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Baixar versão em PDF Campinas, 19 de setembro de 2016 a 25 de setembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 669A escrita de si no lugar da arte e da memória
A porta da casa numa vila operária da rua Dr. Carlos de Campos, número 87, Vila Industrial, Campinas, estava sempre aberta para quem vinha disposto a ouvir e ser ouvido, a ensinar e aprender. No endereço encontrava-se um senhor que, a bem dizer, morou a vida toda no local. Ele era Thomaz Perina, um dos principais artistas plásticos de Campinas, reconhecido e admirado por gerações que atravessavam aqueles batentes buscando amizade e experiência. Perina foi professor de muitos.
Ele não nasceu na casa, para onde foi aos três anos de idade e lá permaneceu até a sua morte, em 2009. Transformou o espaço de morar em espaço de criar e fez de sua casa-ateliê uma referência ou “lugar de autoridade”, como afirma a pesquisadora Sônia Fardin, historiadora que trabalhou no inventário da obra de Perina, antes de sua morte, e na transferência de parte do acervo do artista para o Instituto Thomaz Perina.
Uma estreita convivência com a casa-ateliê de Perina trouxe para Sônia um olhar diferenciado no trabalho de pesquisá-la para seu doutorado, defendido no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, com orientação da professora Iara Schiavinatto. Conhecia bem sua obra, seu espaço criativo e a forma como armazenava a documentação sobre seus trabalhos e menções na imprensa. Sabia da preocupação que Perina tinha com sua imagem pública. Não em tom de vaidade, mas por ser consciente que esta também influenciaria o público na compreensão de sua obra.
Autodidata? É o que a imprensa diz, é o que Perina reafirmava. Mas o que significa ser autodidata no caso dele? Que conhecimento da arte é esse que o artista desenvolveu por si só? E o que significam suas experiências de moradia e de documentação de seu próprio trabalho para a construção desse conhecimento? Essas questões foram tratadas por Sônia. “A tese problematiza a questão da imagem pública do artista e como Thomaz Perina, em Campinas, esteve conectado com procedimentos de auto documentação e preservação de registros da imagem pública, procedimentos que também marcaram a atuação de muitos artistas de seu tempo, dentro e fora do Brasil”, resume a pesquisadora.
Casa-ateliê
Uma parede coberta de pipas, outras cobertas de fotos, desenhos, recortes de jornais, objetos e obras, muitas, suas e de muitos artistas, em especial amigos, que frequentavam seu local de viver e criar. A casa da Vila Industrial fazia as vezes de uma galeria de arte. E não por acaso. Sônia afirma que desde a década de 1930 existiam ateliês na cidade, e, entre as décadas de 1940 a 1970, eles se tornaram também espaços de trocas de experiências, encontros sociais, debates sobre política cultural e também exposições e comercialização de obras. Não havia na cidade até então espaços de venda, museus ou centros culturais.
Os ateliês, entre os quais o de Thomaz Perina, eram espaços de sociabilidade e trocas de conhecimento onde se debatiam formas de se organizar coletivamente para sobreviver de arte na cidade. A criação do Museu de Arte Contemporânea de Campinas “José Pancetti” (MACC), por exemplo, teve origem nos ateliês da cidade e Perina teve um papel de destaque. Os artistas reuniam-se em grupos que romperam com o academicismo nas artes plásticas de Campinas. O mais celebrado deles foi o Vanguarda.
A casa-ateliê de Perina é tema de pauta na imprensa desde 1969. O artista também foi um decorador consagrado, estabelecendo uma relação entre a decoração e as artes plásticas. De acordo com Sônia, ele remodela a casa, traz mobiliário, peças de demolições. No ateliê, dá início aos procedimentos de seleção e guarda de suas referências culturais que são mantidas por décadas em exposição, pontua a autora. “Thomaz Perina produziu um acervo importantíssimo sobre a história cultural de Campinas”, salienta Sônia.
O modo como o pintor se relacionou com a casa-ateliê, a rede de conhecimentos e parcerias formadas a partir daquele espaço, fazem parte do que a pesquisadora chama de ‘escrita de si’ e que também considera o livro que o artista usou para registrar sua história como personalidade do meio das artes na história de Campinas. Trata-se do “Livrão”, arquivo muito requisitado por estudiosos da obra de Perina e que hoje pode ser visto em exposição no Instituto Thomaz Perina. Da mesma forma que a casa, o livro traz as marcas da relação de Perina com outros artistas, fotógrafos e cineastas.
“Ele teve a iniciativa de fazer o ‘Livrão’, deu uma forma específica a um arquivo sobre a sua produção e a sua presença pública e, ao fazê-lo, evidentemente a escrita de si traz a escrita do outro porque ninguém existe sozinho, somos sujeitos sociais”, observa. Ao selecionar o material, Perina filtrava informações sobre um circuito de relações na cidade, passando inclusive pela imprensa e como se configurou o jornalismo cultural na cidade.
