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Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDF Campinas, 15 de agosto de 2016 a 21 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 665Comparando desastres naturais na
África e na América do Sul
Pesquisa do Instituto de Geociênciasfaz análise de episódios entre 1970 e 2009
Entre os anos de 1970 e 2009, o mundo registrou 10.686 desastres naturais, que causaram 4.901.331 mortes, afetaram 6.921.541.146 pessoas e provocaram prejuízos, ainda que subestimados, da ordem de US$ 1,8 bilhão. Composto por 55 países e um território autogovernado [Saara Ocidental], o Continente Africano respondeu por 18,4% dessas ocorrências, 17,7% dos óbitos, 5,6% da população afetada e 1,3% das perdas econômicas. Os dados são revelados por uma pesquisa recém-concluída pela professora Lucí Hidalgo Nunes, do Instituto de Geociências (IG) da Unicamp. O trabalho foi realizado com financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio do programa Bolsa Produtividade em Pesquisa.
No estudo, a docente da Unicamp não somente contabilizou os números relacionados aos desastres naturais ocorridos ao longo de 40 anos na África, como também comparou esses dados com os obtidos para a América do Sul, apurados por ela em pesquisa realizada anteriormente. Nos dois casos, Lucí Nunes agrupou as ocorrências em três classes: eventos hidrometeorológicos e climáticos (seca, extremos de temperatura, inundação, movimento de massa seco, movimento de massa úmido, tempestade, incêndio), geofísicos (atividades sísmica e vulcânica) e biológicos (epidemia).
Os dados, explica a pesquisadora, foram extraídos de fontes oficiais das Nações Unidas. As informações sobre os desastres naturais foram fornecidas pelo The International Disaster Database (EM-DAT), gerido pelo Centre for Research on the Epidemiology of Desastre (CRED), da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica. “Trata-se de um banco de dados de elevada qualidade, embora os próprios administradores reconheçam que alguns dados devam estar subestimados, notadamente os relacionados às perdas econômicas”, observa Lucí Nunes.
Entre as classes de desastres naturais consideradas, a África registrou no período analisado o predomínio de ocorrências hidrometeorológicas e climáticas, seguindo uma tendência mundial. Estes episódios foram os que afetaram mais pessoas e provocaram a maior parte das fatalidades. Os danos materiais também foram ligeiramente maiores nessa categoria de calamidade. As epidemias ocuparam na segunda colocação em número de eventos, de afetados e de óbitos, mas os desastres geofísicos geraram mais perdas econômicas do que os eventos biológicos avaliados, conforme a pesquisa [veja tabela 1].
Ao desmembrar esses dados, a pesquisadora identificou os principais subtipos de fenômenos causadores dos desastres. “As inundações e epidemias responderam por mais de 70% das catástrofes nas nações africanas, seguidas pelas secas”, aponta Lucí Nunes. De acordo com ela, o número de mortos foi muito mais expressivo por causa das consequências das secas, seguido pelas epidemias. “As secas responderam por quase 4/5 dos afetados, mas os terremotos, mesmo tendo sido muito mais raros em relação aos outros tipos de desastres, causaram prejuízos muito vultosos”, informa a autora do estudo [veja tabela 2].
Em termos absolutos, os países mais afetados pelos desastres naturais foram Nigéria, Zaire e Etiópia. Num segundo patamar, surgiram África do Sul, Quênia, Tanzânia e Moçambique. Quanto às vítimas fatais, as primeiras colocações ficaram com Etiópia, Moçambique e Sudão. Embora a ocorrência de calamidades seja democrática, ou seja, elas se dão tanto em nações pobres quanto ricas, os episódios ocorridos na África nas quatro décadas pesquisadas foram potencializados por causa da desestruturação socioambiental do continente.
Entre 1960 e 2000, aponta o estudo, houve um aumento significativo da população na África e uma maciça migração de pessoas das áreas rurais e isoladas para os centros urbanos. “Não é o caso de se dizer, obviamente, que essa dinâmica seja a causa primária dos desastres naturais. Entretanto, a ocupação desordenada do território contribuiu para a desestruturação do ambiente. Além disso, a falta de infraestrutura para atender às necessidades básicas do conjunto da população certamente colaborou para reduzir a qualidade de vida das pessoas e, não raro, para aumentar os riscos de morte”, pondera a docente da Unicamp.
