Edição nº 669

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Jornal da Unicamp

Baixar versão em PDF Campinas, 19 de setembro de 2016 a 25 de setembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 669

Na fronteira do extinto,
do miscigenado e do aculturado

Pesquisa expõe a luta do povo kokama, que vive no Brasil,
Peru e Colômbia, pelo reconhecimento étnico e territorial

Considerado “extinto” por alguns e totalmente “miscigenado” ou definitivamente “aculturado” por outros, o povo Kokama, que em termos de nacionalidade é dividido entre brasileiros, peruanos e colombianos, reapareceu no cenário social fronteiriço do alto Solimões nas últimas décadas. Em tese de doutorado defendida na Unicamp, o antropólogo José Maria Trajano Vieira mostra a luta dos kokama pelo reconhecimento étnico e territorial e por recursos das políticas e de instituições indigenistas oficialmente vigentes no Brasil. A tese foi orientada pelo professor Mauro William Barbosa de Almeida, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH).

José Maria Trajano, professor da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), enviou por e-mail as informações abaixo, relacionadas à pesquisa em que analisa especialmente a situação vivida no Brasil por indígenas nascidos no Peru e que hoje tentam resgatar um patrimônio cultural específico, associado aos kokama, para se diferenciarem de outros povos indígenas da região, das comunidades ribeirinhas não indígenas e mesmo de outros peruanos que não se reconhecem como indígenas. Um grande obstáculo para isso é que estes “peruanos” são considerados por muitos como invasores estrangeiros, indígenas “falsos” e oportunistas.

O povo Kokama, hoje
O povo Kokama atualmente se encontra dividido em termos de nacionalidade, entre brasileiros, peruanos e colombianos. Do lado brasileiro da fronteira, na região do alto Solimões (AM), os kokama vêm se mobilizando politicamente nas últimas décadas, na tentativa de se beneficiar das políticas públicas estatais, por meio de seu reconhecimento legal enquanto sujeitos detentores de direitos étnicos e enquanto coletividade indígena distinta das demais etnias da região. Nesse contexto, os kokama, reflexivamente, vêm procurando conhecer, resgatar e valorizar sua cultura tradicional, promovendo uma incessante busca de suas raízes como forma de conquistar visibilidade étnica diante de um Estado que historicamente os tem excluído das políticas indigenistas oficiais.

Não obstante os obstáculos à livre circulação de indígenas impostos pelo Estado brasileiro, sobretudo a fixação em território nacional dos kokama originários da Colômbia e principalmente do Peru, pessoas membros das famílias kokama mantêm relações transfronteiriças por meio de redes de parentesco, de intercâmbio político, religioso, cultural e econômico que atravessam e interligam essa fronteira geográfica entre distintos Estados nacionais e suas políticas, abrangendo uma vasta região da Amazônia que vai de Iquitos no Peru até Manaus no Brasil, passando pela Colômbia.

A língua e a cultura
Os kokama são considerados um ramo da família linguística tupi-guarani, entretanto, além da tupi, a língua kokama contém elementos das línguas aruak e kechua, ou seja, é uma língua resultante da mistura de várias outras. Atualmente, alguns kokama conhecem palavras ou frases soltas e possuem as lembranças das avós que falavam a língua. Relatam que a perda da língua se processou em decorrência do preconceito muitas vezes sofrido por eles.

Ainda que em seus discursos e práticas os kokama carreguem as marcas das diversas experiências e memórias interculturais, as misturas linguísticas e culturais com outros grupos étnicos não implicam em eliminação dos kokama como grupo étnico específico. Confecção de roupas tradicionais, aprendizagem da língua materna, execução de danças, técnicas de pesca, conhecimentos sobre remédios caseiros, preparo de comidas e bebidas típicas e religiosidade são alguns dos ingredientes para fazer reviver a “cultura milenar” kokama.

A região de fronteira entre três países e de encontro entre diferentes povos indígenas e sociedades nacionais leva à troca intercultural. Além dos kokama, a região fronteiriça é habitada por uma diversidade de etnias: tikuna, uitoto, yaguá, matsés, marubo, kanamari, matis, korubo e kulina, entre outras, entrelaçadas por redes de socialidade: trânsito de pessoas, relações de parentesco, objetos, conhecimentos, práticas rituais e religiosas.

