Edição nº 674
Unicamp
Jornal da Unicamp
Baixar versão em PDFCampinas, 07 de novembro de 2016 a 20 de novembro de 2016 – ANO 2016 – Nº 674
Renovação abortada
Uma geração formada por cinéfilos, muitos com passagens pela Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), foi responsável pela renovação do cinema paulista na década de 1980, mas interrompida posteriormente com as políticas neoliberais do governo de Fernando Collor de Mello.
Vários deles instalados no bairro paulistano da Vila Madalena, produziram os seus primeiros longas de ficção entre 1980 e 1990 no Estado de São Paulo. Para o jornalista e crítico Gabriel Henrique de Paula Carneiro, autor de estudo sobre o tema, trata-se de uma geração bastante diversificada, que criou novas linguagens, trouxe novos modos de atuação política e deixou marcas de uma excelência técnica na estética cinematográfica.
Na década, o cinema paulista ganhou a maioria das edições dos Festivais de Gramado (RS), com alguns filmes sendo exibidos em Cannes (A Marvada Carne) e outros conquistando o Urso de Prata em Berlim (Vera e A Hora da Estrela). Carneiro considera que, mesmo premiado e com sucessos pontuais de bilheteria, o cinema produzido pela geração paulista não conseguiu sobreviver sem o financiamento e as legislações reguladoras do Estado, extintas pelo governo de Fernando Collor. “Podemos dizer que a geração de 1980 terminou antes de poder avançar”, lamenta.
Baseado em entrevistas com autores e extenso levantamento em materiais de jornais, revistas e acervos pessoais, o jornalista analisa, sob uma perspectiva histórica focada na década de 1980, trabalhos de nomes como Guilherme de Almeida Prado (A Dama do Cine Shanghai, 1988), André Klotzel (A Marvada Carne, 1985), Sérgio Toledo (Vera, 1986); Wilson Barros (Anjos da Noite, 1987); Roberto Gervitz (Feliz Ano Velho,1988), Suzana Amaral (A Hora da Estrela, 1985); e Ugo Giorgetti (Jogo Duro, 1985 e Festa, 1989), entre outros.
O autor da pesquisa reconhece que é complexo comentar sobre o legado da geração para o cinema nacional “por uma questão de retrospectiva histórica.” “É uma geração que foi interrompida pelo governo Collor. Na década de 1990, ele extinguiu o Ministério da Cultura, acabou com a Embrafilme e o Concine [Conselho Nacional de Cinema], órgão regulador que fazia cumprir a lei de cotas. E, com isso, o cinema brasileiro acabou. O país entrou num hiato, ficando cinco anos praticamente sem nenhuma produção”, constata Gabriel Carneiro.
O jornalista e crítico de cinema defendeu pesquisa de mestrado recentemente junto ao Programa de Pós-Graduação em Multimeios do Instituto de Artes (IA). O mestrado contou com orientações dos professores Nuno Cesar Abreu, falecido em fevereiro de 2016, e de Pedro Maciel Guimarães, que atua no Departamento de Cinema e Fotografia do IA. Houve financiamento, na forma de bolsa ao pesquisador, concedido pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
No trabalho, o autor traçou um panorama histórico sobre o cinema paulista da geração de 1980, abordando os cineastas e seus filmes, os modelos de produção, as políticas cinematográficas e os contextos histórico e mercadológico. “O interesse em pesquisar o cinema dessa geração deriva da constatação de ausência de pesquisas relacionadas ao tema. Os estudos sobre a história do cinema brasileiro são muito recentes. Temos mais de 100 anos de história, mas o cinema do país ainda é muito pouco estudado. Portanto, a pesquisa tenta jogar luz sobre um período pouco pesquisado e que se tornou, de certo modo, taxado como obscuro pela ausência de informações”, fundamenta.
Boca do Lixo
Sem caráter ou pretensão de movimento, o cinema da geração de 1980 aponta para diferentes vertentes e propostas estéticas, segundo o pesquisador. O grupo emerge no contexto do declínio da chamada Boca do Lixo, na época um polo paulistano de produção de filmes populares e de cunho erótico, responsável por boa parte das pornochanchadas do período.
“A geração retratada na dissertação é essencialmente cinéfila. Os autores assistiam muitos filmes, gostavam de cinema e, por isso, foram fazer cinema no curso superior da USP. Muitos não concluíram o curso, mas têm essa formação acadêmica e teórica, ausente na Boca do Lixo. Eram poucos os intelectuais lá radicados. Alguns autores fazem trabalhos na Boca e ela acaba servindo como uma transição para esta geração. É uma geração posterior, que começa a formar uma produção independente, paralelamente à Boca do Lixo”, situa Gabriel Carneiro.
Papel do Estado
Há também que se considerar como contexto para o surgimento do grupo, conforme o jornalista e crítico, o papel desempenhado pela Associação Paulista de Cineastas (Apaci) junto à Embrafilme, empresa de fomento que priorizava a produção carioca.
“Graças à luta da Apaci, dois editais de financiamento específicos à produção paulista foram celebrados entre a Secretaria do Governo da Cultura do Estado de São Paulo e a Embrafilme. Estes editais resultaram na produção de 11 dos 30 filmes que eu considero fazer parte dessa geração”, situa.
A geração começa a se instalar na Vila Madalena, formando o que seria denominado de polo da Vila Madalena, com a criação de algumas produtoras coletivas e cooperativas, um modelo não existente até então. As principais produtoras eram a Gira Filmes, Barca Filmes, Tatu Filmes e Superfilmes.
“Essas produtoras eram formadas por estudantes que trabalhavam nos filmes em diferentes funções, seja como autores ou como produtores, montadores e técnicos de som. O diretor de A Marvada Carne, André Klotzel, produziu Anjos da Noite, de Wilson Barros. O mesmo André Klotzel fez o roteiro de Janete, de Chico Botelho. E assim por diante, ou seja, há um intercâmbio de funções. E isso me parece muito possível porque a geração vem de uma formação técnica da academia, que permite conhecer as diferentes áreas de uma maneira mais experimental”, considera.
Noites paulistanas
Três filmes bastante representativos desse período - A Dama do Cine Shanghai, Anjos da Noite e Cidade Oculta compõem, segundo Gabriel Carneiro, o que tem sido chamado informalmente de trilogia da noite paulistana. “São filmes que se passam e têm como cenário a noite de São Paulo. Muitos remetem a uma noite exuberante, são bastante estetizados, fazem uso de muitas cores de neon e luzes artificiais. Tem outras obras que também vão trabalhar nessa seara, como Feliz Ano Velho, Vera e Real Desejo, do Augusto Sevá.”
Publicação
Dissertação: “Noites Paulistanas: O Cinema Paulista da Geração 1980”
Autor: Gabriel Henrique de Paula Carneiro
Orientador: Pedro Maciel Guimarães Junior
Unidade: Instituto de Artes (IA)
Financiamento: Capes