Edição nº 674
Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDFCampinas, 07 de novembro de 2016 a 20 de novembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 674
Mazelas ocultas
Estudo demonstra como dados sobre a RegiãoMetropolitana de Campinas são maquiados
Existe uma discrepância entre o que refletem os índices gerais sobre a Região Metropolitana de Campinas (RMC) e a sua realidade espacial. A RMC não é, em essência, uma região de opulência, qualidade de vida e bem-estar como tem sido divulgado amplamente. Ocorre justamente o oposto: essa região tem espaços nos quais se concentram pobreza, precariedade habitacional e carência de bem-estar.
Esses elementos vêm, na verdade, sendo ocultados nos índices atuais como o Ibeu (Índice de Bem-Estar Urbano), conforme pesquisa de doutorado do Instituto de Geociências (IG). Foi o que comprovou a pesquisadora Rafaela Fabiana Ribeiro Delcol, ao usar como escopo empírico a questão habitacional de Campinas.
Esse projeto, desenvolvido entre 2012 e 2016 e orientado pela docente do IG Arlete Moyses, inicialmente se propunha a compreender a participação dos municípios de pequeno porte em uma região metropolitana, buscando explicar os caminhos e os processos para constituí-la, e qual seria o seu significado de fato.
Um ponto de inflexão, ao avançar a pesquisa, foi que a geógrafa se deparou com vários índices que trazem como objeto de análise a dinâmica das regiões metropolitanas. Boa parte deles têm mostrado a caracterização, classificação e rankings das regiões metropolitanas.
Toda essa diversidade promoveu inquietações na doutoranda e ela escolheu estudar a RMC, por ter alcançado a posição de região metropolitana com o melhor índice Ibeu no país, que realiza um comparativo entre 15 regiões metropolitanas do país (Belém, Belo Horizonte, Campinas, Curitiba, Florianópolis, Fortaleza, Goiânia, Grande Vitória, Manaus, Porto Alegre, Recife, Ride-DF, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo). O seu objetivo foi avaliar a dimensão urbana do bem-estar promovido pelo mercado e usufruído pelos brasileiros via consumo mercantil e pelos serviços sociais prestados pelo Estado.
Gargalos
A RMC é formada por 19 municípios e, de acordo com o IBGE, tinha em 2010 uma população de 2.797.137 pessoas. Desse total, segundo o Plano Municipal de Habitação de Campinas (2011), verificou-se um deficit habitacional de 169.434 domicílios, entre favelas e loteamentos ilegais, em toda a área metropolitana.
As tipologias mais expressivas se devem aos loteamentos irregulares que, seguidos de domicílios em adensamento excessivo e sem banheiro, representam um montante superior a 60% dos problemas habitacionais da RMC.
Esses dados dão a noção de que, a despeito de estar entre as três melhores regiões metropolitanas do país, cerca de 20% de sua população enfrenta deficit habitacional ou irregularidades em seus domicílios, sinalizou a geógrafa.
Na tese, ela não analisou a precariedade da RMC em relação ao país. Contudo, fez uma análise do documento “Diagnóstico dos assentamentos precários nos municípios da Macrometrópole Paulista”, como um contraponto às informações utilizadas pelo Ibeu para a RMC [Integram a Macrometrópole Paulista as regiões metropolitanas de São Paulo, Campinas, Baixada Santista e Vale do Paraíba, Litoral Norte, além da Aglomeração Urbana de Jundiaí.]
Enquanto para o IBGE o número de assentamentos precários na RMC é de 276, o diagnóstico para os municípios da Macrometrópole Paulista é de 561 setores tidos como precários. “É mais que o dobro proposto pelo IBGE”, sublinhou Rafaela.
O número de domicílios em condições precárias para o IBGE era de 43.536. Já, no diagnóstico de assentamentos precários, foram encontrados 66.969 domicílios a mais, totalizando 110.495.
O documento sobre o diagnóstico dos assentamentos precários apontou ainda outro aspecto negativo da RMC: ela foi a região que mais cresceu em áreas de precariedade habitacional. Teve um aumento de 13% entre 2000 e 2010.
Análise
Por que há tantos dados disponíveis sobre regiões metropolitanas? Por que trazem como resultado uma hierarquia entre os espaços estudados? O que os índices têm mensurado? Eles permitem de fato distinguir as desigualdades no espaço urbano? Eles medem qualidade de vida ou padrão de vida? E, principalmente, o que revelam sobre as regiões metropolitanas e o que ocultam?