O foco da tese
Na minha pesquisa enfoquei a formação de algumas aldeias também conhecidas regionalmente como “comunidades”, habitadas majoritariamente por indígenas de nacionalidade peruana e seus descendentes. Analiso a adaptação vivida no Brasil por estes indígenas que, durante a maior parte de suas vidas, estiveram submetidos a outras leis, ditadas por outro Estado nacional, e a outro idioma.

As acusações de oportunistas e “falsos” que recaem sobre os kokama, quando os mesmos reivindicam do poder público o reconhecimento étnico enquanto indígenas, não fazem o menor sentido. Sabemos que o povo Kokama, historicamente, foi obrigado ou induzido pelo Estado brasileiro (e também peruano e colombiano) e pelas missões religiosas a que ainda está submetido, a abandonar sua língua materna (obrigado a falar português e espanhol), suas antigas filiações étnicas e sua cultura; buscam recuperá-las por também esperar, dessa forma, potenciais benefícios individuais e coletivos.

‘Invasor estrangeiro’
Nos municípios brasileiros de fronteira como Benjamin Constant, Atalaia do Norte e Tabatinga (AM), os kokama – chamados de “índios peruanos”, “kokama peruanos” ou simplesmente “peruanos” – que transitam através das fronteiras, sobretudo no sentido do Peru para o Brasil, são tratados como invasores “estrangeiros” por setores das esferas públicas nacional, estadual e municipal; pela população local não indígena; por indígenas dos demais povos que compõem o contexto interétnico do alto Solimões/vale do Javari; e, no nível intraétnico, por pessoas do seu próprio povo, pertencentes a outras comunidades e/ou associações kokama.

Muitos desses atores sociais e instituições afirmam que no vale do Javari e no alto Solimões não existem kokama, mas sim peruanos oportunistas que querem se passar por índios para obter supostas regalias usufruídas pelos demais povos indígenas que habitam o território brasileiro. Esse não reconhecimento do outro enquanto diferente e sujeito de direitos étnicos, é fruto da disputa de poder entre os grupos sociais da região (madeireiros, empresários ligados ao turismo de “selva” e comerciantes), e tenta se fundamentar na ausência de elementos concretos de cultura indígena (tais como língua, crenças, costumes, etc.) tomados de uma forma naturalizada, estática e imutável. Ignora-se o processo colonial e o contexto de interação dos quais os kokama participaram e ainda participam.

A chegada dos ‘peruanos’
A partir de 1969, muitas comunidades kokama se tornaram adeptas da Irmandade da Santa Cruz ou Ordem da Cruzada, uma religião cristã fundada por um profeta nascido em Minas Gerais, conhecido por José Francisco da Cruz e que tem no seu corpo doutrinário elementos do catolicismo, protestantismo evangélico e de religiões indígenas, principalmente as de origem tupi – adotando destas a cosmovisão catastrófica de destruição e recomeço. A cruz e a bíblia formam os símbolos da Irmandade da Cruz. O irmão José, como ficou conhecido, pregava o fim do mundo e a salvação dos que eram protegidos sob a égide da cruz, sendo que após a catástrofe, os “puros de coração” alcançariam o local sagrado, onde a abundância e a fartura seriam uma constante. Nesse sentido, a cosmovisão desse movimento em muito se assemelha ao ideário da “terra sem males” dos tupi.

Uma das versões da catástrofe anunciada pelo irmão José me foi narrada por uma idosa kokama de Primeira Aldeia, em Atalaia do Norte, que o acompanhou em suas peregrinações durante alguns anos. Ela conta que muitas famílias kokama vieram para o Brasil porque o irmão José anunciou um tempo de guerra e miséria no Peru, em que os kokama nada mais teriam e em que a passagem pelas fronteiras com Brasil e Colômbia seria impedida. Irmão José ordenou que abandonassem o país e, assim, as famílias desceram o Amazonas e adentraram pelo Javari, instalando sua aldeia às margens desse rio, há cerca de 30 quilômetros acima de Atalaia do Norte, onde hoje se encontra a comunidade de São Pedro do Norte – a recomendação de irmão José era para que ficassem em terra alta, pois viria uma grande alagação, uma espécie de dilúvio.

