polícia militar de Sergipe. – Universidade Federal de Sergipe, São Cristóvão, 2009 (monografia de especialização em “violência, criminalidade e políticas públicas”).
Tese: “‘Sou policial, mas sou mulher’: gênero e representações sociais na Polícia Militar de São Paulo”
Autor: Marcos Santana de Souza
Orientadora: Mariza Corrêa
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
Financiamento: Capes