Edição nº 665

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 15 de agosto de 2016 a 21 de agosto de 2016 – ANO 2016 – Nº 665

Fronteiras do preconceito

Tese mostra como representações das línguas faladas no Paraguai e no
Brasil podem alimentar estereótipos e interferir na construção da identidade

Na identidade paraguaia, persiste o reflexo da Guerra do Paraguai (1864-1870) como nação dizimada pelos brasileiros e que ainda sofre consequências disso. O país tem seu nome associado à falsificação, à criminalidade, ao não lugar, à não originalidade, à terra de ninguém. Mas as representações das línguas de fronteira são reflexos de um contexto histórico e cultural que envolve relações de poder. Essa imagem emanta políticas linguísticas e estereótipos calcados em ideologias, produz efeitos negativos e, muitas vezes, interfere na construção da identidade.

Essas são algumas das conclusões do estudo de doutorado do linguista Eli Gomes Castanho denominado “Entre a tradição e a tradução: representações sobre identidades e línguas na fronteira Brasil/Paraguai”, orientado pela professora Terezinha de Jesus Machado Maher. O trabalho foi defendido recentemente no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL). Nele, se discutiram as identidades do Paraguai e do Brasil, e as línguas faladas no contexto fronteiriço, entre Ponta Porã (Brasil) e Pedro Juan Caballero (Paraguai), Departamento de Amambai.

No entender de Eli, é necessário evidenciar a fronteira como um território com mais recursos do que problemas. “Ser trilíngue (saber português, espanhol e guarani) é o maior dos recursos que a fronteira pode oferecer. Usar o guarani – língua oficial do Paraguai – é uma experiência que a sua população tem sabido tirar proveito, graças ao processo de escolarização e gramatização, a despeito da cultura grafocêntrica.”

Professor do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Mato Grosso do Sul (IFMS) desde 2011, o doutorando sustentou que caberá à educação problematizar as diferenças e colocá-las em jogo na escola, a fim de contribuir para um processo identitário dos alunos e de quem vive na fronteira. “As identidades são muito dinâmicas e, por isso, uma pessoa não está sujeita a um só modo de ser, ainda mais quando não se vive em um único país.”

No estudo, foram entrevistados seis universitários (três brasileiros e três paraguaios) para avaliar como as representações da fronteira são construídas. A visão que se tem dos brasileiros é a imagem da celebração da diferença, identidade que oculta um discurso conflituoso, que aparece em vários momentos.

Ao se perguntar aos brasileiros e paraguaios se o guarani era uma língua ou um dialeto, alguns brasileiros disseram que era um dialeto, porque “não é puro”, porque “é uma língua indígena” e uma série de categorias que o minimizam, como o fato dos paraguaios não o escreverem.

Eli constatou que “o guarani colheu flores no canhão da ditadura do general Alberto Stroessner (de 1954 a 1989), que o ideal nacionalista latino-americano converteu o guarani ao longo dos anos em idioma nacional e, desde 1992, tem sido ensinado nas escolas. O status de língua foi alterado”.

Os paraguaios dizem que o guarani é uma língua porque tem gramática, poesia, literatura. “Como no Brasil a língua de origem indígena não goza do mesmo status, creio que nosso estudo serve como um estímulo para valorizar práticas orais em guarani em ambos os países. O mesmo pode ser dito do espanhol porque muitas vezes, embora a família o conheça, os filhos não se dizem falantes dessa língua”, afirmou o doutorando. 

De acordo com ele, o espanhol foi implantado no Paraguai como língua castelhana. O termo espanhol surgiu no século 20. Isso fez com que a representação de uma língua Ibero-Americana fosse vista como língua diferente. Também chamou a atenção que o castelhano não é só visto como uma língua latina-americana pelos paraguaios. É a língua da escola, enquanto o espanhol é reputado como a língua do dia a dia.

Os rótulos espanhol e castelhano não são tão claros no Brasil, garantiu Eli, porém espanhol e castelhano são a mesma coisa. Observa-se que, em razão da política linguística de obrigatoriedade do ensino de espanhol no ensino médio da fronteira, os brasiguaios (brasileiros com famílias paraguaias) não sabem o espanhol até entrar na escola.

O português, para os paraguaios, é visto como uma língua-trampolim para ascensão no Brasil, trazendo a possibilidade de continuar estudos de pós-graduação e de ingresso no mercado de trabalho, mesmo no Paraguai, onde a presença de brasileiros é intensa na agropecuária. Ocorre que muitos paraguaios que estudam agronomia vêm a necessidade de usar a língua portuguesa, ao passo que o brasileiro não escolhe o espanhol, e sim o inglês, como língua estrangeira.