Em tempos recentes, a principal motivação para a vinda de famílias kokama para o Brasil parece ter sido este cunho religioso, desencadeada por um movimento missionário. Entre 1972 e 1980, o povo Kokama que estava concentrado na cidade de Nauta, região de Iquitos, começou a se espalhar e a formar novas comunidades em diferentes lugares (e rios). Atualmente, encontra-se no rio Ucayali, em Maranón, baixo Huallaga; no rio Napo, ainda em território peruano; e na comunidade de Ronda, entre outras, localizada no município de Letícia, sul da Colômbia, numa região conhecida como trapézio colombiano. Do lado brasileiro, os kokama estão na região do alto, médio e baixo rio Solimões; em Benjamin Constant; de Tabatinga até Manaus; e, no vale do Javari, habitam comunidades em Atalaia do Norte.

Organização socioespacial
Atingidos pelas frentes de expansão não indígena, a maioria dos grupos kokama passou por processos de reterritorialização em missões religiosas, cidades, comunidades, colocações extrativistas, etc. Atualmente a organização socioespacial da região vem sendo cerceada pela apropriação indevida de áreas de recursos naturais, igarapés e bairros da região, por parte de patrões do extrativismo, pescadores, caçadores profissionais, narcotraficantes e pelo turismo selvagem e especulação fundiária urbana. Isso tem provocado transformações sociais, territoriais e deslocamentos forçados do povo Kokama que ocupa o alto Solimões/vale do Javari, comprometendo a sua autonomia econômica e a sua sobrevivência física e cultural.

As principais atividades de subsistência dos kokama são a agricultura, cultivando sobretudo a macaxeira e a mandioca para a fabricação de farinha, a criação de animais domésticos para o consumo próprio e a pesca. Isso apesar de uma longa história de contato com os não índios, desde meados do século XVI, tê-los envolvido em várias formas de produção para o mercado, de trabalho extrativo e de comércio urbano – há os que vivem da renda de aposentadoria e salários como de professores e agentes de saúde, além de políticas sociais do governo, como o Bolsa Família.

Dados populacionais
Os dados populacionais sobre a população kokama no Brasil são bastante imprecisos, controversos e flutuantes. Trabalhamos nessa tese com dados levantados pelas organizações indígenas kokama há mais de uma década, até porque a maior parte dessa população ainda não se encontra reconhecida como indígena pela Funai. A partir dos gráficos populacionais do Conselho Geral das Tribos Tikuna (CGTT), pudemos constatar que, no alto Solimões como um todo, eram 55 comunidades identificadas “exclusivamente” por indígenas Kokama, distribuídas pelos municípios de Benjamin Constant, Tabatinga, São Paulo de Olivença, Amaturá, Santo Antônio do Iça e Tonantins. Os kokama compartilhavam outras 14 comunidades, majoritariamente com os tikuna, mas também com os kaixana, kambeba e uitoto.

Levantamento populacional por família, realizado pela Organização Indígena do Povo Kokama do Vale do Javari (Orinpokovaja) no ano de 2011, computou 110 famílias, totalizando 550 pessoas que se identificaram como da etnia kokama, apenas no município de Atalaia do Norte.

Em Benjamin Constant, na comunidade Bom Jardim, segundo dados da Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena], a população indígena era de aproximadamente 123 famílias, totalizando um total de 723 pessoas, a grande maioria formadas por kokama, mas também por tikuna, algumas famílias witoto e por outras “mistas” (mistura de nordestinos, peruanos, colombianos, tikuna e kokama, entre outras combinações possíveis). Segundo o agente de saúde da comunidade, em 2015 residiam na comunidade 157 famílias kokama, totalizando perto de 800 pessoas.

A comunidade Luiz Ferreira, criada há 5 anos na periferia da cidade de Tabatinga, possui uma área de dois hectares e meio e é habitada por 211 pessoas auto-identificadas kokama e reconhecidas enquanto tais, à exceção de três famílias nucleares tikuna. Mas segundo dados da liderança local, só no meio urbano de Tabatinga haveria 3.650 indígenas kokama.

Participação política
A participação ativa de líderes Kokama na política indígena e partidária e a criação nas últimas duas décadas de diversas associações locais, de comunidades ribeirinhas e urbanas, representam uma nova configuração de articulações políticas que ainda está em construção, mas que poderá definir melhor as reivindicações dos grupos étnicos kokama.

Eles tentam participar de projetos (com a colaboração de assessores de ONGs, órgãos governamentais municipais, estaduais e federais, universidades, antropólogos) para obter fontes alternativas de renda para as comunidades. Tais empreendimentos visam fundamentalmente o fortalecimento da identidade étnica, a valorização das tradições, o desenvolvimento sustentável, a inserção nas políticas indigenistas nas áreas de saúde e educação (a exemplo do reconhecimento de escolas diferenciadas), a reconquista da especificidade cultural e linguística e do seu território, bem como a obtenção do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (Rani).

