Edição nº 674

Jornal da Unicamp

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Campinas, 07 de novembro de 2016 a 20 de novembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 674

O novo Mineirão, do feijão tropeiro à lógica do mercado

Pesquisadora analisa mudanças na configuração
urbana de BH depois de reforma do estádio

Na maquete era tudo perfeito. Estádio lotado, torcedores comportados e, na esplanada, um espaço de 80 mil metros quadrados construído para abrigar um pequeno shopping a céu aberto, com famílias olhando vitrines e fazendo compras. Mas a vontade do empresário e do poder público nem sempre é a vontade do povo. E o que se viu, depois da reforma, foi uma ocupação plural, contraditória e completamente diferente daquela que era esperada para o Estádio Governador Magalhães Pinto, o “Mineirão”, um dos símbolos de Belo Horizonte. Assim como todos os estádios que sediaram a Copa do Mundo de 2014, o Mineirão passou por uma grande obra para atender as exigências da Fifa. Temia-se que, com o fim da competição, esses espaços pudessem se tornar “elefantes brancos”, algo gigante na cidade e completamente sem uso.

Nas fotos de hoje, a esplanada aparece cheia de gente. As lojas continuam, em sua maioria, desocupadas, mas há vida por toda parte. Skatistas, patinadores, famílias com crianças, pessoas fazendo caminhadas. Moradores de bairros vizinhos, e até de cidades próximas, visitam o local aos finais de semana num tipo de utilização, já consolidada, para o lazer. Já a arena, onde ocorrem os jogos, tem uma situação diferente. As formas de uso ainda estão em processo, segundo a pesquisadora Priscila Augusta Ferreira Campos, autora da tese de doutorado “As formas de uso e apropriação do estádio Mineirão após a reforma”, defendida na Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp. Priscila integra o Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas e Lazer, que analisa os megaeventos esportivos.

A pesquisa foi qualitativa, feita por meio da observação do Mineirão em dias alternados, durante jogos ou aos finais de semana, entre 2012 e 2014. Foram aplicados quase 400 questionários aos visitantes, entre torcedores e frequentadores da esplanada. Priscila também entrevistou um dos arquitetos responsáveis pela reforma, o responsável pela segurança, uma cozinheira e o gerente operacional ligado à presidência da empresa Minas Arena, administradora do estádio.

A tese procurou discutir a relação com a cidade e com o mercado, e de como o local pode, ao mesmo tempo, ser considerado um ponto turístico que precisa concorrer com outros estádios da iniciativa privada para atrair investimentos e eventos. Sendo uma parceria público-privada, o estádio passa a obedecer a uma lógica empresarial. Além dos jogos, é um espaço preparado para outros grandes eventos como feiras e shows. Quando uma grande banda de rock vem para o Brasil, por exemplo, esses grandes estádios disputam o evento. Foi o que aconteceu com a última turnê dos Rolling Stones no Brasil. O Mineirão foi cotado, mas saiu perdendo.

Com a reforma, internamente o Mineirão foi coberto, foram colocadas cadeiras em toda a área da arquibancada, foram construídas áreas vips, um estacionamento. Sobretudo retiraram o espaço da “geral”, o que acabou por excluir boa parte dos torcedores, principalmente aqueles de menor poder aquisitivo. Externamente, a reforma retirou o estacionamento onde eram montadas barracas para a venda de comida. Em dia de jogo, o lugar ficava lotado. Era prática do torcedor chegar mais cedo para comer o famoso feijão tropeiro do Mineirão, transformado depois em símbolo de resistência contra as mudanças no estádio, como conta a pesquisadora.

“Com o comércio ambulante deixando de existir, toda a alimentação dos visitantes passou a ser feita nos bares do estádio, que cobravam mais caro e ofereciam uma receita única de tropeiro que era distribuída para todos os estabelecimentos já que, com a reforma, a vigilância sanitária passou a atuar mais no estádio”. O novo modelo de estádio acabou com a tradição de chegar mais cedo e ficar do lado de fora nas barracas de ambulantes. Foi quando, em boicote, os torcedores começaram a fazer seu próprio churrasco nas ruas, até a proibição da prática pela prefeitura de Belo Horizonte.

Por fim, os ambulantes voltaram a cozinhar para os torcedores, dentro do Mineirão, sendo contratados por uma empresa em regime de terceirização. O tropeiro voltou com todo seu prestígio, e sobre ele, um ovo frito, como desejavam os frequentadores do estádio.

