Domingo, 15 de março de 2020. São 10 horas da noite em pleno final de semana e estou aqui trocando minhas leituras e meus filmes de fim de semana por notícias pelo WhatsApp, que me bombardeiam a cada minuto que acesso. Deixo, então, o celular isolado no meu criado-mudo por alguns minutos enquanto faço alguma outra coisa, mas o som que ele emite de mensagem recebida me faz lembrar da sua existência. Foram apenas dez minutos sem ele, mas parece que foram dias, pois lá já constavam várias mensagens novas de grupos dos quais participo.
A principal notícia do dia foi, indubitavelmente, a participação do presidente Bolsonaro em uma das manifestações teoricamente pró-governo e contra o Congresso e o STF, contrariando outros chefes de Estado e autoridades da própria Organização Mundial de Saúde, que tem recomendado fortemente suspender qualquer tipo de evento com aglomerações, como forma de tentar desacelerar a propagação do coronavírus. Voltarei a esse episódio sobre o comportamento do presidente mais à frente.
Continuo lendo e lendo mais mensagens. Já passa da meia-noite e ainda não consigo dormir. Estou muito ansioso e agitado. Novamente, tento me separar do celular para que o sono possa vir. Não vem. Volto ao celular para ler mais notícias. Finalmente, decido me deitar. Já são quase duas da manhã. Meu sono é interrupto: durmo, acordo, durmo, acordo e não durmo mais.
Já é segunda-feira. Sem dúvida, é uma segunda-feira diferente de todas que já vivenciei. A universidade onde trabalho está vazia. O que sempre me encantou na vida universitária é a convivência das pessoas em seus espaços, com alunos pululando em cada canto do campus. Não foi isso que vi nessa segunda-feira, inclusive quando, por volta do meio-dia, passei pela porta do Restaurante Universitário, que normalmente tem uma fila enorme nesse horário, estava vazio. Ruas vazias, espaços vazios. Ao longe, vi um jovem (possivelmente um aluno do curso de música) praticando solitariamente seu trompete. Produzia notas musicais em uma escala que me lembrava uma música fúnebre, uma trilha sonora de um tipo de filme apocalíptico naquele espaço ermo, muito embora bonito, do campus.
Volto para minha sala e mais e-mails e mensagens pelo WhatsApp me cercam. Eis que decido, então, deixar de lado os medos e ansiedades que me rondam para tentar refletir sobre o momento atual...
Bem, busco um certo distanciamento do conteúdo das tantas mensagens que li sobre a notícia da participação de Bolsonaro em uma das manifestações de domingo. Já de início, o que mais me chamou a atenção naquele momento foi a quantidade de mensagens relativas a essa notícia, que certamente circularam mais rapidamente do que qualquer vírus poderia fazer.
De fato, apesar de saber do poder que a internet tem, a grande velocidade de circulação de algumas informações ainda me impressiona, não apenas pelo números de pessoas envolvidas, mas sobretudo pelo seu caráter imprevisível, pois não podemos prever seus resultados. Essa imprevisibilidade é talvez a marca maior das mídias sociais, que envolvem milhões de pessoas, além do uso dos recursos não humanos cada vez mais sofisticados de inteligência artificial. Por isso, não é possível prever o que se tornam ou em que direção vão as centenas, milhares, milhões de mensagens que recebemos em nossos aparelhos de celular.
Estamos vivendo, sem dúvida, tempos imprevisíveis e fugidios, mas aquela noite tudo parecia ainda mais imprevisível devido à pandemia da COVID-19 e sua chegada ao Brasil: quantos casos teremos? Quantas pessoas vão morrer? Como podemos nos precaver para reduzir as possibilidades de contágio? O que devemos fazer ao percebermos os sintomas da doença?
O risco de uma epidemia no Brasil fez com que universidades brasileiras, como a Unicamp (primeira, no país), suspendessem suas atividades de ensino e pesquisa. Logo na sequência, governos estaduais e municipais, sobretudo nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro, tomaram uma série de medidas com o objetivo de restringir atividades públicas que envolvam aglomerações, incluindo a liberação de funcionários públicos para trabalharem em casa e a suspensão das aulas nas escolas públicas por tempo indeterminado.
Na contramão dessas medidas, o presidente Bolsonaro, ao ter cumprimentado e tirado fotos (selfies) com pessoas na manifestação, agiu de forma displicente e irresponsável. Bem, diante do histórico do presidente, tais atitudes não chegam a me surpreender, mas apenas ratificam o quanto Jair Messias Bolsonaro é não apenas insensível em relação à sua própria condição de chefe maior da nossa nação, mas também desqualificado para exercê-la.
Pior do que descumprir medidas de segurança foi sua atitude de descaso e até de deboche em relação à própria propagação do coronavírus, ao dizer que estaria havendo um “superdimensionamento” da doença pela mídia. E mais: chegando a insinuar que a doença poderia ser uma espécie de complô da China, visando algum tipo de ganho econômico. Essa “teoria conspiratória paranoica” já se espalhou, como um surto de vírus ideológico, pelas redes sociais entre/por meio de muito de seus apoiadores de forma muito mais rápida e eficaz do que o próprio coronavírus.
Diante de tudo isso, penso que, ao contrário do que tem feito o nosso presidente da república, devemos aproveitar o difícil e nada normal momento atual para refletir sobre possibilidades alternativas de sociabilidade, tanto no nível micro quanto no macro. O nível micro diz respeito ao cuidado de si e do(s) outro(s). Nesse sentido, devemos, é claro, continuar alertas aos cuidados pessoais, que envolvem desde lavar bem as mãos a evitar cumprimentar as pessoas com apertos de mão. No entanto devemos, além disso, pensar novas formas de cooperação/colaboração e de solidariedade. Quem é o outro que pode estar espacialmente tão próximo de mim (meu colega, meu aluno, meu vizinho, o pedinte de rua por quem passo a caminho de casa, ou mesmo meu “amigo virtual”), mas que, por não ser capaz de parar um minuto sequer em meio a tantas mensagens do WhastApp ou do Facebook, não sou capaz de notar?
Em relação ao nível macro, acredito que, a despeito de toda a desgraça que esse vírus já trouxe (hoje com mais de 8 mil mortes em todo o planeta), é possível também que desencadeie novas formas de humanidade, em que muitas de nossas picuinhas podem ser deixadas de lado diante das mazelas que estamos presenciando. O momento catastrófico atual pode, portanto, ser também uma oportunidade para refletirmos sobre a própria condição humana na Terra. Por que 2 mil bilionários do planeta detêm mais riqueza do que 60% da população mundial, que equivale a 4,6 bilhões de pessoas? Ou por que o 1% mais rico do mundo tem mais riqueza do que os outros 99%? Por que alguém precisaria ter tanto dinheiro, inclusive às custas do próprio empobrecimento da grande maioria da população? E o Estado, o que pode fazer a respeito? Ficar quieto apenas atendendo aos interesses de banqueiros e rentistas, com a desculpa de “atrair” mais dinheiro para o mercado financeiro, ou deve agir em prol de sua população, sobretudo dos mais vulneráveis?
Essas questões são imprescindíveis para pensar, de fato, mudanças utópicas em nossa sociedade, mudanças essas que podem sim vir de um momento catastrófico, mas que também pode ser catártico. A história já nos mostrou isso!