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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de maio de 2016 a 15 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 655Grupo descreve molusco de 2 mm
Bivalve coletado na Bacia de Camposé um dos menores animais carnívoros do mundo
Pesquisadores ligados à Unicamp, juntamente com um cientista da Universidade de Hong Kong, publicaram, no ano passado, a primeira descrição detalhada da anatomia de um dos menores animais carnívoros do mundo: um molusco de menos de 2 milímetros de comprimento, chamado Grippina coronata. Esse molusco é um bivalve – tem uma concha dividida em duas partes – coletado na Bacia de Campos pela Petrobras, e encaminhado à Unicamp para estudo.
“O laboratório tinha recebido um material importantíssimo da Bacia de Campos para identificação”, disse o pesquisador Fabrizio Marcondes Machado, um dos autores brasileiros do artigo que descreve a Grippina coronata, publicado no periódico Journal of Molluscan Studies, e de uma dissertação de mestrado que trata da identificação de duas famílias de microbivalves até então desconhecidas em águas brasileiras, Cyamiidae e Spheniopsidae.
“Quando cheguei para o mestrado, o professor Flávio [Flávio Dias Passos, do Departamento de Biologia Animal do IB-Unicamp, orientador da dissertação de Machado e também autor do artigo] disse, olha, tem um material aqui superbacana, com mais 15 mil indivíduos”, lembrou Machado.
A G. coronata pertence à família Spheniopsidae, que ainda não havia sido registrada para o Brasil. “Algumas espécies dessa família já tinham sido descritas para a Nova Zelândia, oeste da África, América do Norte e Pacífico, mas até então, na América do Sul, não”, disse Passos. “E o bacana dessa família é que ela era totalmente desconhecida quanto aos seus caracteres anatômicos. Até o nosso trabalho, não se sabia nada sobre a anatomia desses animais, para além das características da concha”, acrescentou o orientador.
“Os caracteres da anatomia trazem elementos para a gente saber como o animal vive. E, surpreendentemente, descobrimos que eles são carnívoros, uma coisa que para os bivalves nem é tão comum. Tem um grupo grande de bivalves que é carnívoro, só que até então a gente não sabia que os Spheniopsidae se enquadravam ali. E isso é surpreendente porque eles são muito pequenos, mas ainda assim, carnívoros”, disse Passos.
Esses animais vivem enterrados, em substratos que podem ser areia ou lodo no fundo do mar e provavelmente se alimentam de larvas de outros crustáceos, ou de animais ainda menores, com tamanho de frações de milímetro.
Anatomia
Estudar a parte mole de um molusco milimétrico requer cuidados especiais: o uso de técnicas invasivas para eliminar a concha e expor a parte interna traz o risco de danificar seriamente o animal, que é extremamente delicado. “A gente geralmente não disseca, porque como o animal é muito pequeno, seria problemático, poderia causar alguma lesão na parte interna. Então, põe-se numa solução levemente ácida que descalcifica a concha, deixando a parte mole exposta”, explicou Machado.
Os pesquisadores constataram então a presença de um septo muscular – um músculo que divide a parte interna do bivalve em duas câmaras. “Esse septo tem uma função interessantíssima nos bivalves carnívoros, ele é fundamental, porque funciona como uma bomba de sucção para captura de presa”, disse Machado. “Os sifões do molusco ficam à mostra, para fora do substrato, com os tentáculos sensoriais que sentem as vibrações da presa quando ela passa na água. Isso atua como um estímulo, e então o septo se contrai lá dentro, cria uma pressão negativa na câmara e suga: cria uma corrente de água que traz a presa para dentro”.
“A boca dos carnívoros geralmente é grande, porque como esses animais não têm dentes para mastigar, a presa entra viva”, descreveu. “Viva, ela cai no esôfago e no estômago. E o estômago é modificado nos bivalves carnívoros: além de produzir enzimas muito potentes para a digestão, ele tem um revestimento protetor de quitina, para que a presa, ao se debater, não acabe rompendo o órgão”.
