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Baixar versão em PDF Campinas, 02 de maio de 2016 a 08 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 654Nos ritmos da música cristã
Os ensinamentos de Jesus Cristo se espalharam a tal ponto, principalmente no Ocidente, que atualmente são mais de dois bilhões de cristãos no mundo. E eles assumiram diferentes características em cada lugar em que chegaram, tanto que já se especula hoje se existiria mais de um cristianismo? Segundo Suzel Ana Reily, professora titular do Instituto de Artes (IA), à luz de sua disciplina – a etnomusicologia – não é possível afirmar que o cristianismo contemporâneo é único. “Há vários cristianismos e, se continuarmos pensando em um só, perderemos muito da sua riqueza.”
Essa linha de pensamento está presente numa coletânea recém-lançada mundialmente sob o título The Oxford Handbook of Music and World Christianities. Com Jonathan M. Dueck, professor da George Washington University (DC), Suzel dividiu a tarefa de organizar a obra, que demorou cinco anos para ficar pronta. São 31 artigos escritos por 31 autores, entre eles etnomusicólogos, musicólogos e antropólogos de várias partes do planeta, inclusive brasileiros.
Trata-se de uma coletânea publicada pela Oxford University Press que desvenda os cristianismos no mundo e a sua relação com a música. The Oxford Handbook of Music and World Christianities faz parte dos Oxford Handbooks, uma série que busca identificar temas candentes passíveis de debate contemporâneo nas diversas disciplinas.
O volume tem como público alvo pessoas da área de música e de etnomusicologia trabalhando especificamente com música cristã, antropólogos, pessoas da área de teologia que atuam com música e pessoas interessadas no processo de globalização, em colonialismo e pós-colonialismos. “Não é um livro de teologia e sim de antropologia. A intenção é compreender o papel da música na religião e, neste caso, uma religião com parâmetros globais”, esclareceu.
A docente do IA disse que poucas religiões do mundo não têm envolvimento com a música e que esse tópico seria uma interessante pergunta de pesquisa etnomusicológica, isso porque religião e música são universos atrelados. “Neste livro, olhamos o cristianismo em particular e o papel da música nos cristianismos.”
Ela explicou de modo simples que a etnomusicologia é basicamente a antropologia da música. “A musicologia histórica é uma disciplina mais voltada à música erudita ocidental e a etnomusicologia se presta a descobrir as músicas do mundo todo, perguntando por que o ser humano é musical e qual o papel da música na sociedade?”
Pelo fato de a etnomusicologia ter um legado antropológico, considerou Suzel, 90% dos artigos são etnográficos, o que equivale a dizer que eles são baseados em pesquisa de campo. Pesquisadores foram às comunidades e observaram como a música estava sendo usada nas diversas modalidades do cristianismo que investigaram. Ocorre que alguns trabalhos da etnografia histórica não são propriamente análises da música cantada ou tocada nas igrejas, ressalvou a professora. Eles esclarecem por que essa música existe desse modo em uma determinada localidade.
“O cristianismo nos permitiu ver isso muito bem, levando a uma mudança no tipo de indagação que se faz hoje. Se no passado as pessoas iam procurar um grupo totalmente isolado para estudar como uma religião e sua música se desenvolviam ali, no momento os muitos questionamentos são de contextos de encontros”, sustentou a professora.
Cristianismos
Para organizar esse trabalho, a coletânea foi dividida em cinco partes. A primeira aborda os encontros missionários e sua resposta local. A etnomusicóloga norte-americana Julia Byl, que fez sua pesquisa de campo na Sumatra, fala do legado de um missionário de origem luterana que foi para essa ilha distante, no meio do Pacífico.
Segundo ela, esse missionário levou para ali todo o seu repertório e, mesmo após sua morte, a igreja local conseguiu se desenvolver por conta própria com uma teologia bastante peculiar, que junta as ideias do missionário às ideias indígenas, gerando um cristianismo nativo. “Muitos missionários hoje levam suas músicas como formas de expressão, de pensar novos gêneros musicais e como expressão de novas sonoridades.”
A música, aliás, sempre foi uma das ferramentas mais usadas nas missões, comentou a docente. Muito por causa dela, esse legado vem permanecendo. A partir do século 17, o cristianismo expandiu-se com a colonização europeia e, em razão da sua orientação missiológica, foi mandando missionários para o mundo inteiro. Então essa diversidade no cristianismo derivou boa parte desses encontros variados e contextuais. “Podemos até perceber esses encontros variados quando se ‘olha’ a música. E a difusão foi, por vezes, tão eficaz que se sobrepôs às tradições, provocando ‘batalhas’ musicais.”
