Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de maio de 2016 a 15 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 655Tese revela conquistas das
domésticas nos anos 2000
Políticas públicas tiveram impacto positivo na categoria
Os anos 2000 impactaram positivamente a categoria das trabalhadoras domésticas no Brasil, com melhoria na economia e na perspectiva política. Foi um projeto que apostou nas políticas públicas e de inclusão como ferramenta de transformação social. “Teve um grande avanço, mas é preciso investir mais em programas que cheguem às trabalhadoras, principalmente do ponto de vista da formalização, que não acompanhou o quadro geral da economia”, concluiu Juliane da Costa Furno, em seu estudo de mestrado realizado no Instituto de Economia (IE).
“São necessárias novas políticas que contribuam para que essa parcela da classe trabalhadora supere o passado escravocrata e a invisibilidade para chegar a uma posição de trabalho portador de direitos. Há ainda muita informalidade no Brasil. Só 31% da categoria está presente no mercado formal”, informou a autora do estudo.
A sua amostra baseou-se na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), que constatou 6.453.884 pessoas empregadas no trabalho doméstico. A autora tratou no estudo das transformações no mercado das trabalhadoras domésticas, comparando a década de 1990 e os anos 2000.
Segundo Juliane, nos anos 2000, aumentou significativamente o percentual de trabalhadoras que sabiam ler e escrever. “Também triplicou o número de trabalhadoras domésticas que cursam o ensino superior e esse número foi maior para as trabalhadoras domésticas autodeclaradas negras, que podem ser fruto de programas de inclusão social como o Prouni (Programa Universidade para Todos), o Reuni (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais) e as Políticas de Cotas Raciais”, revelou.
A renda média da trabalhadora doméstica, o ponto mais significativo, subiu 77%, acima do rendimento médio do salário mínimo na década de 1990 – que foi de 74%. O salário da trabalhadora doméstica com carteira de trabalho em 2014 foi em média de R$925,62 e da trabalhadora doméstica sem carteira foi de R$578,03.
Neste universo, também notou-se a interferência de um recorte racial. Em 2003, por exemplo, como reflexo da década de 1990, o salário médio das trabalhadoras brancas era de R$414,00 e das negras R$345,00. Em 2014, só para as brancas era R$685,00 e para as negras R$592,00.
Os homens, apesar de representarem 8% da categoria, tinham um salário bem superior ao das mulheres, mesmo no emprego doméstico, porque eles são alocados em tarefas mais especializadas, entre elas jardinagem e motorista. Em 2014, os homens trabalhadores domésticos tiveram um rendimento médio de R$965,40, enquanto as mulheres ganharam R$683,75.
“Um trabalho tão essencial no sustento da família, que ganha menos que o trabalho do jardineiro, apenas encontra justificativa na história da desvalorização do trabalho das mulheres na sociedade”, acredita Juliane, orientanda do professor do IE Márcio Pochmann.
Sua intenção foi situar as trabalhadoras domésticas dentro do universo mais geral da classe trabalhadora, como aquelas que têm o menor rendimento, compõem maior jornada de trabalho, são a maioria entre as trabalhadoras informais, auferem menos direitos trabalhistas e têm a participação mais precária no mercado, tanto em termos de salário quanto de recorte racial. As trabalhadoras negras têm menos direitos, são a maioria entre as informais e recebem menos.
Informalidade
Os estudos em economia neoclássica majoritariamente negligenciam as ocupações mais precárias e medem o grau de desenvolvimento econômico a partir do trabalhador médio: que já está empregado e tem uma renda média.
Como nos anos 2000 melhorou o crescimento econômico, a distribuição de renda e os indicadores do mercado de trabalho, Juliane quis estudar um setor mais precarizado e olhou uma categoria alijada dos ganhos econômicos, para medir a eficácia da melhoria no período.
O trabalho doméstico é uma herança escravocrata e guarda similitudes com a época do Brasil-Colônia. O trabalhador doméstico é um sujeito agregado da família, sobretudo quando se tem a intenção de explorar mais essa mão de obra. E a demora na regulamentação dos direitos do trabalho é uma herança dessa forma pessoalizada e informal com que o trabalho doméstico se realizou no Brasil-Colônia.
“Paira a ideia de que é um ‘não’ trabalho e de que a doméstica precisa estar disposta sempre a servir aos interesses da família que a emprega, mesmo fugindo da jornada de trabalho”, descreveu Juliane. “Ela está ali para servir sempre, inclusive aos sábados, domingos, feriados, festas, viagens de família, sem que isso se configure uma jornada extra, pagamento de hora extra, adicional por deslocamento.”
Camuflam-se as características de um trabalho para que seja melhor explorado. “Quanto menos características formais ele tem, mais fácil é que a trabalhadora doméstica esteja sempre presente, fazendo todas as atividades”, salientou.
Neste estudo, elas em geral eram mensalistas, mas hoje 30% começam a migrar para o trabalho como diaristas, por verem vantagens nisso, como receber dinheiro na hora e receber um pouco mais. Mas isso esconde a grande desvantagem de não conseguir direitos trabalhistas e não garantir direitos previdenciários, carteira de trabalho assinada, férias, FGTS.