“O objetivo maior do laboratório é formar alunos na descrição da biologia dos moluscos. O Fabrizio fez isso, ele pegou duas famílias e descreveu aspectos da biologia desses moluscos”, disse Passos. “Apesar de não pegá-los vivos, para saber como se alimentam e tal, na parte mole de um molusco a gente tem essas pistas de como eles vivem. Então, além de descrever espécies novas, a ideia também é descrever a biologia delas”.
“O diferencial do trabalho dele foi observar a parte mole, porque a concha dos moluscos é a parte mais conhecida: todo mundo gosta, os amadores colecionam, todo mundo quer ter conchas bonitas em casa como decoração”, acrescentou o orientador. “Já a parte mole é a menos estudada, até porque é mais difícil, exige um conhecimento muito maior. E as espécies que ainda faltam serem descritas no Brasil são principalmente as que são pequenas ou que ocorrem em lugares muito específicos, que fica difícil de a gente achar, ou em grandes profundidades”.
Águas rasas
As amostras recebidas da Petrobras pelo laboratório de Passos haviam sido coletadas em 2009 na Bacia de Campos. “Essa é uma área muito grande, que vai desde o norte do litoral de São Paulo até o sul do Espírito Santo”, descreveu o orientador. “É muito rica em recursos minerais, como gás e óleo, é muito rica para exploração de petróleo. As empresas envolvidas na prospecção e exploração, como a Petrobras, têm que fazer projetos de monitoramento, e foi com a identificação do material coletado por esses projetos que me envolvi”.
“Na literatura que se tinha sobre bivalves carnívoros, o que é mais conhecido e mais divulgado é que eles são, preferencialmente, animais de águas profundas. Quando digo profundas, são mais de 500 metros de profundidade”, disse Machado. “Mas a Gripina coronata, que foi a espécie que descrevemos no artigo, e a Spheniopsis brasiliensis, que também descrevemos e vai aparecer em outro artigo, ocorrem entre 10 e 120 metros de profundidade. Ou seja, isso é raso: se coletei um bivalve, com parte mole, a 20 metros de profundidade, isso não é tão profundo quanto a literatura sugeria”.
A fauna marinha brasileira ainda é muito pouco conhecida, ressalta Passos. “São poucos os navios oceanográficos no Brasil, então quando alguém faz uma coleta, aparece muita novidade. Ainda tem muita coisa para conhecer, inclusive sobre ações humanas, a presença de poluentes. Vamos ver agora, por exemplo, o que vai acontecer com a foz do Rio Doce”, lembrou, referindo-se ao desastre do lançamento de lama de mineração de ferro da empresa Samarco nas águas do rio, em novembro do ano passado. “Conhecendo a biologia das espécies que ocorrem nessa foz, a gente vai saber quem vai resistir ou não, de acordo com os aspectos de cada espécie”.
Quanto às espécies descobertas e descritas no artigo – que tem como coautor internacional o pesquisador Brian Morton, da Universidade de Hong Kong – e no mestrado de Machado, os dois brasileiros acreditam que elas sempre estiveram no nosso litoral, e apenas não haviam sido identificadas até agora. “Os animais pequeninos que ocorrem em águas profundas estão lá há séculos”, disse Passos. “Provavelmente amostras até já tinham sido coletadas, mas como os indivíduos dessas espécies são muito pequenos, acabaram confundidos com jovens de outras. Até deve ter em coleções esses animais, mas nunca ninguém prestou atenção”, acrescentou Machado, que segue com um doutorado na mesma área.
Para o futuro, a ambição é conseguir estudar esses animais minúsculos ainda vivos: “Se a gente conseguir organizar a coleta dos animais vivos, dá para observar diretamente como eles vivem, fazendo experimentos, pegando dados do DNA... Enfim, dá para fazer muito mais coisas”, disse Passos.