A segunda parte do livro – “Utopias e modernidades alternativas” – mostrou outro tipo de situação cristã. Diversos grupos protestantes, em especial as pequenas comunidades cristãs, como a dos amishs e a dos menonitas, fecharam-se literalmente em si para se protegerem do “mundo”. Que tipo de músicas surgiram dali e como elas estabeleceram uma identidade com tais seguidores?
Na coletânea, uma estudiosa irlandesa realizou sua pesquisa no sul dos Estados Unidos com igrejas batistas negras. Notou que nessas igrejas os repertórios eram bastante avivados, que os rituais eram norteados pela música e que, em última instância, eram nitidamente uma oposição aos blues.
Para os batistas, os blues eram tidos como a “música do mal”, pois dessacralizavam a música gospel, da qual derivou. Mas, como eles eram tocados em ambientes profanos, essas igrejas criaram uma barreira tal que a música tradicional definia aonde era o espaço divino e aonde ficava o resto.
A terceira parte da obra discutiu os “Conflitos musicais”, muito vivos em algumas igrejas. Nas protestantes, os membros tradicionais ainda entram em embate com os jovens porque eles não aceitam mais cantar os hinos congregacionais. Querem cânticos animados, com palmas e com instrumentos pouco usuais. Para os tradicionais, a nova música não enleva o coração e não permite entrar em contato com o divino.
Na igreja católica, a situação é semelhante. O movimento da renovação carismática, de forte influência neopentecostal, é uma oposição à igreja dominante. Sua música é mais engajada socialmente e tem uma dimensão na qual predomina o político.
A despeito disso, comentou Suzel, a igreja católica tradicional também tem um legado musical do catolicismo popular, que ainda soa utópico: a folia de reis. Essa manifestação é só cantada, como no congado. Tem ainda a dança de São Gonçalo que, além de cantada, é dançada. “Isso está ligado à devoção, não meramente o que as pessoas chamam de folclore. É tão catolicismo quanto qualquer outro.”
A quarta parte do livro é relativa à mídia e à produção de discos. Entram aí os discos gospel e a profissionalização, agora com uma dimensão mais comercial. E muitas igrejas estão envolvidas nesse marketing, mobilizando um público ainda maior com terminologias mais universalistas. O heavy metal também adentrou esse universo, e uma de suas vertentes adotou a simbologia cristã, porém ao inverso.
Suzel compartilhou que muitos hinos protestantes saíram de melodias populares de época e que é muito difícil saber com certeza se eles de fato vão se perenizar. Muitos se perenizaram e se tornaram hinos de países como os EUA, Inglaterra e Alemanha.
O último capítulo – “Identidades cosmopolitas” – reúne artigos baseados em contextos de localidades onde o cristianismo é dominante. Então as pessoas podem nem se considerar cristãs, mas a sua orientação (seu ethos) é cristã. Articulam essas noções no seu dia a dia e nem percebem: como a noção do bom e do ruim.
Um artigo do etnomusicólogo inglês Keith Howard investigou a tradição de uma ópera coreana. Comumente, essas óperas se fundamentam no confucionismo, no budismo, em uma teologia e em um dia a dia contrário às noções cristãs. Mas atualmente alguns cantores coreanos se converteram à fé cristã e já tentam criar uma outra ópera, mais apropriada para os palcos, mas condizentes com a sua fé.
Keith Howard também relatou nesse artigo as contradições que esses cristãos têm que lidar no seu cotidiano, sendo orientados de um modo e o cristianismo sugerindo outro. Mesmo assim, acentuou Suzel, eles continuam mantendo-se leais às tradições e lutando para unir os pontos divergentes.
De acordo com a professora, o cristianismo trouxe grandes contribuições à música do mundo todo e, com o colonialismo, gerou muita variação pelo mundo. “O resultado foi um processo historiográfico muito complexo que envolveu determinar o sagrado, transformá-lo em sonoridade, utilizar a música para entrar em contato com o sagrado e demarcar o sagrado para vivenciá-lo em comunidade”, elencou.
Em termos musicais, existe uma raiz que faz variações enormes e que estranhamente vai criar novas conexões. “É um cristianismo que se criou aqui, outro que se criou lá e, de repente, uma música daqui vai aparecer lá. Esses fluxos são extremamente complexos, contínuos e demarcam trajetórias”, assinalou Suzel, que pesquisa principalmente o catolicismo popular desde a década de 1980.
Serviço
Livro: The Oxford Handbook of Music and World Christianities
Organização: Suzel Ana Reily e Jonathan M. Dueck
Editora: Oxford University Press (https://www.oxfordhandbooks.com/view/10.1093
/oxfordhb/9780199859993.001.0001/oxfordhb-9780199859993)
Preço: US$ 150,00