A demarcação das áreas reivindicadas pelos kokama torna-se importante perante a interferência negativa de interesses capitalistas nacionais e estrangeiros, levando os jovens indígenas à falta de perspectivas e problemas sociais (delinquência, drogas, alcoolismo, prostituição). Há litígios envolvendo questões territoriais nas comunidades habitadas pelos indígenas, estimulando-os a buscar emprego urbano e prazeres lúdicos (festas, álcool, drogas e prostituição).

A Festa Cultural do Povo Kokama Milenar, realizada pela Associação do Povo Kokama e Tabatinga no Centro Cultural Presidente Lula, em 30 de setembro de 2012, constituiu palco privilegiado para representação da autenticidade cultural indígena (danças, comidas, plantas medicinais, vestuário e músicas para legitimar um discurso em defesa de direitos baseados na etnicidade indígena) diante de interlocutores não indígenas (Funai, políticos, imprensa, antropólogo, universidades). Nesse processo de reinvenção de suas tradições, os kokama construíram em Tabatinga uma “maloca”, que é utilizada para festas e apresentação de dança.

Cultura de fronteira
Colombianos, peruanos ou brasileiros, somos membros da família humana e como espécie somos filhos da humanidade por cujo bem-estar vale a pena lutar. Devemos ser capazes de ver alguns kokama, por contingências históricas nascidos em outro país, não como invasores, mas como hóspedes, com os quais compartilhamos uma mesma Amazônia e um mesmo planeta, independentemente do Estado-nação ao qual estamos vinculados. Discriminar, excluir, controlar pessoas quem têm a mesma complexidade e capacidade intelectual, por causa das suas diferenças culturais, é uma violação contra os direitos humanos e uma afronta ao livre pensamento.

Indígenas ou não, a maioria da população da tríplice fronteira Brasil/Colômbia/Peru é composta por sujeitos multiculturais, multinacionais e multiétnicos, o que vem se consolidando na formação de uma cultura de fronteira que tem como pano de fundo a diversidade dos grupos que a compõem, grupos estes que em determinados contextos tomam o primeiro plano da cena social. Como sugere meu orientador Mauro Almeida, “é possível contribuir para a formação de um país onde a identidade de cidadãos iguais seja resultado de uma luta pelo reconhecimento constante de diferenças”.

Para além da nacionalidade, os kokama sempre foram grupos sem fronteiras geográficas rígidas; mais do que peruanos, colombianos ou brasileiros, se posicionam como indígenas e kokama em particular. Enfim, como membros da espécie humana que buscam qualidade de vida, por reconhecimento das diferenças como uma forma de conquistar a igualdade de oportunidades, numa sociedade mais ampla que historicamente tentou alijá-los do processo social, político e econômico. Como observa Viveiros de Castro, os indígenas “são nosso exemplo, um exemplo de ‘rexistência’ secular a uma guerra feroz contra eles para ‘desexisti-los’, fazê-los desaparecer, seja matando-os pura e simplesmente, seja ‘desindianizando-os’ e tornando-os ‘cidadãos civilizados’”.

Enquanto recentemente alguns grupos kokama “brasileiros” conquistaram visibilidade e direitos perante o Estado como povos diferenciados, outros grupos kokama, sobretudo aqueles chegados recentemente do Peru e da Colômbia, ainda carecem de tal reconhecimento. No caso dos kokama, a diversidade política, ideológica, religiosa, nacional, de interesses e estratégias dificultam ações coletivas baseadas em alianças intercomunitárias, construídas em torno de objetivos, projetos e identidades comuns. Neste caso, subsistem as disputas de poder, os conflitos e contradições entre os atores sociais envolvidos na produção e reprodução das identidades. Até que ponto seria possível para os kokama estabelecer um diálogo intraétnico em torno de objetivos comuns? É uma questão que só o desenrolar da política indígena e indigenista poderá explicitar no decorrer do tempo

Publicação

Tese: “A luta pelo reconhecimento étnico dos kokama na tríplice fronteira Brasil/Colômbia/Peru”
Autor: José Maria Trajano Vieira
Orientador: Mauro William Barbosa de Almeida
Unidade: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)