Para alguns brasileiros, o guarani é “feio”, uma “língua de bugre”, reforçando a ideia de uma representação pejorativa. “Por que o Brasil não fala em massa nenhuma língua indígena?”, questionou o doutorando. “Temos quase 200 línguas indígenas no país.”

Eli considera fundamental que se façam intervenções a partir da prática pedagógica para modificar estereótipos historicamente construídos, além de tratar a questão da diversidade. Na fronteira, alguns professores brasileiros comentaram que é muito difícil lidarem com crianças que falam o guarani como língua materna, como se isso fosse um grande problema.

Políticas
Existe hoje em dia uma retomada da memória da Guerra do Paraguai. O paraguaio se mostra ressentido. Alguns até usaram essa palavra por causa das mortes que essa guerra trouxe. Também se ressentem da imagem criada na mídia da pirataria. Apesar desse ressentimento, a maioria ainda enxerga o brasileiro como um povo alegre e desinibido.

Um ponto chave, considerou o pesquisador, foi a questão da escolarização das línguas indígenas. No Brasil, houve um movimento contrário a esse processo que remonta à época do Marquês de Pombal, no século 18. Ele expulsou os jesuítas que faziam um trabalho educativo com os indígenas, para instituir a educação laica. Houve ainda um momento em que as políticas linguísticas tornaram o português a língua oficial. Desenhou-se então o mito do país monolíngue, ignorando as línguas indígenas.

Já o guarani, no Paraguai, seguiu um caminho totalmente oposto com a ditadura de Stroessner, que o estimulou como língua nacional porque tinha uma população campesina que falava a língua indígena. Reconhecer a língua dos que estavam à margem era uma forma de representatividade para exercer controle.

Na década de 1970, começaram as políticas linguísticas de escolarização do guarani. Stroessner as iniciou pelas escolas militares. Em 1989, ele foi deposto e, em 1992, em consequência das políticas de valorização do guarani, o país se declarou país bilíngue: com o guarani e o espanhol. Hoje mais de 90% da população paraguaia fala o guarani.

Quando Eli perguntou aos paraguaios se o guarani era uma língua ou dialeto, eles nem deixaram terminar a pergunta e responderam que certamente era língua e prevalecia uma visão de língua situada naquilo que é passível de ser escolarizado. “Se não é escolarizado, não é língua”, esclareceu.

Quando chegou a vez de indagar aos brasileiros se o guarani continua sendo língua, eles responderam que, para os paraguaios, sim. Para eles, não. Então é um objeto que se molda muito a uma imagem que se tem do dono da língua.

Enquanto o Brasil teve uma política linguística de extermínio, o Paraguai teve outras intenções. A pesquisadora do IEL Carolina Rodrigues, que estudou a construção do guarani como língua nacional, trabalhou com a pergunta de “como essa imagem de símbolo nacional foi construída para o guarani como objeto ditatorial de Stroessner?” Essa imagem, apurou ela, é muito focada na construção de imagens de símbolos nacionais. E a língua é um símbolo nacional. Isso reverbera na fala deles, notou o autor do estudo.

“Dá-se a impressão de que o Brasil nem lembra da Guerra do Paraguai. Parece algo tão apagado”, comentou Eli. Já os paraguaios acabam usando um simulacro sobre como os brasileiros fazem e como eles veem. “Aqui falamos de Guerra do Paraguai e lá eles usam o termo Guerra da Tríplice Aliança. É o discurso de quem perdeu a Guerra do Paraguai e o discurso da covardia de três países que se uniram contra ele.”

O último capítulo da tese – “Decorrências de um olhar para a fronteira” – lança um olhar sobre a diferença. “Nossa escola até ganhou um prêmio, no ano passado, por ser uma instituição promotora da igualdade de gênero, pela então Secretaria de Políticas das Mulheres”, revelou. “Mas, ao problematizar a diferença, um tema como a invisibilidade se mostra, pois há uma forte tendência a tornar invisível a diferença, uma vez que é confortável ocultar os conflitos. A diversidade não consiste só em abraçar. Está na alimentação, no modo de ser, na linguagem.”

A Universidade Nacional de Assunción atualmente tem cursos de agronomia e de administração rural, e o Instituto Federal oferece cursos de agronomia e agronegócio. “Minha expectativa é que minha tese contribua para pensar em políticas de intercâmbio entre instituições”, propôs. “No nosso Instituto, temos uma aluna que pesquisa plantas medicinais do Paraguai, não conhecidas no Brasil. Este é um modo de dar visibilidade à diversidade e destacar os pontos salientes que, com certeza, aquele país possui.”

Publicação

Tese: “Entre a tradição e a tradução: representações sobre identidades e línguas na fronteira Brasil/Paraguai”
Autor: Eli Gomes Castanho
Orientadora: Terezinha de Jesus Machado Maher
Unidade: Instituto de Estudos da Linguagem (IEL)