Times
A história que tem o tropeiro como personagem ilustra uma das mudanças observadas pela pesquisadora. O Mineirão era o estádio onde jogavam os três times profissionais da capital mineira: Atlético, Cruzeiro e América. Depois da reforma somente o Cruzeiro manteve todas as partidas no estádio. O Atlético escolhe quais jogos fará no Mineirão, retirando assim uma parcela dos seus torcedores das arquibancadas. As outras partidas são realizadas no estádio do América, mudando um pouco a territorialidade da cidade, que passa a receber mais gente em outro local do município, antes não tão visitado.

No Mineirão também mudou o perfil das pessoas que vão aos jogos. “Antes a torcida era mais livre, havia mais informalidade. Agora o estádio passa a ter um dono que é uma empresa que se preocupa em passar determinada imagem. Os ingressos que podiam ser vendidos até por 5 reais (na geral), agora não saem por menos de 40. Assim, a exclusão ocorre pelo preço mais alto, mas também pelo comportamento, pois a própria mudança da sociedade já não permite cânticos sexistas e racistas por exemplo”.

Por outro lado, o torcedor passa a ser cliente do estádio e se reinventa. Crianças e mulheres voltam a frequentar os jogos, porque sentem mais segurança. “O perfil masculino hegemônico não é mais preponderante. Surgem outras masculinidades, assim como existem outras feminilidades, com homens e mulheres se expressando de variadas formas”.

Lazer
O Mineirão está numa área da cidade, a Pampulha, que até então abrigava o único espaço de lazer da região, a Lagoa da Pampulha, de acordo com Priscila. Trata-se de um complexo arquitetônico com obras de Oscar Niemeyer e que se transformou em patrimônio cultural da humanidade. Ainda assim, o estádio, ou melhor, a esplanada, vem cumprir um papel importante.  “A esplanada acabou se tornando uma grande praça com infraestrutura de iluminação, banheiros, segurança, bebedouros. Os frequentadores do espaço consideram que, para eles, o Mineirão passou a existir”.

A esplanada atrai moradores das redondezas e de cidades próximas. As famílias consideram o local seguro, os patinadores gostam do chão liso, os skatistas têm orgulho porque consideram a esplanada do Mineirão uma das melhores pistas do país, grupo de adolescentes descobrem a cidade por meio do estádio. Para quem faz caminhadas, o lugar é agradável. Priscila verificou que os visitantes da esplanada recebem salários menores do que os que vão aos jogos, ou seja, procuram um divertimento popular. “Já os moradores da zona sul da cidade, que concentra a maioria dos equipamentos culturais de Belo Horizonte, só vêm ao Mineirão quando tem o futebol”, constata.

Os visitantes dos finais de semana agora têm suas demandas. Skatistas querem uma pista bowl, os idosos, uma academia a céu aberto. O medo da população, segundo as respostas dos questionários, é que a entrada da esplanada seja cobrada. Pode ser até que o comércio ganhe vida, voltado para os novos frequentadores. “A reforma cumpriu com uma demanda da região por lazer e mesmo o torcedor concorda que o estádio ficou melhor, mas ainda critica as perdas. Para o torcedor, o estádio perdeu sua mineiridade, é menos acolhedor agora”.

E sobra menos tempo para as narrativas em torno do futebol. “Perdeu-se aquela tradição de conversar que havia antes, durante e após o jogo porque agora o Mineirão abre somente duas horas antes da partida e os torcedores não têm mais o mesmo tempo de convivência”. O Mineirão antigo vive na memória dos antigos frequentadores.

Priscila vê o estádio como um microcosmo social. “Lá dentro ocorrem fenômenos sociais e, embora nossa tendência seja homogeneizar o torcedor e o estádio, quando olhamos de perto, vemos uma pluralidade de relações”.

Em relação à política, Priscila constatou que o grupo de arquitetos que planejou a reforma dialogava com um grupo político. A obra começou baseada em modelos que funcionam na Europa. “A Copa do Mundo chegou sem muito planejamento. O Mineirão é inaugurado, saem de cena o poder público e o arquiteto e entra a gestão privada que pouco dialogou com os outros’”. O que se vê hoje é resultado desse processo, com suas boas e más notícias.

Publicação

Tese: “As formas de uso e apropriação do estádio Mineirão após a reforma”
Autora: Priscila Augusta Ferreira Campos
Orientadora: Silvia Cristina Franco Amaral
Unidade: Faculdade de Educação Física (FEF)