Esses questionamentos se tornaram mais marcantes quando analisada a posição da RMC nos índices e, especificamente, do município-sede (Campinas), que tem se destacado em sua maioria pelos altos índices de bem-estar urbano, integração com os municípios da região metropolitana, altos patamares da hierarquia urbana nacional e condições sociais muito boas.
“Como moradora de Campinas e trabalhando, na época, na periferia, eu via uma realidade muito precária na questão habitacional e em demandas sociais de modo geral. Em qualidade de bem-estar urbano, era deplorável”, criticou a doutoranda.
Ela acredita que, por meio da análise desse tipo de índice, em contraste com a realidade do espaço urbano campineiro, possibilitará outra abordagem das regiões metropolitanas, com uma leitura e entendimento mais amplos da complexidade da produção do espaço urbano nessas regiões.
“Tomamos como aspecto da realidade a questão habitacional de Campinas. Demos ênfase à espacialização da moradia da população de baixo rendimento e a maneira como ela tem sido mostrada ou ocultada nos índices, exibindo outros dados e informações mais próximas da realidade. Isso permitiu compreender uma das dimensões da produção do espaço urbano”, frisou a autora do estudo.
Ao fazer isso, ela identificou que a institucionalização de regiões metropolitanas cria um status que, aliado ao discurso de maior facilidade para angariar recursos estaduais e federais, parece incentivar que os Estados elaborem projetos sugerindo a criação de novas regiões metropolitanas. “Também vem aumentando o número de índices e documentos que se detêm a estudar os espaços metropolitanos”, revelou.
Rafaela observou que a produção do espaço urbano contemporâneo está deveras voltada aos processos políticos e culturais dinâmicos. Sem uma análise mais profunda, afirmou a geógrafa, as imagens criadas pela valorização das cidades – que tornam os espaços mercadorias a serem vendidas – trazem consigo um ambiente onde o capitalismo não expõe sua face negativa.
Visão
Rafaela analisou dados específicos que se aproximam mais da realidade da população de Campinas, visto que alertam para os problemas habitacionais, diferente da hierarquia estipulada pelo Ibeu, que oculta mais a realidade do que a traz à tona.
Os índices e indicadores sociais são ferramentas relevantes à análise espacial, explicou ela, contudo conhecer a realidade socioeconômica de determinado espaço, usando unicamente os índices e indicadores gerais, não é condição para garantir o sucesso da análise e não contempla totalmente a compreensão do espaço.
Diante do volume de informações e índices recentes, torna-se importante elaborar trabalhos que, para além de empregarem os indicadores, também possam analisá-los a fim de distinguir suas contribuições, sem perder de vista as limitações. “Tão ou mais relevante que o levantamento das informações pelos índices sociais é a interpretação e uso que se faz deles”, pontuou.
Mas esse uso tem sido deturpado pelas estratégias do capital, que se consolidam pela construção de “imagens” da mercadoria “cidade” que, “sob a égide do poder político dos governos locais, perfila-se através dos processos de reestruturação urbana e através da construção de imagem para vendê-la, para inseri-la no mercado”, de acordo com a pesquisadora Fernanda Sánchez, em artigo publicado em 2001.
A mercadoria “cidade” ou “região” abrange táticas distintas. Aí os índices sociais são incorporados pelo capital, porém não para fomentar políticas públicas, melhorar a qualidade de vida ou mitigar problemas, e sim para produzir imagens e representações que a enalteçam e a diferenciem dos demais espaços comuns. “Constrói-se então um discurso que a legitima como mercadoria especial, tornando-se espaço propício à reprodução ampliada do capital”, assinalou Rafaela.
Precariedade
Segundo o IBGE (2010), Campinas está entre as 20 cidades do país com maior número de assentamentos precários, com 10,4% dos domicílios considerados nessa situação (40.099 domicílios de um total de 348.503). Está entre as dez metrópoles brasileiras com maior proporção de população residente em favelas e ocupações irregulares, e 13,8% de sua população reside em habitações precárias. Ocupa a quarta posição no Estado e, em relação ao país, está em 15º lugar em população residente em assentamentos precários. O Plano Municipal de Habitação (2011) mostrou que a população residente em assentamentos precários era de 160 mil pessoas em 234 núcleos. O deficit quantitativo habitacional é de 30 mil domicílios e o deficit qualitativo (inadequação habitacional) é de 35 mil domicílios.
Publicação
Tese: “A discrepância entre os índices sobre a Região Metropolitana de Campinas e a realidade habitacional de Campinas”
Autora: Rafaela Fabiana Ribeiro Delcol
Orientadora: Arlete Moysés Rodrigues
Unidade: Instituto de Geociências (IG)