Evolução
O crescimento econômico nos anos 2000 possibilitou que as trabalhadoras domésticas ingressassem em outros setores, mesmo tendo renda parecida. O fato de ser mais acessível à carteira de trabalho ou ao próprio status de valorização do trabalho, como telemarketing por exemplo, demonstrou uma melhoria no período, na medida em que o trabalho doméstico não é mais a única porta de entrada de muitas mulheres no mercado.
No Brasil, a trabalhadora doméstica é predominantemente negra (64%) e com baixa escolaridade. Enquanto em 1990 a maior participação de trabalhadoras domésticas no emprego doméstico estava na faixa até os 30 anos, nos anos 2000 esse contingente diminuiu e foi superior a parte com 40 a 60 anos ou mais.
As principais conquistas entre a década de 1990 e os anos 2000 estiveram relacionadas aos direitos trabalhistas. Em 2006, foram criadas leis para facilitar aos empregadores o contrato de trabalhadores domésticos com vínculos formais e o pagamento do FGTS.
Depois a própria dinâmica da economia – da reestruturação do mercado e da atuação dos movimentos sociais – contribuiu para as transformações que culminaram, em 2013, com um projeto de emenda constitucional que equiparou os direitos das domésticas ao dos demais trabalhadores formais.
A melhora geral do quadro econômico traz a melhora específica. Mas não só isso, porque em outros períodos da economia brasileira (como na ditadura militar) também houve crescimento econômico e aumento da renda dos trabalhadores, porém com maior concentração de renda e precarização do trabalho.
“A singularidade dos anos 2000 é que, além do crescimento da economia, firmaram-se políticas de inclusão social. A própria política da PEC das Domésticas deve ser encarada como política pública”, sugeriu a pesquisadora.
Surpreendeu Juliane a taxa de sindicalização das trabalhadoras domésticas em 2000, que cresceu muito, até entre as que não tinham carteira. Na década anterior, o sindicalismo teve um número de greves inferior, bem como o número de conquistas salariais que se igualavam, no máximo, à inflação.
A expectativa dela é que esses dados ajudem a elucidar a realidade no mercado de trabalho e que as trabalhadoras tenham acesso a eles, pois as opções políticas e econômicas que um país faz em um determinado período têm um impacto em especial para trabalhadores mais pobres.
“Espero que as agências governamentais e as entidades da sociedade civil acessem esses dados para entender que essa categoria avançou, contudo é preciso um olhar muito mais cuidadoso, visto que ela carrega o traço da escravidão colonial e da histórica discriminação de gênero na sociedade, que ainda junta elementos de discriminação – as mulheres e as negras”, frisou a estudiosa.
Na opinião de Juliane, essa dissertação ainda não refletiu os impactos da PEC das Domésticas porque eles vão conseguir ser visualizados somente daqui a dois ou três anos, estimou.
Parte da classe média chegou a alardear que aumentaria o desemprego no país, que não contratariam mais os serviços domésticos. “Fizemos um cálculo rápido sobre o custo do trabalho doméstico com a nova PEC das Domésticas. Para o empregador que já contrata um trabalhador doméstico e paga seus direitos com registro em carteira, pagar o INSS, o FGTS e multa rescisória sai apenas R$ 60,00 mais caro. É pouco para o empregador, mas essencial para garantir o direito previdenciário e o futuro dessa trabalhadora”, realçou.
Uma pesquisa de orçamento familiar identificou que o custo com o trabalho doméstico, para parte das famílias mais ricas do Brasil, associa-se ao custo de telefone, energia elétrica e outros consumos supérfluos.
Transição
Este trabalho também identificou em 2009 a correlação entre trabalho doméstico e crise econômica. Nos períodos de maior crise econômica, 1990 e 2009, cresceu muito o número de trabalhadoras domésticas nesse tipo de emprego, porque caiu a chance de inserção em outro posto.
Muitas trabalhadoras que não estavam na ativa ou perderam seus empregos viram no trabalho doméstico a única possibilidade de renda. Em 1990, 17% das mulheres estavam alocadas no mercado de trabalho doméstico. “Hoje é 15% das mulheres. Ainda é um percentual elevado, contudo diminuiu para crescer em outras ocupações, como comércio, administração pública e serviços educacionais, mostrando que essas profissionais estão se inserindo melhor”, afirmou.
Outro dado foi que caiu a participação das mulheres domésticas entre os mais pobres. Na década de 1990, mais de 60% das empregadas domésticas se situavam entre os pobres ou extremamente pobres. Agora, esse número é 30%. “E as não pobres são 67% e melhoraram bastante de vida, graças a políticas de transferência de renda e ao crescimento econômico mais geral.”
Dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT) apontaram que o Brasil é o país que tem mais trabalhadoras domésticas. “Para nós, isso é um resquício da escravidão colonial e do tipo de transição para o trabalho livre”, refletiu a mestranda. “A abolição da escravatura, sem a construção de políticas públicas ou a inclusão no mercado, permitiu que os ex-escravos apenas ocupassem os trabalhos que já ocupavam. As trabalhadoras continuaram fazendo todo tipo de serviço de limpeza e organização doméstica a um baixo custo.”
Publicação
Dissertação: “A longa abolição no Brasil: transformações recentes no trabalho doméstico”
Autora: Juliane da Costa Furno
Orientador: Márcio Pochmann
Unidade: Instituto de Economia (IE)