Comparação
Em sua pesquisa, Lucí Nunes comparou os resultados obtidos para a África com os sistematizados por ela para a América do Sul, contidos em estudo realizado anteriormente. “Como a metodologia foi basicamente a mesma, considerei interessante confrontar os dados para identificar os pontos de convergência e as assimetrias entre as duas regiões”, esclarece. A primeira diferença está no número de países que compõem os dois territórios. O sul-americano soma 12 nações, mais a Guiana Francesa (Departamento Ultramarino da França) e as Ilhas Malvinas (possessão britânica). Esta última, porém, não foi considerada no estudo por causa da falta de informações.
No caso da América do Sul, a pesquisa considerou os anos de 1960 a 2000. Nesse período, a região contabilizou 863 desastres naturais (8,1% do cômputo mundial), que provocaram 179.468 mortes (3,7%), 138.350.198 afetados (2,21%) e prejuízos financeiros da ordem de US$ 440 milhões (2,4%). “Assim como a África, a América do Sul também seguiu a tendência mundial e registrou um número significativamente maior de eventos hidrometeorológicos e climáticos. Estes impactaram mais pessoas e causaram mais prejuízos, embora os fenômenos geofísicos tenham sido mais letais”, pontua a professora da Unicamp [veja tabela 3].
Conforme o levantamento, Peru, Venezuela e Colômbia foram os países que apresentaram os maiores percentuais de mortes por desastres naturais. Já o Brasil se destacou negativamente quanto ao número de afetados. Na opinião da professora Lucí Nunes, em termos comparativos, África e América do Sul apresentaram melhoras parciais em alguns aspectos e pioras expressivas em outros nos períodos tomados para a análise.
A docente considera que o aumento do número de ocorrências nas duas regiões espelha, em boa medida, a crescente vulnerabilidade das condições de vida da população, a africana em especial. “Na África, a taxa de habitações classificadas como subnormais é a mais alta do mundo, segundo as Nações Unidas. No continente, as desigualdades sociais deixaram de ser imensas para se tornarem generalizadas. Vale destacar que, mesmo estando em condições ‘menos ruins’, a América do Sul está longe de ocupar uma posição confortável nesse aspecto, dado que o percentual de populações em risco na região é alto e atinge diferentes extratos sociais”, adverte.
Nos períodos analisados, assinala a docente da Unicamp, ocorreram episódios de destaque. “No caso da África, a década de 1980 foi marcada pelas graves consequências provocadas pelas severas secas que castigaram o chamado ‘Chifre da África’, região onde estão localizados países como Somália e Etiópia. Uma das causas do fenômeno foi a intensa atividade do El Niño. O número de mortes e de afetados foi assombroso”, recorda.
Na oportunidade, o flagelo da seca africano comoveu o mundo e levou grupos e entidades a promoverem campanhas de auxílio às populações mais atingidas. Uma das iniciativas foi o “USA for Africa”, do qual participaram artistas de renome mundial, entre eles Michael Jackson, Lionel Richie e Stevie Wonder. Os astros gravaram a canção “We Are The World” e destinaram os lucros obtidos com os direitos de execução para as ações de socorro aos africanos.
Em relação à América do Sul, um dos mais violentos desastres naturais aconteceu na década de 1970, no Peru. Um terremoto acompanhado de deslizamentos generalizados atingiu o Departamento de Ancash, dizimando a cidade de Yungay e afetando diversas outras localidades. Segundo estimativas das autoridades locais, a catástrofe produziu entre 70 mil e 80 mil mortos e 20 mil desaparecidos.
Uma das conclusões do estudo comparativo da professora Lucí Nunes aponta que um aspecto comum às duas regiões investigadas é que os efeitos perversos dos desastres naturais têm padrão marcadamente socioespacial. Eles normalmente acontecem nos mesmos lugares, afetando as mesmas pessoas ou grupos sociais. “Isso produz outra perversidade, que é a banalização das tragédias”, pontua a docente da Unicamp.
Por fim, a pesquisadora ressalta que, por serem democráticas, as catástrofes continuarão ocorrendo e atingindo os mais diferentes pontos do planeta, África e América do Sul inclusive. “Não resta dúvida de que novos episódios, com diferentes impactos, acontecerão novamente nas duas regiões. O desafio, portanto, é somar esforços e competências para fazer com que as consequências sejam atenuadas e superadas o mais rapidamente possível. Uma boa maneira de se fazer isso é atacar os graves problemas socioambientais presentes em ambos os territórios”, analisa.