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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 09 de maio de 2016 a 15 de maio de 2016 – ANO 2016 – Nº 655Para Romano, acomodação da
esquerda está na gênese da crise
Professor da Unicamp critica atuação do STF e prevê cenário político turbulento
Doutor em filosofia e professor de Ética Política no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, Roberto Romano diz que, em boa parte, a crise política atual é resultado de uma acomodação da esquerda em relação ao esquema dominante do Estado brasileiro e suas raízes absolutistas. “É estranho se falar, hoje, em golpe da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luiz Inácio Lula da Silva e de Dilma Rousseff pertence à direita. E tais alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade”. E arremata: “Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários espera apoio fiel a políticas democráticas?”.
Em entrevista ao Jornal da Unicamp, o filósofo examina o atual cenário político a partir de uma perspectiva histórica. “Não tivemos, como povo, experiências duradouras de ordem democrática”, observa. Romano também analisa a polarização política e ideológica, a atuação da mídia, o papel do Supremo Tribunal Federal e a Operação Lava Jato. E traça um quadro turbulento para o futuro: “O nosso problema se localiza no Estado antidemocrático, na sociedade idem, na ausência de qualquer accountability nos três poderes. O concreto mesmo é que em pouco tempo estaremos às voltas com crises mais graves do que a de hoje”.
Jornal da Unicamp – Desde a abertura do processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff, na Câmara e agora no Senado, a sociedade convive com dois discursos antagônicos. Os contrários ao processo afirmam que se trata de um “golpe”. Os que defendem a saída da presidente garantem que se trata de um processo constitucional. Em sua opinião, quem está com a razão?
Roberto Romano – É difícil encontrar alguma “razão” se a crise geral bate à porta de todos. Erich Auerbach, ao analisar a propaganda política no livro intitulado Mimesis, enuncia que o universo social é como um palco onde muitas cenas se apresentam. O propagandista coloca o holofote sobre algumas cenas, deixa as demais na penumbra. Assim, o público testemunha atos verdadeiros, mas não totalmente imersos na verdade. Para a verdade, diz ele, é preciso toda a verdade e nos momentos de luta e crise não sobra tempo para inspeções amplas.
Sim, tem motivos certos quem afirma ser o impeachment algo legal. Mas eles deixam nas sombras todo o jogo de interesses políticos, econômicos, religiosos que também deveriam ser considerados. Desde que o governo federal abriu as portas dos cofres para empresários, com juros baratos e larga margem de manobra, os donos do capital julgaram que tudo lhes é devido, sem riscos. Como disse um conhecedor do empresariado, este último vive do alimento estatal. Ademais, a ética golpista integra o universo de nossos supostos empreendedores. Sua presença foi essencial em 1964 e ao longo da ditadura.
Como todos os presidentes posteriores ao regime autoritário lhes deram o que puderam e não puderam, até o primeiro governo Dilma eles não retornaram ao seu antigo sestro. Quando perceberam que os cofres estavam vazios, para eles e para todos, iniciaram a campanha, de início sigilosa e depois aberta, para derrubar a governante.
Também do lado político, muito se agiu no segredo nos últimos tempos. Com a ameaça da Operação Lava Jato, surgiram no Congresso vários projetos de lei que pretendem preservar a corrupção e penalizar seus críticos. Eles poderão vigorar, como normas legais, com a mudança de governo. Medidas para coibir ações do Ministério Público estão na Câmara dos Deputados, e outras iniciativas que buscam preservar os representantes da população, contra ela. O sigilo vigorou também em reuniões preparatórias do impeachment.
JU – O sr. poderia exemplificar?