O tempo dedicado à confecção do “Livrão”, mais de 50 anos, denota a preocupação de Perina com sua imagem púbica. Meio século recortando, colando, realizando esboços e anotações. A prática dos artistas se preocuparem em constituir sua imagem pública é muito antiga, como afirma Sônia. “Existe toda uma produção pictórica, de quadros de artistas feitos para constituir sua imagem pública e para se divulgar também. Depois, no século 20, a fotografia e o cinema potencializam isso”.
Sônia observa, porém, que a imagem pública dos artistas visuais foi sendo, ao longo do tempo, distanciada de tudo aquilo que remete ao laboral. “Esse é um dos fatores que levaram ao apagamento de todo um conjunto de sujeitos sociais envolvidos na produção do conhecimento artístico”. Ao passo que o trabalho manual era muito valorizado por Perina, como por exemplo a artesania. Sônia recorda que o pintor tinha uma irmã gêmea que foi sempre reverenciada por ele pelas obras artesanais que ela criava. Havia em sua casa-ateliê vários objetos artesanais, mesmo a parede coberta de pipas sugere este significado, sem contar que ele vivia em uma vila operária.
Ter o olhar voltado para essas questões e objetos como o “Livrão” (e a casa principalmente) é muito diferente de quando se estuda o trabalho de um artista por meio do acervo já selecionado em uma instituição, como um museu. “O que eu aponto é que muitas vezes, quando a memória de um artista ou um arquivo de qualquer figura pública vão para uma instituição, já vão com um filtro, e essa especificidade de ser um acervo de um indivíduo que se ocupou de sua memória e da sua imagem pública também trouxe elementos pouco percebidos no contexto histórico da cidade, como, por exemplo, a relação entre fotógrafos e pintores”.
Com a casa-ateliê e o “Livrão”, Perina fazia a escrita de si e “ao fazê-lo traz as contradições de seu tempo, a presença de outros artistas e outros parceiros. A escrita de si é a escrita do outro e também a influência que eles sofreram de outros que são a imprensa, a crônica, a crítica especializada, a produção fotográfica; essas relações são o foco da pesquisa”.
Autodidatismo
O território de Perina compreendido pela pesquisa é delimitado pelo “Livrão”, que a pesquisadora também qualifica como um livro-arquivo, e pela casa-ateliê. Esses foram os territórios de afirmação da imagem pública do artista, pautados pelos conceitos de autodidatismo. Autonomia e liberdade de criação são discursos muito presentes na crítica especializada do pós-guerra de 1945 a 1960. “Estas formulações colocam o artista não mais como o que estuda, o que vem de uma produção intelectualizada, mas aquele que tem origem num talento nato”, discorre.
O pintor campineiro dialoga com essa expectativa. “Sem dúvida ele foi um autodidata, mas não num conceito que se coloca desenraizado e de uma forma mística, mas um autodidata que se formou em relações sociais muito presentes na obra e nos percursos dele”, reflete a autora.
O principal percurso foi feito na Vila Industrial. Bairro planejado para acolher trabalhadores, povoado de migrantes com muita bagagem cultural, e que faziam parte do convívio diário do artista que também era assíduo em bailes, clubes e bares. “O que eu pontuo é isso, que existe uma rede de sociabilidades da qual ele participou e que são percursos formativos desse autodidata”.
Sem minimizar o aspecto autoral, a pesquisa salienta o relacional na escrita de si e na imagem pública do artista. Sônia amplia a questão para a conexão entre os campos culturais da cidade que são vistos, afirma, de forma fragmentada: a fotografia, a produção audiovisual e pictórica.
Sônia realizou muitas visitas em casas ateliês no Brasil e na França. Ela nota que uma geração de artistas no século 20 é marcada por dar início a projetos de documentação de memória ainda em vida, como são os casos de Perina, Lasar Segall, Cândido Portinari ou, no âmbito internacional, Rodin. “Interessante perceber como um artista em Campinas também foi movido a estruturar um projeto de auto documentação, um projeto de memória. Ao contrário do que ele dizia, Perina foi um formulador de ideias e de conceitos, se dizia autodidata, sem formação teórica. Mas a forma como ele organizou sua documentação, produziu seu espaço de viver e criar, estabeleceu relações de parcerias e armazenou farta documentação de seu processo criativo, são manifestações de escrita de si”. O que a pesquisadora ressalta ainda, é a importância de estudar ateliês como lugares de memória e de formulação de conhecimento.
Publicação
Tese: “Escrita de si, escrita do outro: os procedimentos do artista Thomaz Perina em seu livro-arquivo e sua casa-ateliê”
Autora: Sônia Aparecida Fardin
Orientadora: Iara Schiavinatto
Unidade: Instituto de Artes (IA)