Roberto Romano – O parlamentar Heráclito Fortes (Arena, depois PFL, agora socialista!) deu uma longa entrevista ao jornal O Estado de São Paulo, na qual narra as reuniões reservadas a poucos com o alvo de elaborar o impedimento da presidente. Os cenários jurídicos foram idealizados e expostos pelo ex-presidente do STF, Nelson Jobim (ministro de Luiz Inácio Lula da Silva), com a presença de outros juristas, políticos e mesmo de integrantes do PT (Henrique Fontana, Arlindo Chinaglia). Pergunto: quando parlamentares e juristas se reúnem sigilosamente, por mais de um ano, discutindo estratégias para o impeachment, inclusive com a presença de partidários do governo, não estaríamos diante de uma estratégia preparatória? Some-se a atividade da Fiesp a tal iniciativa, e teremos um quadro conspiratório efetivo, não um fantasma de golpe.
Agora, chegam as perguntas incômodas: o governo e seu partido, tendo nas mãos instrumentos de vigilância, foram tomados de surpresa ou receberam advertências sobre o rumo das coisas? Como os partidários do governo conviveram com tais atos visando a sua destituição? A resposta está na jaula das alianças encetadas desde o primeiro governo Luiz Inácio Lula da Silva.
O governo teve diante de si as tratativas para seu impedimento, boa parte delas lideradas por aliados. É estranho se falar, hoje, em golpe da direita contra um sistema de esquerda. Boa parte dos ministros de Luis Inácio da Silva e de Dilma Roussef pertence à direita. E tais alianças foram instituídas tendo em vista o realismo, a governabilidade. Temos aí resultado da acomodação da esquerda ao esquema dominante no Estado e na sociedade brasileira.
Quem se alia a notórios defensores de golpes e de governos autoritários (ACM, José Sarney, Jader Barbalho, Gilberto Kassab, Katia Abreu, Romero Jucá e outros, a lista é extensa) espera apoio fiel a políticas democráticas? No caso da Fiesp, a fábula de La Fontaine sobre o lobo e o cordeiro não foi lembrada: o lobo não se contenta com as concessões do cordeiro, ele exige tudo. Finanças e poder tendem para o absoluto e o convívio com poderosos nos dois campos é muito simples: tudo lhes é devido. O partido do governo imaginou ser possível partilhar com oligarcas regionais poderosos e com os suportes das finanças nacionais e internacionais o mando e os recursos. No início do governo Luiz Inácio Lula da Silva, José Genoino disse algo importante: “estamos no governo, mas não temos o poder”. O esquecimento de tal realidade só poderia terminar em fim melancólico. O resultado aí está.
O impeachment é constitucional, mas a Constituição ou é um sistema de normas que regulam umas às outras, ou é apenas um ajuntamento de regras desconexas e ineficazes. Por exemplo: a determinação do impeachment, sobretudo por crime de responsabilidade, deve ser conectada ao mandamento do Capítulo VII, artigo 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência...”.
Vejamos as cenas escondidas com o processo de impeachment. Este é contra um dos operadores do Estado, a presidente. Mas lancemos os olhos sobre parlamentares que autorizaram o procedimento. Boa parte deles, algo em torno de 135 deputados federais, estão na mira da Justiça ou já respondem processo judicial, protegidos pela prerrogativa de foro. Eduardo Cunha é réu estabelecido e alvo de vários processos por improbidade.
O Senado não tem situação diferente, a partir do parlamentar que o preside. Mesmo setores da oposição têm contra si investigações policiais e do Ministério Público. Qual legitimidade resta ao Congresso Nacional para impedir a dirigente do Executivo? Do ponto de vista estritamente legal, pode ser enunciada a validade do procedimento. Mas no horizonte da legitimidade – as cenas escondidas indicadas por Auerbach – que vai muito além e aquém da norma, seria preciso destituir ao mesmo tempo os que integram o Legislativo e, mesmo, setores do Judiciário. Talvez seja tempo, não de convocar eleições gerais, mas uma Assembleia Nacional Constituinte, dissolvendo-se o atual Congresso, eivado de vícios devidos aos piores procedimentos partidários e corruptos.